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terça-feira, 26 de setembro de 2017

Cadê o meu aluno Leonardo?

Durante quatro ou cinco anos, logo depois de formada, lecionei Língua Portuguesa na rede pública de ensino do DF. Dei aulas de literatura, interpretação de texto, redação e gramática — tudo junto no currículo, teoria e prática — para alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio (que naquele tempo ainda se chamavam Primeiro e Segundo Graus), em escolas das queridas Taguaiorque e Ceilândia, metrópoles do Quadradinho.

Ainda me recordo com carinho de alguns dos meus meninos. Tenho até hoje guardados, num baú da saudade e da poeira, alguns bilhetinhos e redações que eles fizeram para mim, a meu pedido ou espontaneamente, inclusive homenagens pelo Dia do Professor e aniversário.

Foi um tempo difícil, de alergia respiratória e rouquidão constantes para esta professora, mas de sensibilidade manifesta e de grande aprendizado. Não se pode negar que a sala de aula é um laboratório incrível, tanto do humano quanto do desumano. Convive-se com o afeto sincero e a atenção, mas também com o desdém, a injustiça e a ineficácia.

Sempre me pareceu que o professor é um ser impotente em potencial, que às vezes, muito de vez em quando, acaba conseguindo transformar, incentivar, melhorar alguma criatura, alguma família. Interessante: cada classe se destaca por algum tipo de teimosia. E há tanto as birras boas, produtivas, engraçadinhas, encantadoras, quanto os caprichos que enervam e esterilizam. Há sempre alunos adoecendo e outros sarando os professores.

Mesmo não atuando mais como regente há tantos anos, continuo interessada no papel de alunos e mestres. As memórias da educação, minhas experiências no ensino não me largam. Fico imaginando como estão hoje aquelas crianças e adolescentes com quem convivi de forma tão próxima durante um bom tempo de nossas vidas. As criaturinhas tagarelas encontraram um caminho próspero? Ou, bem ao contrário, tomaram o rumo fácil da droga, do crime, da miséria? Experimentaram algum amor sincero? Constituíram família? Fizeram amizade com a leitura? Ainda estudam? Escreveram ou ainda hão de bordar suas próprias histórias? Vivenciaram algum sucesso nos estudos e na profissão? Como têm se saído diante de qualquer simples vitória e diante de toda crua derrota do dia a dia? Será que aqueles meninos e meninas de outrora estão saudáveis? Felizes? Será que ainda estão vivos, apesar de toda a morte que lhes tem sido oferecida amiúde?   

Em especial, queria saber de um aluno lá da 6ª Série C da Escola Classe 6 de Ceilândia que estudou comigo em 96 ou 97. Magro, alto, bigodinho escuro, ele já era moço, e não mais criança. Sentava-se sempre na última fileira, meio disfarçado sob o boné preto. Bi ou trirrepetente de ano. Escrevia errado, como a maior parte dos colegas; mas era diferente, muito diferente de todos os outros. Órfão de pai e mãe, mas a tia havia lhe apresentado uma grande biblioteca. Tinha muitos livros em casa. Era culto o menino. Aos 16 anos, já havia lido Machado de Assis e Augusto dos Anjos! Descria de tudo, principalmente do amor e da felicidade. Pessimista, quase niilista, dava um jeito próprio, em todas as redações, em todos os diálogos, de realçar o poder da morte, da desesperança, do suicídio, do fim, da falta de jeito. Escrevia histórias cabeludas com uma beleza desgraçada, de vocabulário rico e estilo singular. Aquele garoto que teimava em se achar um nada significava tanto pra mim! Eu elogiava sua inventividade e tentava reanimá-lo para o belo, mas ele preferia (só sabia) retratar o negativo, o horror. Naquela época não se falava em depressão; mas a melancolia profunda estava lá, ardendo em seus poemas e narrações, em sua vida. Acho que seu prenome era Leonardo, mas não garanto.

Durante muito tempo acreditei naquele garoto, roguei sua conversão. Pedi que ele não se calasse nunca e bradasse com palavra e corpo e atitude. Ainda penso nele, mas não me lembro de seu rosto. Sei que era uma bela e comovente face negra de abandono. Adoraria revê-lo ainda em vida para uma conversa cheia de riso e de lágrima. Iria com prazer ao lançamento de seu primeiro futuro best-seller. Era um poeta excepcional, e eu queria continuar ouvindo sua voz de lirismo sombrio que perturbava.

A vida é estranha. Apresenta muita presença para logo transformar em ausência. O professor vai se despindo de si para carregar estradas. Por preconceito, vaidade ou desejo de independência, diz que não pode se ligar totalmente aos alunos, mas vive juntinho, sofrendo a história de cada um deles. A cada ano, lamenta o conteúdo não cumprido, o corte abrupto, o ano mal-acabado, seus Leonardos necessitados de salvação, a saudade sem chave. Entristece por não acompanhar o porvir dos alunos. E é sempre a mesma dúvida que grita: Será que eu compartilhei com eles o meu melhor? O meu mais ou menos? O meu pior? A minha esperança neles resultou em quê?


Maria Amélia Elói

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