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quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

ALEGRIA, ALEGRIA


                                    (Revisitando  e adaptando aos novos tempos um conto do meu primeiro livro 

“30 segundos”, Ed. Publit, 2007) 


Edna Teresinha se assustou com o interfone tocando tão cedo. 

Estranhou o despertar repentino, pensou naquelas coisas quando 

somos acordados de supetão. Onde estou, que dia é hoje, quem 

deve ser? 

Há tempos, o interfone, o telefone e o celular não tocavam,

Nem se ouvia algum barulhinho de mensagem, naquele

quarta e sala em Copacabana.

Arrastou os chinelos até a cozinha, chutou o pé da cadeira 

com o mindinho, maldisse a vida. E soube, enfim, pelo porteiro, 

que havia duas encomendas.

Não se lembrava que tinha encomendado alguma coisa. 

Vestiu máscara, empapou as mãos de álcool em gel, abriu 

cuidadosamente a porta, em seguida, a do elevador. 

Estavam lá uma caixa e um sacola de compras.

Passou a mão na testa, franziu as sobrancelhas e espremeu a 

memória já claudicante para lembrar que tinha feito uma compra 

pela internet e pedido algumas bobagens ao supermercado.

Estava começando mais um despertar, um tanto diferente de outros 

dias tão vazios quanto iguais.

Jogou spray de Lysoform na caixa e na sacola, e as colocou 

sobre a mesa. Deixou as duas lá para que dessem algum sinal do que seriam. 

E partiu para passar um café salvador.

Não escovou os dentes? Não lavou o rosto? Não deu um jeito nos cabelos? 

Não. A solidão permite pular certas etapas da civilidade.

De caneca na mão, abriu primeiro a sacola. Uma garrafa de champanhe, 

um cacho de uvas verdes sem caroço e um queijo de minas.  

A hora da caixa foi mais celebrada. Finalmente, lembrou que tinha comprado 

um vestidão longo, esvoaçante e branco, sem muitos babados, sem manga, 

mas com um decote que julgara arrasador na foto da internet.

Entendeu tudo. E sorriu.

Colocou a garrafa e as uvas para gelar. Dividiu o queijo em dois, devorou 

a primeira metade. Gostava de queijo fresco com café sem açúcar, sua dieta 

era minimalista: apenas os legumes cozidos e frutas frescas que a menina da faxina deixava 

uma vez por semana, e vários comprimidos, alguns tarjas pretas, e muitos 

daqueles que prometem milagres e longa vida nos anúncios à tarde na televisão. 

Montou a tábua de passar roupa na sua minúscula sala e levou algum tempo para 

encontrar a extensão do ferro elétrico. Achou no fundo de um baú de tralhas, 

onde moram as coisas que a vida esqueceu.

Tão logo, já passava o vestido com esmero e um sorriso interior, o mesmo que 

permaneceu quando esticou cuidadosamente a roupa no sofá da sala. 

Voltou para tentar dormir. Não conseguiu. Passou o resto dia zapeando a 

TV com um pote de pipocas no colo. Só pipoca e algumas fatias de queijo branco.  

Qualquer outra coisa, acreditava, poderia comprometer a cintura no vestido. 

Quando o sol se pôs, entrou no chuveiro. Banho morno e longo, cafunés de shampoo 

e condicionador, uma gilete para fingir uma depilação devida, hidratante pelo corpo, 

antirrugas no rosto. Fixou o olhar nos olhos refletidos, simulou com as mãos uma 

esticada na pele abaixo das orelhas. Lamentou pelas plásticas adiadas, 

pela curta validade do Botox. 

Balançou a cabeça e o cabelo molhado salpicou o espelho, que lhe disse que estava 

bonita assim mesmo, sem secador, do jeito que o tempo e a circunstância esculpiram.  

Zanzou nua pela casa sem fechar as janelas por um tempo impossível de se precisar.

Às 23:05h foi à cozinha e pegou uma taça fininha no armário. Cheirou e passou água 

misturada com gelo, para tirar os sinais de pouco – ou nenhum - uso. 

Às 23:16h abriu a champanhe e serviu-se. 

Às 23:25h vestiu-se. O branco lhe caiu bem. O decote nem tanto.

Das 23:30h às 23:54h dançou, cantou, esvouou-se, rodopiou ao som da televisão que transmitia 

um show. E leve e descalça saltitou feliz até o quarto. 

Às 23:58h abriu as portas do armário. Um espelho contra o outro. 

Colocou-se no meio. Olhou para um lado, olhou para o outro, viu infinitas pessoas, 

todas de branco.

Meia noite, comeu uma uva, largou a taça esvaziada na mesinha de cabeceira, 

pulou num pé só, o direito, e bebeu na garrafa.

Mandou beijo praquela gente toda, levantou um brinde, encharcou o vestido de champanhe. 

E desejou Feliz 2021. 


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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