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domingo, 19 de janeiro de 2025

Não tem mais jeito

 


Ah, não, mas o Brasil não tem mais chance de dar certo. Passa governo, entra governo, e é a mesma ladroagem. Nenhum político presta. Basta se candidatar para se tornar bandido. Para começo de conversa, eu não voto mais. Pra quê perder o meu tempo num domingo de sol com essa laia? Ah, mas você vai perder a oportunidade de fazer concurso etc. e tal, dizem. Eu não tô nem aí para concurso, pra ficar mamando nas tetas do governo, do mesmo jeito que os políticos fazem. Eu quero é criar minha fábrica de chocolate, que é o meu sonho, e montar em rios de dinheiro. Não sei se você sabe, mas as empresas que mais faturaram no Brasil, ou tiveram um crescimento grande, foram as de doces, especialmente as de chocolate. Estou ainda trabalhando como funcionário de um frigorífico, mas a meta é sair dali e organizar a minha empresa. Tento arranjar um parceiro comercial, mas ainda está difícil, ninguém – que tem dinheiro – quer entrar nessa comigo. Por enquanto. Voltando a essa patacoada de política, é só ver a cara do Lula: entrou no governo, já fez uma porção de plástica, para parecer mais novo, mais “apresentável”, e continua fazendo bosta. O que ele faz pra gente, trabalhador? Isso que contam aí é tudo mentira. Eu mesmo não ganhei nada, casa, uma bala sequer. Dilma já ganhou logo um cargo grande, para meter a mão, lá no exterior. Essa turma não tem jeito. O único em que eu botava fé, que foi o outro presidente, que matava a cobra e mostrava o pau, acabou fazendo merda também, se corrompeu por dinheiro. Mas, pensando bem, o cara pegar só umas joiazinhas, o que é que tem, pô? Roubam trilhões nesse governo, e o cara pegar uma joia, para dar para a mulher, para os filhos, isso não quer dizer nada. Não devia ser considerado crime, para o presidente. Se realmente ele fez isso, né, porque tenho minhas dúvidas de quererem incriminar ele. O poder de um presidente é muito grande, Lula pode querer fazer todo tipo de ruindade para incriminar o outro presidente. O coitado do Bolsonaro já sofreu foi muito, por que não deixam ele em paz? Deixem ele viver, fazer os joguinhos dele, as brincadeiras dele. Queria ver era se o Lula daria conta da pandemia como o Bolsonaro deu. Foi difícil, muita gente morrendo, porque tinha de morrer, mas o Bolsonaro protegeu muita gente também, era para morrer muito mais. Eu não tô defendendo o governo do Bolsonaro, não. Veja bem, é tudo uma bosta! Mas é porque eu tenho que dizer o que é a verdade, a senhora está me entendendo? Bote aí no jornal que o Arlindo não concorda com nada desse governo, que o Lula só faz o que não presta, ao invés de dar bom exemplo. Tem uma turma de larápios no poder, essa é a verdade. Por isso eu acho que o Brasil não tem mais jeito.






sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

lar - poema de Marina Grandolpho

 










sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

A SENTINELA QUE FICA


 


Numa noite de chuva fria

eu havia saído para as minhas

pesquisas quando o encontrei.

 

O vento ventava forte

nas vigas velhas do casarão

e meus cabelos e minhas mãos

se emplastavam de teias de aranha.

 

Existe uma imensa solidão em mim

que me transborda e me faz percorrer

roteiros de silêncio e sem volta.

 

Meu encontro com a criatura proscrita

foi algo meio profético e enigmático

e na noite infestada de miasmas um

vulto cinza me falou em meio a sombras:

 

“Nada me prende a este cemitério

a não ser as dificuldades reais

de se transpor um corpo da sepultura.

Não me agrada nada esta arquitetura

mas há em mim esta herança maldita

que persegue minha família como uma sina.

 

As grades do muro e do portão de saída

são um limite e uma prisão fictícia e

nada me diferencia de você a não ser

a natureza das nossas dificuldades.

E o que mais nos aproxima é o estado

permanente da solitária decomposição

de nossas almas”.

 

E finalmente disse, já estertorando:

“O único elemento que nos distingue

é o estado de conservação da madeira,

nas tábuas já podres do meu caixão

e nas envernizadas que te aguardam”.

