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sexta-feira, 20 de abril de 2012

Aos pés dos seus pés

O calcanhar saindo ligeiramente da sapatilha foi o primeiro aviso. Ali estava uma mulher apaixonável, sentada de costas para mim, na mesa enviesada à minha. Estou só, relativamente só. Acompanhado apenas de algumas doses de uísque, faço meus olhos subirem pelo tornozelo, até fitar um infinito tatuado sobre o tendão de Aquiles da lindeza, que agora cruza um pé sobre o outro, deixando maldosamente a sapatilha quase solta no ar, presa por um esforço sutil dos dedos travessos. Me ajeito para ver melhor. E num ritmo malemolente de um dancing imaginário, os pés cruzados, um deles seminu, bailam às minhas barbas, como se me convidassem para entrar na dança. E entro com o maior dos prazeres. Nem me dou ao trabalho ou à curiosidade de elevar o olhar e tomar conhecimento da dona daquela provocação inconsciente. Não vejo seu rosto. Talvez seja linda, talvez dentuça, talvez prognata, talvez tenha espinha, talvez dentes amarelados de cigarro, talvez olheiras, talvez narinas arreganhadas, talvez um narizinho feito à mão de um anjo - o mesmo que esculpiu seus pezinhos delicados - , talvez seja a mulher que esperei a vida inteira para me suplicar com os olhos um sussurrante "Arlindo, você me encharca de tesão..." . Não importa quem seja, quem seria, quem deixa de ser. O que vejo me basta. O dorso do pé, o arco perfeito do calcâneo à colina carnuda que dá início aos dedos, as unhas harmônicas bem feitas e arredondadas, esmalte leitoso das falsas puras em contraste com a pele que tende ao jambo, a ausência de calos, cutículas restantes, cascões, ranhuras, joanete, esses castigos injustos. Ela é do tipo que escolhe onde pisa. Tudo se exibe como se fosse só para mim. Os dedos inquietos me piscam os olhos e eu paraliso. O gelo derrete dentro do scotch 12 anos onde molho a língua e a imaginação. Estou hipnotizado, nada enxergo ao redor. Suponho que a moça só possa estar acompanhada, claro, num bar da moda àquela hora da noite, quem a deixaria sozinha? Mas aqueles pés são meus. Eles insistem em trair a dona, mexendo intermitentes, malvados, sonsos, de personalidades próprias e determinadas, ainda mais agora que cessam o movimento, se descruzam, se descalçam - os dois! – e se põem sobre as sapatilhas, abrindo-se como uma flor, imã de maus pensamentos, fetiches vulgares, sórdidas intenções, taras inconfessáveis. A escadinha dos dedos é um design perfeito. O primeiro o maior de todos, o segundo menor que o maior e maior que o terceiro, e por aí vai, dimensões decrescentes, como diz a cartilha da anatomia bela e natural, até chegar ao mindinho, que pouco se move na sua insignificância, mas quietinho, me olha de banda pela sua minúscula lâmina bem cuidada como se percebesse meu total embevecimento. Sim, pés e suas unhas quando divinos fingem-se de olhos que tragariam Machado de Assis. Neste momento, por exemplo, acabo de perder o juízo. Enquanto me cai o último gole de uísque,os pés chutam as sapatilhas para trás. Um se dobra, se alonga, Afrodite espantando a preguiça, e o outro, o mais próximo do meu campo visual,planta-se no chão, como se exibisse sua nudez inteira só para mim. Ofegante, meu tórax é um pandeiro, escrevo qualquer coisa no guardanapo e chamo garçom, que me olha blasé, lê meu bilhete, mas faz o que peço. Sem tirar os olhos do chão, vejo os pezinhos se assustarem, bichinhos ariscos, que se entocam nas sapatilhas rasteirinhas. Eles se viram em minha direção, mas são ultrapassados pela esquerda por dois sapatos másculos, quarenta e dois bico largo, que pisam rápidos, rudes, e param na minha frente. Uma voz grossa me faz levantar a cabeça. Alguma coisa explode no meu queixo. Desabo. Sinto gosto de sangue e acho que perdi um dente.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


3 comentários:

Oh, esperava um desenlace mais sensual...
A nudez perturbadora de uns... pés; quem diria? Pensando bem, são símbolos de outras nudezes.

Eu também, Joaquim. Mas o personagem foi se meter a besta com a mulher do outros... ah, essas criaturas fogem do nosso controle.

Adorei, ZeGui, como sempre... Viajei na dança dos pezinhos que toda mulher quer ter... e um apaixonado assim, então... Bjs!

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