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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Uma Ocasião Especial


 

Desde muito novo que se habituara a ouvir elogios constantes. Descendia de uma das melhores famílias do País e nascera num bom ano. Num excelente ano, até! A sua infância e juventude foram cuidadosamente controladas e acompanhadas, não fosse sofrer alguma má influência que  prejudicasse as suas boas qualidades e o seu pleno desenvolvimento. Ao fim de alguns anos de conforto e carinho contínuos e de uma educação esmerada, foi finalmente considerado apto a deixar a casa paterna: tornara-se um bom vinho tinto, que não envergonhava em nada a marca famosa que ostentava. Esperavam, até, que se tornasse um dos seus mais famosos membros, trazendo-lhe um acréscimo bem merecido de honra e glória.

Das imensas caves da família transitou para uma outra, bem mais pequena, é claro, mas igualmente confortável e completamente apropriada à sua alta categoria. Como não podia deixar de ser, as condições ambientais e os cuidados recebidos eram os mesmos a que fora habituado, pelo que mal deu pela mudança.

Sob certos aspetos, estava até melhor aqui. Os seus companheiros eram todos adultos, uns mais do que outros, é certo, mas todos tinham ultrapassado a necessidade de tagarelice da infância, ou os caprichos, amuos e inconsistências da juventude. Como vinham de locais e países bem diversos, era interessante escutar a narração das suas experiências, por vezes bem diferentes das suas. Havia, até, entre eles, veneráveis anciães, carregados de experiência e de anos, cujas memórias remontavam a um passado extremamente nebuloso e quase esquecido. Por isso não sentia grandes saudades da casa de família ou dos seus companheiros de então. Limitava-se a recordar esse período crucial da sua vida com uma certa afeição distante e uma melancolia quase convencional.

E os anos seguintes foram passando suavemente entre longos sonos  repousantes e doutas conversas com alguns colegas de eleição, todos eles membros de famílias igualmente respeitadas e famosas. A cave continha, até, alguns dos seus parentes, embora nem todos da mesma elevada categoria. Alguns eram mesmo o que se poderia chamar de ‘parentes pobres’. Mas estes sabiam bem a fraca posição que ocupavam e portavam-se com a humildade e o respeito apropriados.

De vez em quando abria-se a porta da cave e um dos membros daquela tão insigne sociedade era retirado com a solenidade e o aparato adequados a tão augusta ocasião. Era sempre um dia de excitação mal contida para todos, em particular para os mais antigos. Quem seria o feliz escolhido? Seria desta? Caber-lhes-ia, finalmente, a vez? Bem sabiam que os cuidados e tratamentos recebidos desde a infância e juventude e os longos anos passados na escuridão e sossego da cave apenas serviam para os preparar para a prova suprema: o momento em que seriam julgados no Tribunal da Mesa.

Para isso viviam, era isso que aguardavam desde sempre. A única razão para a sua existência era o instante final da Prova. Saberiam, então, se havia justificação para a sua existência ou se todas as provações do passado tinham sido em vão. O seu nome e o das suas famílias dependiam do resultado desse exame. A responsabilidade era tremenda e a ideia de tudo jogar num só momento, terrível, medonha, até, mas incrivelmente aliciante. Era a atração do abismo, o pavor de falharem e de serem reduzidos a nada, que os fazia discutir o assunto em murmúrios deliciosamente conspiratórios. Embora todos aparentassem confiança no bom resultado da experiência, lá bem no íntimo residia um núcleo de dúvida e ansiedade, cuidadosamente ignorado e negado para bem da sua sanidade mental.

O nosso herói mal podia esperar pela sua vez. Continuava a preparar-se intensa e conscienciosamente, executando diariamente os exercícios que lhe tinham sido aconselhados pelos seus educadores e tendo o máximo cuidado com as emoções, que só o podiam prejudicar. Nas suas conversas mantinha um tom de voz cordato e comedido, fugindo de qualquer assunto que o pudesse excitar ou enervar. Era sempre bem educado, respondendo polidamente aos que com ele falavam, nem que o interlocutor fosse desagradável, ofensivo ou decididamente detestável. Na sua posição não se podia dar ao luxo de ter ódios ou discussões que lhe poderiam ser fatais! Tinha de manter a qualidade, de fazer jus ao seu nome e às expectativas da família!

Chegou, finalmente, o tão ansiado dia. Retirado do seu canto, foi limpo e cuidadosamente transportado para fora da cave. Não olhou para trás e nem mesmo pensou em despedir-se dos outros. Embora com alguns deles tivesse o que se poderia considerar uma franca amizade, faziam parte do passado, e o que lhe interessava agora era a provação que se aproximava e o futuro glorioso que o aguardava. Além disso, precisava de fazer os últimos preparativos, de executar os exercícios prescritos, indispensáveis para a ocasião. Era um momento solene, e como tal devia ser acompanhado do estado de espírito apropriado.

