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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

podias ser minha vizinha



Não sabias ainda o que ia suceder.
Não podias prever.
Preparavas um caldo de osso de borrego com nabiça e tinhas ouvido a porta de entrada e, já nem davas por isso, tinha-se-te descompassado o modo de sorver o ar que respiravas.
O corpo dele ficou a ocupar a porta que da cozinha levava à salinha de entrada que servia também de sala de jantar e sala de ver televisão, e que era onde deitavas a mais velhinha que, quando tinham alugado o T1, nem tinham pensado em fazer família, que a bem dizer nem tu nem ele nunca tinham pensado coisa nenhuma, apaixonados, doidos de quererem o corpo um do outro, e casaram poucos meses depois da noite em que se tinham visto pela primeira vez e tu nunca tinhas ouvido dizer dele, e havia tantos outros no grupo de colegas de trabalho e amigos, mas ou seria o destino a comandar-te ou terá sido o modo de ele te ter olhado, ou terás sido tu insinuante e ele nem mais te deixou, que assim to repetiria: “essas mamas redondas deram comigo em doido”; e tu embevecida do seu porte atlético, do cabelo já a ficar grisalho nas fontes apesar de tão jovem; ou terá sido o modo como te colocou a mão no ombro a pedir, soprando-te desasossegos em cada sílaba, a boca bem chegada ao lóbulo da tua orelha esquerda: “passas-me esse copo, por favor”. Ficaram nesse transe de estar apaixonados, ainda, e ainda mais, depois de terem passado juntos o início desse dia e o dia inteiro que era um dia de trabalho e ele terá dito: ”que se lixe” e disseste também tu, ou nenhum disse, ficaram sem sequer dar acordo do nascer do sol nem do cair da noite, tu e ele a rebolar desejos no tugúrio que era o quarto onde ele vivia emigrante de uma outra zona do país a fazer um serviço para a empresa onde era soldador.
E depois passaram a encontrar-se, a viver juntos quase sempre, até ao dia em que disseram um ao outro: “e se juntássemos os haveres que não temos?” e a rirem alto para o ar quente dum final de Maio. E tu terás olhado as casas que assomavam na outra margem a esconderem o bairro em que tinhas vivido até seres a namorada dele: tu a querer esquecer, a querer lembrar apenas que agora serias tu a comandar a tua vida.
Casaram sem cerimónia nem padrinhos nem convidados: “apenas eu e tu” tinhas dito, e em casa participaste que não voltavas num bilhete que deixaste na sala, e nenhum deles, mãe e padrasto, terá acreditado, tanto que nunca te procuraram, nem quando deixaste uma mensagem em que dizias: nasceu uma menina, nem quando escreveste num SMS: nasceu outra menina.
Casaram, e tu nunca tinhas reparado que ele te telefonava vezes demasiadas: “aonde estás, agora? estás sozinha? tomaste café com quem?” Nunca tinhas reparado, porque tu achavas que ele apenas vivia na ânsia de te ver ao final do teu dia de escritório naquela bomba de gasolina à saída da cidade, tal e qual como te acontecia, a ti que apanhavas o autocarro e demoravas hora e meia até caíres nos braços dele que te amava demasiado, e tu a ele, e por isso nem reparavas que nem eram mimos, e nem era de ele ser nervoso ou andar cansado, eram mesmo bofetadas por isto ou por aquilo, como seja por teres apanhado outro autocarro pois ficaras a conferir umas facturas. 
E nem quando ele te pontapeou o corpo, e nem quando te assentou a mão inteira por diversas vezes. 
Tu sabias que não era brincadeira, e ainda assim desentendias-te.
E um dia o corpo inchou-se-te desmesurado.
Sim, tu sabias, mas envergonhavas-te, que tu não querias fazer ruir o teu castelo de sonho.
E esperaste.
Tapaste-te, ferida, com mangas e encharpes e deixaste de usar decotes, até essa vez em que o rosto te ficou desfigurado, um dos olhos roxo e negro e a boca rasgada num canto.