 






terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Aprovação

 




Costumo ver, aqui na copiadora, um rapaz já com certa idade. Há anos ele vem aqui tirar cópias de currículos, digitalizar documentos, formulários, assinando-os. Sempre sério, compenetrado. Eu não me importo com o que estou copiando, encadernando, é o meu trabalho. Nesses dias ele trouxe documentos para copiar e percebi uma satisfação em seu rosto, um alívio. Não estava tão sério como nos outros dias, parecia ter conseguido algo, uma aprovação. Sequer pensei em perguntar o que era, nem o conheço, mas de certa forma, entendi. São dois e cinquenta, é aproximação?

















terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A MIM ENSINOU-ME TUDO

“... e a monotonia da vida será para mim

como a recordação dos amores

que me não foram advindos,

ou dos triunfos que não haveriam

de ser meus” 

                                Fernando Pessoa

 

O pouco que sei,

sei de o não saber,

mas só o de sentir

e nunca poder alcançar.

 

Tudo passou por mim

como as águas de enchente,

mas vi tudo fluir e o vazio

de nada reter nas mãos.

 

Se escrevo é só uma fórmula

de sonhar possibilidades

enormes, como se fossem

passos de uma criança deitada.

 





sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Segunda parte – Paraíso ou Nem Por Isso




Samael resolveu ficar invisível e explorar cada pedaço do jardim escondido pelo Criador. Cada dia que passava, sentia-se mais fascinado pela fantástica Obra que havia sido feita. Conseguia perceber, pelos seus olhos divinos, a graciosidade, a mestria do intrincado das Palavras que terão sido usadas e reconheceu o poder e sabedoria do Criador.

Ocasionalmente, tornava a revelar-se a Lilian e deixava-se bombardear pelas perguntas da inocente criatura, cada dia mais fascinado pela sua perfeição e pelo encanto da voz e da aparência. Ao fim de algum tempo, porém, aborrecia-se do interrogatório e partia intempestivamente, como da primeira vez. Voltava no dia seguinte, assim que a encontrasse sozinha.

Desde o primeiro dia, Samael solicitou-lhe que não mencionasse os seus encontros a Adam ou ao Criador; era o primeiro pecado cometido por omissão no paraíso. Ele próprio, não revelara aos seus irmãos que descobrira o esconderijo. Primeiro, fizera-o porque pretendia exibir-se junto deles por conseguir desvendar o segredo sem ajuda, depois, porque queria saber mais, antes que tudo fosse destruído, finalmente, sentia-se culpado pela ocultação e pelo carinho que nutria pela criatura.

Se Miguel ou Rafael soubessem o que ele descobrira, em pouco tempo todos os outros acabariam por saber. Samael enfrentaria forte resistência aos seus intentos e seria rapidamente denunciado. Havia muitos, como aqueles dois, que defendiam as Intenções do Criador cegamente, enquanto outros não teriam descanso enquanto não matassem as criaturas e abrissem o Jardim do Éden a todas as outras. Nem queria imaginar o que faria Lúcifer com esta informação…

Claro, que o Criador não permitiria que o Seu segredo fosse divulgado ou o Seu trabalho destruído…, mas, para isso, era preciso que soubesse o que acontecia. Samael teria de esforçar-se enormemente para não se denunciar, pois, se fosse confrontado com uma pergunta direta, não conseguiria mentir, como qualquer entidade angelical.

Os lamentos de Lilian sucediam-se à medida que sabia mais sobre o mundo que não conhecia. Ela ridicularizava Adam, que se divertia a escutar o falar limitado dos pássaros ou das cabras e até a observar as evoluções que uma folha fazia ao cair das árvores. Isso era muito pouco para ela, queria conhecer mais. A parte pior, porém, era quando ele queria que ela se lhe submetesse e ficasse por baixo e quieta, durante as relações sexuais, que só aconteciam quando ele desejava.

O anjo percebeu, ali, a possibilidade de minar o trabalho do Criador; aumentando o descontentamento da mulher, traria a infelicidade e o desequilíbrio à relação. Como já estava fragilizada, bastaria uma pequena ajuda.

Os contactos com Lilian tornaram-se mais frequentes e prolongados. Quando o tema “das coisas do mundo” se esgotava, Samael ensinava-lhe as palavras para fazer surgir fogo ou água, ou para provocar um pequeno remoinho de vento que erga uma pilha com os galhos caídos na clareira. Por fim, ensinou-lhe a palavra que lhe permitia sair do jardim e ver com os seus próprios olhos, sempre acompanhada, como era o mundo para lá do lugar onde vivia.