A luz crua do dia feriu-lhe os olhos demasiado habituados à escuridão confortável da cave, desorientando-o e incomodando-o por instantes. Mas os exercícios de descontração aprendidos na juventude em breve deram o seu fruto, permitindo-lhe um rápido retomar do seu já famoso domínio sobre si mesmo. Sentia-se confiante e apto a enfrentar qualquer Tribunal, qualquer Prova!

Mas a sua expectativa saiu gorada. Ainda não chegara o momento, tão esperado e tão temido, de se apresentar ao Tribunal da Mesa. Não era a sua vez de enfrentar a Grande Pergunta, de saber a resposta à Questão da Vida. Não fora para isso que o tinham ido buscar, mas sim para o oferecerem.

Por instantes sentiu uma leve irritação, logo prontamente reprimida. Preparar-se com todo o cuidado e afinal para nada! Mas um sentimento de orgulho em breve se sobrepôs. Devia ser realmente muito especial para ser escolhido entre tantos outros como dádiva! Que honra para a sua família, para o seu nome! E que responsabilidade acrescida! Esperava não desmerecer de semelhante prova de confiança.

As condições de transporte foram as adequadas, embora se pudesse desejar melhor. Mas as viagens implicavam sempre um certo desconforto, facilmente ultrapassado uma vez atingido o conforto do destino. Havia mesmo alguns exercícios mentais que ajudavam a superar as possíveis más consequências da mudança, evitando o aparecimento de perturbações que poderiam vir a ser fatais a organismos tão delicados. Suportou, pois, com paciência, as atribulações passageiras, sabendo que as esqueceria assim que se instalasse.

Ao chegar à sua nova casa, porém, sofreu um profundo choque que quase o matou. Sem qualquer respeito pelo seu nome e categoria foi enfiado de qualquer maneira num vulgaríssimo armário de madeira, já quase cheio com outras garrafas de vários formatos e tamanhos. Ainda por cima colocaram-no em pé, o que sempre lhe provocava um grande mal-estar. Ao fecharem a porta do armário ouviu alguém dizer:

— Este é bom de mais para todos os dias. Ficará para uma ocasião especial.

Ainda sentiu um bocadinho de orgulho ao ver-se assim classificado e colocado à parte, mas a sua situação atual era demasiado má para que esse sentimento durasse muito. Deixou-se, pois, cair numa melancolia profunda, ficando durante muito tempo totalmente alheado do que o rodeava. Passadas algumas horas, porém, a sua disciplina interior foi mais forte do que as péssimas condições ambientais e o nosso herói conseguiu dominar a má disposição física provocada pelo choque moral sofrido e pela posição totalmente imprópria em que o tinham colocado. Olhou, então, pela primeira vez em torno de si, para estudar melhor o local onde teria de passar algum tempo, possivelmente o resto da sua vida.

O armário era bastante pequeno e estava sufocantemente quente e abafado. Nada que se comparasse à frescura repousantemente constante das caves que conhecera anteriormente. A porta tinha pequenas fendas irregulares e vedava muito mal, deixando passar grandes laivos de luz. Estes eram frequentemente interrompidos por rápidas sombras, e com a continuação este cintilar aleatório tornava-se bastante incómodo. O teto era baixo, pouco distando do topo da sua cabeça, o que, aliado à grande quantidade de garrafas ali existentes, lhe dava uma certa sensação de claustrofobia. Que péssimas condições de habitação, muito em particular para seres habituados a um certo conforto e bem-estar!

Como a iluminação ambiente era suficientemente boa para isso — demasiadamente boa, até — pensou em identificar os seus companheiros de desgraça. Seria agradável ter uma boa conversa, trocar dados e experiências pessoais, ficar a conhecer melhor o local, as condições gerais e o que poderia esperar do futuro. Poderiam, mesmo, lamentar-se juntos, recordando com nostalgia os bons velhos tempos passados em locais bem mais apropriados.

Foi quando teve um segundo choque, talvez ainda maior que o primeiro: não havia um único nome decente entre eles, nem mesmo o de um daqueles parentes pobres e vagamente desclassificados que todas as grandes famílias possuem, embora raras vezes o reconheçam. Tudo plebeus e, a avaliar pelas poucas frases que escutou, plebeus da pior qualidade. Autênticos vagabundos! Verdadeiro lixo! Nunca se vira ou sequer imaginara em tal companhia! Era totalmente inadmissível que o colocassem ali, entre semelhante gente!

