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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

BACALHAU QUE NUNCA CHEGA.

Me chamavam de Ruth ou tia Ruth ou vó Ruth ou Dona Ruth. Minha filha Maria Eulália não
me chama de mãe, nunca chamou. Ruth, Ruth, Ruth. Meu neto Marcelinho me chamava de vovó, mas quando morou aqui em casa me chamava só de velha. Velha, sua velha. Eu nunca liguei.
A velhice tem dessas coisas: você escolhe se é carinho ou não é. Eu achava que era. Minha filha
diz que não. Diz que Marcelinho não tinha mais jeito, se perdeu com as más companhias.
Eu não acredito. No fundo, no fundo, ele é um bom menino, filho de uma mãe, essa sim,
desmiolada.

Todo Natal Maria Eulália me aparece com um marido diferente. Já perdi as contas dos Natais
em que ela vem sem meu neto, chega de mãos dadas com um sujeito cara de fuinha,
equilibrando uma bandeja de rabanada, dizendo que o filho vem depois. Mas Marcelinho
nunca chega. Já faz mais de cinco maridos da mãe que ele não vem ver a velha. Mas esse ano
ele vem. Com a mãe desmiolada e seu valete da vez.

Meu neto sempre gostou de bacalhau. Na cadeirinha de bebê, lambia os beiços, sujava as
mãozinhas e eu sempre cuidava de tirar o caroço da azeitona. Tenho pânico de engasgo de
criança. Mas graças ao Jesus Menino, nunca aconteceu. Nem com azeitona nem com espinha
do bacalhau. Sempre foi do bom. Nunca economizei. Sem espinha, autêntico norueguês do
Lidador. Aprendi a receita com minha bisavó lisboeta, que chamava o prato de Bacalhau
Que Nunca Chega e dizia que um rei de Portugal não parava de comer a iguaria, amolando os
cozinheiros num ritual sem fim.

Parece que estou ouvindo minha bisavó. Primeiro, você desfia bem desfiadinho o bacalhau.
Depois, numa panela aberta, frita a cebola e o alho até dourar. É hora de jogar presunto picadinho. Quando tudo a saltitar, você dispõe o bacalhau, as azeitonas, batata frita fininha e um ovo.
Abaixa o fogo, e vai mexendo, mexendo, mexendo. E não esquece de respingar, comedidamente, azeite português para servir pelando. Quando estiver acabando na terrina, comece tudo de novo.

Pronto. A mesa está pronta. Quatro pratos. Já foi tempo em que o Natal aqui em casa tinha doze pratos. Eu disse: doze pratos. Eles foram quebrando um a um e eu resolvi tirar as cadeiras da mesa conforme os pratos iam rareando.Cadeira para quê? Aqui só senta memória. E memória não tem bunda, fica vagando pelo ar, entrando pelas rugas, encharcando os olhos. Velhice tem dessas coisas. Você escolhe se chora de tristeza ou alegria pelo que viveu. Eu acho que é alegria. Minha filha diz que não. Diz que é arteriosclerose misturada com amargura de ver o tempo
passar. Diz que eu estou mofada, não sei mexer no celular. Filha desmiolada. Cada Natal,
um marido diferente. Cada Natal, dizendo que Marcelinho vai chegar. Cada Natal, inventando
coisas desagradáveis a meu respeito na frente de uma criatura que nunca vi mais gorda.

Quatro pratos, quatro cadeiras. Ah, chegaram. Minha filha, rabanadas e um tal de Gilson.
Gilson? Não era o do ano passado, Maria Eulália? Não, Ruth, o do ano passado era Gildo,
Gil-dô, aquele cafajeste. Minha filha, você não é nada original. Cadê o Marcelinho? Gilson
trouxe um vinho, Ruth. Mudou de assunto por quê? Cadê o Marcelinho? Gilson é um homem
de sensibilidade, Ruth, canta num quiosque da praia. Foi lá que o conheci. Não quero saber
de suas intimidades, minha filha, não quero saber que esse Gildo é cantor, - Gilson, Ruth,
fala baixo, Ruth.... Não quero saber que o vinho ele trouxe para me chaleirar. Quero saber
do Marcelinho.

Quatro pratos, três à mesa, um silêncio que espeta como agulha de tricô. Só os talheres tilintando
e ao longe algumas risadas na vizinhança. A conversa nem engrenou e a travessa está vazia.
O tal do Gilson raspa o prato, ensaia um elogio vulgar, pega o chaveiro e começa a bater as
chaves na palma da mão. “Tóf, tóf, tóf, tóf, tóf, tóf...é noite de Natal, tóf, chegou Papai Noel, 
tóf, estrelinhas a bilhar, blim blom, os sinos a badalar, blim blom, tóf, tóf... ” Mais um idiota
que minha filha me traz de presente. Dessa vez com voz de cana rachada. Isso sim me dá
vontade de chorar. Dizem que é melancolia. Disfarço, recolho os pratos e vou à cozinha recomeçar
o preparo do bacalhau para o Marcelinho. Vai que dessa vez ele chega.

Olho na pia poucas louças empilhadas, poucos talheres sujos, uma panela com resto do bacalhau grudado e no aparador uma bandeja de rabanadas. Parecem sola de sapato. Vindo da sala, ouço
tóf, tóf, tóf. Maria Eulália também resolve cantar.“É noite de Natal... chegou Papai Noel, tóf, tóf...”. Aí dói no peito. Saudade do tempo em que meu neto mexia na minha bolsa e sumia com
as minhas joias.

Já passa de meia noite. Tóf, tóf, tóf. Mas Marcelinho vai chegar. Vou começar a desfiar uma
outra posta de bacalhau bem desfiadinha, tirar caroço das azeitonas. Natal tem dessas coisas.
Você escolhe no que quer acreditar. Enxugo a lágrima com a ponta do avental e
fico feliz de novo.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


3 comentários:

Fui procurar a receita de como fazer o bacalhau e achei um texto lindo, onde eu pude ver a Ruth esperando o Marcelinho. Como várias outras Ruth na vida

Obrigado, Anônimo pelo notório estímulo!

Obrigado, Anônimo. Pelo notório estímulo!

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