Ela não ficou muito impressionada com o que viu do exterior. Lá fora, havia casas e roupas, mas também deserto, calor imenso e falta de água, alguns animais eram perigosos e nenhum falava ou dava mostras de a perceber! O jardim era muito mais bonito e organizado; tudo era calma, havia muita sombra e água e os animais eram pacíficos e faladores. Aqui não precisava de usar roupas, no entanto, sentia-se amarrada no jardim e parecia-lhe que se respirava melhor fora, mesmo no ar seco do deserto.

Um dia, durante uma das longas conversas, foi inevitável, as bocas de ambos tocaram-se e Lilian conheceu, naquela tarde, o verdadeiro significado de clímax e êxtase. Foi a primeira traição do paraíso…, mas repetiu-se muitas vezes a partir daí.

Claro que, se o sexo de Lilian com Adam já era muitas vezes uma situação tensa, por recusa dela em fazê-lo ou submeter-se aos desejos dele, a partir daquela altura piorou. A mulher recusava ser possuída e a harmonia do paraíso estava ameaçada; quando estavam juntos discutiam e, quando separados, ficavam amuados e sombrios.

Adam solicitou ajuda ao Criador e, juntos, questionaram Lilian, com o Pai tentando demonstrar doçura e compreensão, ao contrário do companheiro. Ela mostrou-se obstinada e recusou-se a responder a algumas perguntas, para estupefação do Criador, que começava a ficar altamente desconfiado de que havia elementos estranhos na equação.

Por fim, o Pai confrontou-a com uma pergunta direta: — Diz-me, minha filha, falaste com mais alguém além de nós e os animais do jardim?

Lilian abriu muito os olhos. Desprezava Adam, pois já percebera as suas limitações, mas tinha medo da reação do Criador. Hesitante, com o rosto muito corado e os braços estendidos, como que afastando os interrogadores, deu uns passos atrás, sem saber o que fazer. Balbuciou, no entanto, um tímido “Não.” Foi a primeira mentira do paraíso.

O Pai sorriu tristemente e repetiu a pergunta.

Para espanto dos dois, Lilian proferiu a palavra que Samael lhe ensinara e evaporou-se em pleno ar.

 

Manuel Amaro Mendonça

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domingo, 3 de novembro de 2024

À MERCÊ DAS ÁGUAS


 

O que restou de mim

(a essa altura da vida)

é apenas uma obsessão por

estar em silêncio. Não que

eu busque nele algum sossego,

pois não há nenhuma paz

no meu silêncio de lenha velha.

 

É apenas esse desejo de deixar

a vida correr estando eu fora

dela, como um agregado que perde

a proteção e ao perdê-la sente

que não precisava mesmo disso.

 

Quero que tudo o mais ande

(pois que tudo deve andar

pela lógica mesma da vida).

Mas eu, como um algo à parte

que sou, quero parar por tédio,

essa palavra que define tudo.

 

Quero ficar apenas observando

a chuva e as reações que ela provoca

nas pessoas. E depois sair para

desvendar sua verdade líquida onde

estou a derreter-me como um pequeno

bloco de gelo que desgela, secamente.






terça-feira, 29 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Primeira parte – Como tudo começou


 

 Disse mais Deus: Façamos um homem, um ser semelhante a nós, e que domine sobre todas as formas de vida na terra, nos ares e nas águas.

Deus criou então o homem semelhante ao seu Criador; assim Deus criou o homem. Homem e mulher - foi assim que os fez.

 

Versículos 26 e 27 do livro do Génesis

 

      

No princípio dos tempos, homens selvagens, demónios, gigantes, centauros, faunos, ogres e outras criaturas incríveis estavam por toda a parte e espalhavam o mal e a violência. Desde a guerra no Céu, chefiada por Lúcifer, “O Portador de Luz”, tudo era caos. Miguel, “Aquele que é como Deus”, chefiou a repressão e pôs os revoltosos em fuga.

Acontecera no fim da Criação da Terra, que o Criador tecera com finas Palavras, pois Ele próprio era O Verbo, que dera início ao universo. Com a ajuda dos anjos, poderosos espíritos, criou cada um dos seus elementos e deu-lhes cor, movimento e vida. Serafins rodeavam-nO e ecoavam as Sua Palavras aumentando a sua força, enquanto Querubins registavam nos arquivos do céu as informações de cada criação e Potestades[1] modelavam e acarinhavam as obras de arte produzidas.