Foi de mais. Os incómodos da viagem, a má posição em que ficara e os dois tremendos choques morais que sofrera provocaram-lhe um estado de inconsciência total, quase de coma, que durou vários dias, talvez até vários meses.

Ao fim desse tempo, que lhe pareceu imenso, mas talvez o não fosse, a consciência voltou-lhe pouco a pouco, ténue, a princípio, depois clara e bem precisa. Antes o não fosse. Nas condições em que se encontrava, uma certa diminuição das suas faculdades seria desejável, indispensável até para a preservação da sua sanidade mental. Mas o treino que lhe fora dado na juventude tinha sido demasiado bom, o seu autodomínio excessivamente aperfeiçoado por anos seguidos de trabalho persistente e consciencioso. Quer o quisesse, quer não, o seu espírito estava bem desperto e tão acutilante como sempre o fora.

A maior parte dos seus companheiros fora substituída durante esse intervalo, embora mal se desse por isso. Os novos eram da mesma qualidade, ou completa falta dela, dos antigos. O armário, esse, continuava tão desconfortável como dantes, talvez um pouco pior com a habituação. Tudo estava na mesma. A sua situação era verdadeiramente horrível, catastrófica, trágica mesmo. Infelizmente, nada podia fazer a esse respeito, exceto desejar que a tal ‘ocasião especial’ chegasse o mais depressa possível, salvando-o daquela vida infernal. Era uma razão suplementar, talvez a mais importante, para ansiar pelo momento supremo da sua vida.

Com a passagem do tempo, e para aliviar a monotonia dos dias sempre iguais e desagradáveis, decidiu tentar tirar o melhor partido possível da situação horrível em que se encontrava. Mas poucos resultados conseguiu obter. Os seus diversos companheiros eram realmente seres tremendamente incultos, que tagarelavam e se querelavam sem parar sobre as maiores insignificâncias. Não havia um pensamento mais original, uma ideia mais profunda, uma opinião mais abalizada! E que balbúrdia permanente, que vozearia constante!

Que saudades sentia das longas, estudadas conversas a que se habituara na sua anterior residência. Das calmas discussões filosóficas, da troca de experiências ou de histórias. Lembrou-se, até, com pena, do balbuciar dos novos e das contínuas quezílias dos jovens instáveis, que tanto o tinham irritado na casa paterna. Tudo era preferível à inanidade intelectual dos seus atuais parceiros.

Aos poucos foi-se fechando em si mesmo, recusando qualquer contacto com os outros. Quando algum novato tentava inclui-lo na conversação geral, fazia-lhe imediatamente notar que considerava isso como uma grande falta de respeito. Era um ser de qualidade para uma ocasião especial, e não um desclassificado como eles. Ao fim de algum tempo deixaram-no em paz, passando palavra aos recém-chegados. Não o compreendiam, mas acatavam as suas manias e necessidade de isolamento. Até certo ponto, era mesmo respeitado, sendo olhado como um ser estranho e exótico que ali aparecera sem se saber como. Mas esse respeito não o consolava da tragédia atual, pois era dado por quem tudo ignorava sobre o seu nome e categoria.

Tentava não escutar o que se passava à sua volta, dedicando o seu tempo a especular sobre questões que sempre o tinham interessado: o sentido da vida e a resposta à Grande Pergunta. Apesar do perigo que isso representava para a sua sanidade mental, chegou mesmo a entrar no campo proibido das especulações sobre o Depois, o que estava Para Além da Prova. Em suma, a questão da sobrevivência de algo pessoal, de uma essência indetetável que estaria acima de meras classificações de qualidade ou categoria. Mas por pouco tempo o fez, pois o seu sentido de autopreservação era demasiado forte para continuar num caminho que só lhe prejudicaria a saúde. Pelo menos, assim fora ensinado.

A porta do armário era aberta com muita frequência para retirar um dos outros, o que contribuía para agravar as más condições do ambiente. Os seus companheiros iam sendo substituídos com grande regularidade, mas sempre por outros com a mesma fraca qualidade física e intelectual. Inicialmente aguardara essas substituições com uma certa dose de expectativa. Podia ser que um dia aparecesse alguém com quem pudesse conversar, mesmo que não fosse um gigante intelectual. Bastar-lhe-ia um único companheiro que tivesse uma pequena inteligência e alguns, mesmo poucos, conhecimentos. Sempre seria melhor que o habitual. Mas as desilusões foram tantas, que ao fim de algum tempo já nem reparava nos recém-chegados, embora estes lhe fossem imediatamente apresentados com uma certa cerimónia.

