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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O Prefeito e O Estagiário


I
“Sentaram-se no chão ao lado dele por sete dias e sete noites, sem dizer-lhe palavra, pois viam como era atroz a sua dor.” (Jó 3: 13; tradução da CNBB.)

            Carlos atravessou silencioso o corredor que conduzia ao seu gabinete: o gabinete do prefeito. De cabeça baixa e passos lentos, mal via os funcionários pelos quais passava. Porque eles não passavam. Ao avistá-lo, paravam e o olhavam em silêncio, sem se atreverem a dizer nada. Parou diante da porta e não entrou, porque naquele momento a faxineira estava limpando justamente diante da porta que fechava seu gabinete. De olhos baixos no chão que limpava, só percebeu a presença do governante da cidade quando o trapo que envolvia a sua vassoura tocou o par de sapatos importados que estava ali parado sem que seu dono tivesse se animado a pedir licença. Ergueu os olhos e seu olhar cruzou com os olhos baixos do prefeito. Em um segundo, a mulher, até então curvada, esticou-se como um soldado em posição de sentido e quebrou o silêncio do mausoléu em que se tornara a prefeitura naquela manhã:
 – Deus te abençoe, senhor prefeito.
Os olhos do prefeito rebentaram em lágrimas e ele abraçou a faxineira, que até então era invisível.
Sem palavras diante da inesperada reação do governante, os funcionários que viam a inesperada confraternização aplaudiram – as palmas foram tão prolongadas que deu tempo para a faxineira repetir várias vezes no ouvido do prefeito “Jesus te ama” e para um estagiário do curso de Administração Pública tirar uma foto com o celular para, minutos depois, enviá-la para uma jornalista por quem se apaixonara. – Como sua deusa agradecer-lhe-ia essa foto inusitada?

II
O prefeito ficou por um tempo imensurável trancado no gabinete, à espera de que o vice viesse até ele. Não olhava o relógio, olhava apenas uma imagem de São Francisco de Assis que o sobrinho, seminarista, deixara como presente em seu gabinete quando lá estivera com o pároco da igreja matriz, quando ele assinara o decreto tombando uma imagem de São José de Anchieta, esculpida em pau-brasil no século XIX, doada por um devoto espanhol. Naquela manhã fria de junho, com o tempo parado, não saberia dizer se o vice demorou a dirigir-se à sua porta. As batidas na porta não interromperam suas orações, pois não tinha disposição nem mesmo para isso, pois a dor, ao invés de espanar a poeira que encobria sua fé, parecia disposta a terminar de enterrá-la.
 – Espero não tê-lo feito esperar muito. O presidente da Câmara me reteve mais tempo do que eu desejava. Ele, naturalmente, aprova seu afastamento por um mês, como Vossa Excelência pediu-lhe ontem por email.
 – Você...
– Pois não?
 – Me trate por você. Estamos a sós e você é meu amigo dos tempos de escola. Você me dava cola nas provas de Matemática. Nada de formalidades aqui.
 – Oh, meu amigo! – fez o vice, abrindo os braços para abraçar o correligionário.
Era o segundo abraço do dia. Mas se Carlos não teve palavras para responder à faxineira desconhecida, tinha muitas para o seu fiel vice. Estavam numa folha de papel que lhe entregou quando soltou-se dos seus braços.
 – O que é isso, Carlos?
 – Minha renúncia. Está assinada com a data de amanhã. Amanhã, neste horário, quando eu estiver em minha casa de praia, respirando o ar marítimo enquanto escuto minha família rezar o terço em busca de algum conforto, você lê para os jornalistas.
 – Não é para tanto. Você se afasta um mês, dois, depois volta para reassumir seu cargo.
– Essa dor eu não vou deixar no litoral, Ricardo. Ela vai me acompanhar enquanto eu viver.
 – Eu não faço ideia da dor que você sente, meu amigo. Nem posso imaginar. Mas essa dor não é apenas sua. Muitas outras pessoas vivem com essa mesma dor. Perder um filho...
 – Ricardo, meu filho não morreu de câncer nem foi devorado por um tubarão. Ele cometeu suicídio. O que me resta fazer aqui?
– Pense bem, Carlos. Eu não vou me precipitar e mostrar essa carta amanhã. Ela vai ficar bem guardada esperando você voltar da licença e você então verá que no dia de hoje não está pensando direito, não pode tomar decisões.
 – Ricardo, qualquer pessoa tem o direito de sofrer a dor de perder um filho dessa maneira. Mas não um prefeito. Um prefeito não tem esse direito. O que as pessoas vão dizer de mim? “Se ele não soube cuidar do próprio filho, como cuidará da cidade?”
– Carlos...
 – Os jornais não dizem, a ética dos jornalistas – sim, eles têm ética – os impede de dizê-lo na imprensa, mas basta ler as redes sociais. O cidadão comum pensa isso...
– Em outras circunstâncias eu lhe diria que o partido quer você candidatando-se ao Senado, mas isto não é hora de falar de política. Aliás, eu não deveria falar nada com você, apenas ouvir. E cuidar para que você não faça bobagens... – disse Ricardo, rasgando a carta da renúncia.


III
Uma semana depois, Carlos enviou carta a todos os vereadores, declarando sua renúncia, prontamente aceita pela Câmara; três meses depois a jornalista ganhava um prêmio nacional pelo artigo que escrevera a partir da foto do estagiário. Ela foi comemorar o prêmio com seu noivo numa pousada em Ilha Bela e o estagiário, após tentar afogar com vodka a dor do abandono, colidiu sua moto com uma ambulância que cruzou seu caminho.
Quando foi visitar a sepultura do filho, Carlos lembrou-se do estagiário e separou do buquê uma flor para a sua lápide, que ficava mesmo ali ao lado.
(2 de maio de 2018)

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