À medida que iam sendo criadas as florestas, os rios e os oceanos, alguns Potestades apaixonavam-se pelo seu próprio trabalho e assumiam a vida e a proteção dele. A dissensão surgiu com o aprimorar das criaturas; a última delas, o Homem, seria feito à Sua Imagem e não teria um espírito protetor específico, mas seriam, sim, servidos por toda a classe angelical.

As primeiras experiências mostraram logo a capacidade destrutiva da criatura; derrubava árvores, represava rios e matava animais, em grande número, para alimentar a sua comunidade crescente. Para o Criador perceber o seu erro, alguns anjos, sub-repticiamente, ensinavam técnicas aos humanos, como o domínio do fogo, que os tornava ainda mais destruidores.

Imediatamente os espíritos protetores dos elementos, protestaram pela destruição causada no seu reino, pedindo a extinção das criaturas. O mesmo pediam aqueles que sentiam o seu orgulho ferido por terem de servir uma criatura inferior, muitos outros achavam que o rumo que seguia a Criação, permitir um ser mais inteligente que os restantes e sem qualquer limitação, era errado. O Criador não os escutava, pois só Ele sabia o Seu propósito e com Ele estavam a maioria dos anjos. Daí até lutarem pela supremacia foi apenas um instante.

Derrotados, Lúcifer e grande parte dos seus seguidores abandonaram os céus. Alguns dos que se revoltaram quase igualavam o poder do Criador, eram espíritos do Princípio, quando a Primeira Palavra foi proferida, rasgando o caos do universo e refugiaram-se na Terra onde, com Palavras imperfeitas ou mal executadas, geraram criaturas absurdas ou quase humanos que deixaram depois à sua sorte.  As únicas características em comum nesta criação, eram a maldade que lhes habitava no coração e a vontade de exterminar o próximo. Os revoltosos apresentavam-se a essas criaturas como deuses e eram adorados como tal.

O Criador, decidindo precisar fazer algo diferente, pronunciou as Palavras que criaram uma floresta, a que chamou jardim do Éden. Pensou então que tinha de escondê-lo das vistas invejosas dos outros deuses e dos outros seres que habitavam o mundo. Recitou as palavras de ocultação para o jardim ficar invisível aos olhos de todos e assim poder continuar a sua obra.

Criou o Homem e a Mulher, como todos as outras criaturas, com Palavras que uniram terra, fogo, ar e água. Chamou-lhes Adam e Lilian e começou a ensiná-los segundo as regras com que desejava que vivessem; assim que se desenvolvessem o suficiente, dar-lhes-ia a Terra como herança. Arranjaria depois maneira de a expurgar das monstruosidades que a conspurcavam na altura.

Os outros deuses sabiam que algo se passava e tentavam, em vão, perceber o que andava a fazer o Criador e onde estava escondido o seu trabalho. Até os anjos, criaturas invejosas e traiçoeiras, andavam inquietos, em volta Dele tentando descobrir.

Nenhum dos deuses se recordava já quando os anjos foram criados, sabiam apenas que eram quase tão antigos como eles. Apesar de maioritariamente, havia alguns que primavam pela rebeldia e por vezes, essa rebeldia tocava a raia da sedição. Se haviam sido ajudantes incansáveis durante a construção do universo e eram guardiões fervorosos de tudo o que fora criado, por vezes, parecia terem ideias muito próprias do rumo que a criação deveria tomar. Abominavam a desordem causada pelas criações insanas dos deuses e agiam muitas vezes como um contrapoder, nas sombras, sabotando o seu trabalho.

Samael, um dos arcanjos, descobriu o esconderijo e infiltrou-se sub-repticiamente no jardim do Éden. O seu objetivo era matar as criaturas que o Criador tanto escondia e que pretendia que os anjos os servissem; eles, imediatamente abaixo dos deuses, teriam de servir crianças, mortais e patéticas.

Porque é que não se limitava a criar leões, elefantes ou águias, cujas máximas ambições eram dominar uma pequena área e subjugar os seus iguais nesse espaço, durante uma curta vida? Os humanos eram perigosos, principalmente, porque, apesar de mortais, eram demasiado parecidos com os próprios anjos.