Aos poucos entrou numa certa modorra melancólica, bastante agravada pelas péssimas condições em que vivia. A temperatura variava continuamente durante o dia e ao longo do ano, sendo umas vezes mais baixa e outras mais alta, mas nunca a ideal. Sentia uma dor contínua no estômago, devido à sua incómoda posição e tonturas provocadas pelo cintilar da luz através das fendas. E isto para já não falar na claustrofobia provocada pelo excesso de moradores, que por momentos se tornava de tal modo intolerável que só lhe apetecia acabar com aquela existência ignóbil, mesmo que isto significasse a vergonha de faltar ao exame final.

Por vezes era deslocado sem quaisquer cuidados, para facilitar a arrumação de outros, ou, o que era ainda pior, para limpeza do armário. Nessas ocasiões tinha de aguentar a luz forte do exterior e grandes abanões e solavancos. De uma das vezes foi mesmo agitado com tal violência, que perdeu os sentidos durante várias horas. Acordou muito enjoado e só se sentiu normal, ou quase normal, passados muitos dias.

O desespero atacou-o com força. Deixou as especulações filosóficas e passava os dias a remoer o seu passado e as suas mágoas. Para ali estava ele, sozinho a um canto, em condições que não desejaria a uma mera garrafa de vinagre sintético. Sonhava com os confortos das suas anteriores caves e com os seus antigos companheiros, a maior parte dos quais estaria já, talvez, no Grande Além. Clamava contra a pouca sorte que o trouxera até ali e lamentava os muitos anos de trabalho e de preparação, que se estavam a perder nas condições atuais. Assustava-se com os danos que a péssima situação em que se encontrava poderia estar a provocar no seu delicado organismo. Acima de tudo sentia uma imensa pena de si próprio e do ruir de tudo o que lhe fora prometido: uma vida confortável e agradável, durante a qual se poderia preparar adequadamente para o seu destino final.

Tentava, ainda, desesperadamente manter uma certa equanimidade de espírito, mas era difícil, muito difícil. Tudo lhe parecia em vão. Só com grande dificuldade se decidia a executar o mínimo de exercícios de manutenção, e nem sempre com a atenção e o cuidado devidos. A noção de que desleixava as suas obrigações essenciais ainda agravava mais o seu já pobre estado de espírito. Enfim, sentia-se completamente infeliz e desesperava da vida.

Ansiava cada vez mais pelo momento de enfrentar a Prova Suprema. Era uma maneira de acabar com a degradação corrente e não só. Estava convencido de que nessa altura seria, então, devidamente apreciado e elogiado e a sua qualidade amplamente reconhecida. Ao imaginar os comentários e elogios que ouviria, sentia uma alegria fugaz que por vezes até lhe permitia esquecer um pouco a realidade. Mas não por muito tempo.

Chegou finalmente a tal ocasião especial. Quando o retiraram do armário, ainda pensou que fosse para a limpeza do costume. Pelo menos os abanões e a falta de cuidado foram os habituais. Mas todos os outros permaneceram dentro do armário, o que deveria queria dizer que estava por fim a caminho do Tribunal da Mesa. A emoção que sentiu nesse momento foi de tal modo grande, que, embora desde há muito os ignorasse, não resistiu em dizer aos companheiros de armário, à laia de despedida:

- Agora, sim, vão ver o que é a verdadeira qualidade. Depois de me provarem, ninguém mais vos tocará.

Levaram-no para um local demasiado iluminado e sentiu que lhe retiravam a rolha, embora com muitas hesitações e recomeços. Apesar das inúmeras provações porque passara até então e do sentimento de profundo desespero que há muito o invadira, o profissionalismo que lhe fora inculcado na infância veio ao de cima. Apressou-se, pois, a dar início à meditação prescrita para a ocasião. Não foi fácil concentrar-se, no meio de tanto solavanco e abanão. Mas conseguiu-o, o que muito o orgulhou.

Já na mesa executou os vários exercícios de respiração e descontração aprendidos num passado que sentia cada vez mais remoto, destinados a trazerem ao de cima o melhor das suas numerosas e variadas qualidades. Era um momento de grande solenidade e havia muitos rituais a cumprir. Teve, no entanto, de apressar-se, pois não lhe deram tempo suficiente para o poder fazer com a calma e o método desejáveis.

Ouviu uma grande algazarra, que lhe cortou ainda mais a frágil concentração, seguida de aplausos gerais. A garrafa foi erguida com brusquidão e, sem mais delongas, o vinho especial foi atabalhoadamente distribuído pelos inúmeros copos que avidamente se estendiam.

Infelizmente, o Grande Momento acabou aí. As más condições em que vivera desde a mudança, os profundos choques mentais que sofrera, o grande isolamento dos últimos tempos e a depressão em que soçobrara tinham-no azedado, tornando-o intragável.

Foi despejado sem cerimónias pelo cano abaixo.

Luísa Lopes

Foto de Markus Spiske no Pexels

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