Só então lhe gritaste: “nunca mais.”
Ou terás gritado outras vezes mas nem pensando que seria de má-fé que ele fazia aquilo.
Dessa vez, e daí em diante, ripostaste e ele quase te partiu o pulso, ou virou-se a ti armado com uma faca ou um pau, e tu passaste a não saber se lhe tinhas amor ou medo, ou misturavas sentimentos desejosa de que fosse tudo um pesadelo e um dia acordasses.
E silenciaste. 
E mentiste-te: que talvez ele andasse stressado; que talvez se tu o tratasses com desvelos.
E ficaste grávida. E tiveste a menina. E foste ficando cada vez mais tu e ele e ela, e depois tu sem emprego, e depois os ciúmes que nem que saísses para levar a filha ao médico ou buscar umas compras, ou ainda que ficasses em casa o dia inteiro.
E engravidaste uma segunda vez que ele era tão gentil, tão amoroso, tão o homem que tu desejavas a dizer-te: “e se tivéssemos uma rapazito? “
Ele que inventava histórias para adormecer a filha e chorou e riu e ficou louco de alegria no dia em que nasceu outra menina.
E no entanto, os tetos do apartamento foram demasiado altos e as paredes demasiado grossas para que alguém ouvisse os teus gritos. 
Ou tu nem gritaste que eles ouvissem ou, se viessem em socorro, mentirias a defender o sonho que querias não desfeito.
 Até ao dia em que percebeste que as histórias que ele contava à filha traziam outros príncipes e outros brinquedos. 
Tinha sido uns dias antes de ele ficar ali pespegado. Desconfiaste. Achaste estranho. 
Quando ele entrou estavas de unhas em riste.
Ele ali na porta da cozinha e a mais velhinha a desejar o que tu não sabias que sempre lhe prometia.
Ele sorrindo a dar-lhe a consola e tu a querer que fosse mentira.
Terás chorado o sangue todo que tinhas nas veias, mas nem assim disseste uma palavra a não querer estragar o contentamento da menina.
Triste.
Tão amargurada que tu estavas.
Só então contaste. 
Ao dia seguinte, contaste o que sabias ser verdade e espantaste-te de estar descobrindo o horror que tinha sido.
Só então enfrentaste o desfazer do teu imenso sonho.
Na Segurança Social prometeram, e sondaram, e fizeram relatórios.
Terão feito o possível, mas apenas o possível e não o necessário.
Também a polícia se interessou pela tua causa. Também eles quiseram ajudar, mas tardaram.
Tão desesperada que tu foste ficando.
E na tarde em que saíste com as duas, nem sabias onde ias, e nem sabias se irias a algum lado. Sabias que nunca mais regressarias e trouxeste um saco com roupa e pouco mais trouxeste.
Fazia frio, mas o sol estava morninho e a mais velhinha correu pela areia como se fosse em passeio. E ria.
Tinhas percebido que podias ir com elas, passeando, calmas, tu e as meninas: muito calmas e de mão dada, e tudo ficaria resolvido. 
Acreditaste.
Tu e elas mar adentro, que tu não tinhas para onde ir, tu que sabias o que era ser-se muito querida: tão querida que tu tinhas sido do pai delas, tão querida que tu tinhas sido do teu padrasto.

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4 comentários:

Nossa, que texto! Doeu! Chorei aqui. Mais pelo sofrimento dos anos e anos de condescendências perigosas do que pela morte, alívio insano para os fracos, os covardes, os desesperados. Por que tantas mulheres vivem na cegueira e no medo, não? Abusadas, espancadas. Um texto muito especial. Lindo e feio, em sua extensão de tessitura e conteúdo, respectivamente. E são tantas! Que dó!

Parabéns. Tu escreves de forma fluida e deliciosa, mesmo temas feios e dolorosos como este.

Parabéns. Tu escreves de forma fluida e deliciosa, mesmo temas feios e dolorosos como este.

Texto pungente e corajoso. Triste realidade, excelente leitura.

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