Envolvido nestes pensamentos, o arcanjo vagueou, na sua forma etérea, pela floresta e sobre os rios que atravessavam o jardim e verificou que, nem nas árvores, nas plantas, ou mesmo nas águas, se sentia a presença dos deuses, ou das Potestades que as criaram e que normalmente as protegiam. O que havia aqui era uma criação de raiz, independente de tudo o existira até àquele momento. O Criador fizera-o sem ajuda e sem invocar os espíritos, no entanto… mesmo sem eles, tudo estava imbuído de vida, equilibrada, interdependente, quase perfeita.

Foi então que ele a viu: completamente despida, colhia amoras de um arbusto. Longos cabelos cor de fogo que desciam até ao fundo das costas, seios roliços e firmes, coxas bem torneadas, assim era a mulher que estava perante ele. O nome Lilian[2] acudiu-lhe à mente. Era então aquela uma das odiadas criaturas, que ele tinha de exterminar antes que se tornasse demasiado perigosa.

Samael materializou-se frente a ela, sob uma forma humilde, de humano, envergando uma túnica azul-claro e sandálias de couro.

Embora surpreendida, pelo súbito aparecimento do estranho, ela aproximou-se, pois não conhecia o medo.

O anjo, embora determinado a executar a sua missão, não teve ainda a coragem de materializar a sua espada flamejante para tirar aquela vida inocente, apesar de já o ter feito milhares de vezes às ordens do Criador. A criatura era demasiado perfeita e virginal. Samael, o “Veneno de Deus” sentiu-se fraquejar.

Lilian, que nunca havia conhecido mais ninguém além de Adam e do Pai de ambos, tinha muitas perguntas para lhe fazer.

Samael deu por si sentado ao pé dela a responder às perguntas e cada vez mais angustiado. Ficou a saber que ela ainda não percebera que era prisioneira numa gaiola dourada, mas, ao contrário de Adam, aborrecia-se sem nada para fazer.

O anjo sentia imensa dificuldade em olhá-la nos olhos, sem sentir um desejo imenso a apoderar-se dele. Aquela era, com toda a certeza, uma armadilha do Criador; fazer com que se apaixonassem pela sua criação. Fortemente perturbado, ergueu-se, sussurrou um encantamento e surgiram-lhe umas espantosas asas nas costas. Levantou voo num silvo, deixando uma pena a esvoaçar.


Manuel Amaro Mendonça

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[1] São aqui referidas várias classes de anjos superiores e que estão mais próximos de Deus.

[2] Nas referências à Primeira Mulher dos escritos que consultei, o nome Lilith era sempre o utilizado. A minha relutância em seguir este caminho é o facto de este nome nada ter de hebraico, ao contrário de Adão e Eva (nas suas traduções ocidentais). Nesta adaptação livre da história do primeiro homem e da primeira mulher, resolvi que seria mais adequado Lilian e que Lilith surgiria mais tarde.





sábado, 19 de outubro de 2024

Encontro

 



