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sábado, 9 de julho de 2022

Sensatez


  

Era a conselheira afamada de todo aquele bosque. Começara modestamente, muitos anos antes, escutando e aconselhando apenas as muitas corujas que ali viviam. Mas aos poucos, à medida que a sua fama alastrava, começara a ser procurada por outras aves, até de locais bem distantes, e pelos pequenos animais que conseguiam trepar pelos ramos da vetusta árvore onde habitava.

O movimento era tal que a certa altura, e por consenso geral dos habitantes do bosque, fora convidada a mudar-se para uma abertura no tronco dessa mesma árvore, quase ao nível do solo, que diversos animais alargaram e ampliaram de modo a tornar-se um local confortável onde pudesse passar a receber todos os que dela necessitavam, fossem ou não voadores ou trepadores.

Foi ainda decretada a proibição de caçar num raio de 500 metros a partir do “consultório”, para impedir que predadores mais “espertos” ficassem simplesmente à espera de que fosse ou viesse da consulta. E para que se pudesse dedicar totalmente ao bem-estar dos outros animais, foi estabelecido um sistema de entrega de refeições – a cargo dos predadores – e de arranjo da clareira e da sua habitação – tarefa dos que não caçadores.

A vida prosseguiu calma e rotineira durante longos anos, sendo a nossa “Doutora” Coruja cada vez mais procurada. Como o interior do tronco era bastante escuro, podia receber durante algumas horas do dia animais diurnos, sem incómodo excessivo para os seus olhos adaptados à noite.

Sem necessidade de caçar e indolente por natureza, raras vezes se ausentava, limitando-se a um pequeno voo ao crepúsculo, para manter a saúde e a tonicidade das asas. Enfim, uma espécie de passeio higiénico.

Mas um dia ocorreu a uma das raposas do bosque que mais dia menos dia iriam ter problemas. Apesar de gozarem de vida longa, nenhuma coruja é eterna e quando a Doutora morresse, quem passaria a aconselhá-los?

Após muitas confabulações, foi decidido dar-lhe uma aprendiza, coruja, claro, que fosse aprendendo com a mestra e a pudesse um dia substituir.

Apesar do incentivo de comida certa e uma vida sem trabalhar, bom, pelo menos para sobreviver, não houve exatamente um enxame de candidatos. A escolhida teria de ser jovem – sim, de que serviria uma aluna idosa exceto causar a curto prazo o mesmo tipo de problemas? – mas não em demasia a ponto de ter a estouvadice da adolescência. E a ideia de passarem uma boa parte do dia e da noite enfiadas numa toca não era exatamente aliciante para aves novas que tinham prazer em voar e explorar o mundo à sua volta.

Houve de facto apenas uma candidata, um corujinha que ferira uma asa durante o seu primeiro voo e que mal conseguia sobreviver, alimentando-se muitas vezes de restos de outros animais, mas sempre à socapa por saber perfeitamente que era uma presa fácil.

A ideia de passar a comer bem e era um motivo mais do que suficiente, isto para além de se tornar inviolável, nem o predador mais esfaimado ousaria atacá-la. E ter de passar a maior parte do tempo no mesmo sítio não a perturbava, voar fazia-lhe doer as asas, pouco diferente seria.

Foi pois aceite pela comissão encarregue da escolha, sob a condição, claro, de ser aprovada pela Doutora.

Obtido o seu acordo, a corujinha instalou-se num canto da toca, de onde poderia ouvir e ver tudo, mas passando despercebida na escuridão que ali reinava. Poucos sabiam deste arranjo e, assim, os pacientes podiam continuar a expandir-se à vontade na convicção de que tudo ficaria apenas entre eles e a sábia coruja.

Sendo organizada por natureza, a corujinha arranjou um grande bloco e duas canetas de cores diferentes para ir tomando nota do que os pacientes diziam e das sábias respostas da Doutora, tudo com muitos sublinhados e espaço para as suas notas e opiniões pessoais. Tinha ainda um caderno onde planeava ir anotando os casos de acordo com o tema tratado, formando assim quase um compêndio de casos e tratamentos. Sim, a nossa corujinha tinha alma de académica!

Os meses foram passando e a corujinha, agora bem gordinha e lustrosa graças à boa alimentação servida a horas certas, lá ia anotando zelosamente tudo o que os pacientes diziam, indo já no seu sexto bloco. Mas as linhas destinadas às sábias palavras da Doutora continuavam totalmente em branco. Esta limitava-se a fechar um dos olhos, ou ambos, virava ligeiramente a cabeça, num ou outro caso extremo emitia um som impossível de reproduzir e que tanto podia ser assentimento, negação ou pergunta, mas, à parte os cumprimentos e despedidas da praxe, não abria a boca, por muito longa que fosse a consulta.

Depois de muito matutar, a nossa corujinha encheu-se finalmente de coragem e atreveu-se a questioná-la num belo dia em que estavam sozinhas:

- Mestre, não entendo a razão da sua fama. Nestes meses que passámos juntas nunca lhe ouvi uma palavra, uma frase, muito menos um conselho. Mas todos juram que foi graças a si que resolveram certos problemas ou que encontraram o caminho certo.

Após um curto silêncio, a sagaz coruja dignou-se esclarecê-la, mas não antes de a fazer jurar segredo eterno.

- Sabes, descobri há muito que os que me consultam não estão minimamente interessados na minha opinião. No fundo, já sabem muito bem o que têm de fazer. Mas pensar dá trabalho e é algo que a maior parte evita. E tomar decisões, sobretudo difíceis, exige um tipo de coragem que pouca gente tem. Virem aqui, exporem-me os seus problemas ou dúvidas, nada mais é do que dizerem em voz alta o que não ousam dizer a si mesmos, nem sequer mentalmente. Limito-me, pois, a fazer sinais ou a emitir sons ininteligíveis que interpretam como apoio ou não, consoante o que já pensavam antes de virem.

E continuou:

- A verdadeira sageza não está em dar bons conselhos ou orientar os seres para onde achamos que devem ir. Quem melhor do que eles sabe o que resulta para si mesmos? Não, a verdadeira sageza está em levá-los a fazerem o que já sabiam que tinham de fazer, o que sabem que é correto, por muito complicado que seja, mas deixando-os convencidos de que foram para aí levados por um ser superior, bem mais sensato do que eles.

Luísa Lopes

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