Encontrei-me com Felipe no último sábado. Faz tempo que não nos víamos. Ele, cedo, passou num concurso e foi morar em outro Estado – se não me engano, no Paraná. Daí em diante, foi minha oportunidade de morar no exterior, por pelo menos quatro anos. Na última vez em que nos encontramos ele estava na pracinha, perto da minha casa, fazendo exercício. Isso foi, talvez, em 2018. O encontro no sábado foi inusitado e cheio de emoção. Ele estava mais magro do que o normal. Ele sempre foi magro, mas dessa vez estava mais, com o rosto chupado, um pouco de olheiras e vários cabelos brancos, inclusive na barba. Decerto eu não o reconheceria se ele não tivesse vindo falar comigo. No ato, ele esboçou uma reação de grande alegria, e eu lhe correspondi. Crescemos juntos, no mesmo prédio, onde tínhamos uma banda que tocava rock pesado e depois migrou para o rock pop. Ele era o tecladista e eu, o baterista. Mas nossa missão de amizade vai além daquele tempo, das nossas atividades juvenis. Creio que encontramos pessoas ao longo da vida para um propósito, o de ser feliz, e essas que nos fazem bem devem ficar. Felipe é alguém que quero levar para o resto da vida. Um cara do bem, amigo e brincalhão. Mas me preocupou bastante o seu estado de saúde. Não consegui decifrar o que lhe passava. Logo que comecei a conversar perguntei como estava, e ele me respondeu que “bem”, meio vacilante. Não seria a hora de me revelar o seu estado? Não estaria eu autorizado a entrar na sua intimidade, que só caberia à família? A sua esposa estava ao lado e era só sorrisos. Ela sabia que o encontro nos faria bem, então deixou que fluísse o que tinha de ser, os nossos papos, as nossas brincadeiras infantis. Ele não parava de me chamar pelo meu apelido de adolescência – o qual não vou revelar aqui, para manter a minha integridade –, para nos tornarmos mais próximos, mais amigos. O tempo não fez com que perdêssemos o lanço da fraternidade, da boa amizade, verdadeira. Mas eu estava ligeiramente tenso, aflito com a sua saúde. Ele parecia fraco, abatido. Teria tido um dia horrível? Estaria exausto do trabalho? Parecia estar de férias com a esposa. Quando me deu a mão, para nos cumprimentarmos, senti pouca firmeza, uma certa displicência, que não combinava com o seu olhar, radiante. O olhar era a nossa fonte primal de energia. Eu sentia que as minhas forças se conectavam às dele pelo nosso contato visual. Era aí que morava o exato amor. Sim, o amor de irmão, o amor puro, que transborda a alegria de estar vivo, ali. No entanto, eu também estou doente, com depressão. Tentei, ao máximo, camuflar o meu estado de lassidão, eu precisava mostrar-lhe que o encontro era, sim, importantíssimo para mim, e que eu precisava vê-lo. Despedimo-nos com um afetuoso abraço. Ele disse, por fim, que estava morando em definitivo em Fortaleza, e eu abri um sorriso de gratidão; era tudo o que precisava ouvir. Precisamos estar juntos, foi esse o nosso trato tácito no aperto de mão. Nossas almas, assim creio, permanecerão em paz.

 

 

  


 






quinta-feira, 17 de outubro de 2024

A chave que abre o passado

 



                    



                        Não vou devolver a chave da casa de minha avó. Essa antiga chave, que está junto da minha, (mesmo eu não o tendo vivido, nem me familiarizado com os parentes já desaparecidos), abre o meu passado...









quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A LUMINOSIDADE ATRAVÉS DA JANELA


Faz alguns anos

que eu estou

do lado de fora

observando o

movimento.

 

Do ponto de

onde eu estou

vejo a luminosidade

de uma janela

no 2º pavimento.

 

Todos os dias

de um ponto neutro

de observação

eu vejo o que seria

a rotina da família.

 

Percebo os vultos

que se locomovem

dentro da casa

numa harmonia

pressentida.


Tarde da noite

alguém chega

até a janela

e fecha as cortinas

de persianas.

 

Minutos depois

a lâmpada foi

apagada dentro

do casulo de seda

visto pelo lado de fora.

 

Faz alguns anos

que eu estou

observando

a luminosidade

do ângulo externo.

 

E quando eu subo

as escadas encontro

a porta fechada.

 






terça-feira, 17 de setembro de 2024

Há continentes, países, cidades em seus poucos cômodos

 






         Mosquitos voam velozmente, em volta de mim. Trocaria de lugar com eles sem receio. Voaria por todos os cantos, cruzando oceanos de tapetes e cordilheiras de móveis como se estivesse em uma longa travessia, em direção à estante, à mesa, à escrivaninha, ao sofá. Iria ao quarto, à cozinha e ao banheiro em longos voos. Há continentes, países, cidades em seus poucos cômodos, em sua pequena metragem.
























terça-feira, 3 de setembro de 2024

A ILHA


 

A ilha com seu silêncio

me comunica a morte

dos seres espectrais

que nela vivem ou já viveram.

 

A ilha cercada por mangues

é um poço de lama e óleo.

 

Os pescadores da ilha

me comunicam o fim

dos pescadores da ilha.

 

Os pescadores da ilha

me apresentam a pesca de um dia,

nada.

 

A ilha com sua morte

me comunica o silêncio

dos seres superiores

que a mataram e matam.

 

A ilha abandonada pelos banhistas

é um deserto de espuma e água.

 

Os frequentadores da ilha

me comunicam o desastre

das praias da ilha.

 

Os frequentadores da ilha

me apresentam o bronzeado de um dia,

petróleo.

 

A ilha com sua sorte

me comunica o crime

dos seres continentais

que seguem impunes.

 

Os pescadores da ilha

me comunicam o fim dos peixes

e voltam tarde para casa.

 






sábado, 17 de agosto de 2024

Quimono cor de sal