São passos
cronometrados e medidos, desatento por andar compassivo. O caráter arranhando
as incongruências da calçada numa despreocupação invejável, quase perene se
houvesse a crença destroçada entre os dentes. Vagarosamente me deparo com a
mitologia encarnada, venustidade aprisionada num insaciável fôlego. Poderia
fazer um escândalo ou me sentir amuado, diligentemente apático, mas me
anestesiei com o sorriso emborrachado, contemporaneidade contemplativa, magnetismo
por gozar apenas com os olhos. No reflexo das correntezas uma forma indecente
ao puritano, fóssil das expiações embrulhada em desesperação. O charme imperecível
exalou da boneca vertiginosa que se deparava esclerótica no próprio redemoinho.
Todas as maquinações vertiam daquela forma ilusória, protética, inexplicavelmente
entranhável a ponto de sê-la, feito o ser-em-si aturdindo ficções antes de se
esparramar, mas sem a verdade cravejada no semblante. Curvas carregadas de nada,
brancura sobreposta em uma estéril plasticidade, mas na pele os cosméticos
acendiam a perfeição, pantera urbana aninhada nas unhas da manipulação. “Tão
insensata!”, esmurrei-me o espírito pensando que jamais a faria feliz, que em
uma única ocasião correria a eternidade sobre o seu rosto em busca do sincero declínio.
“Preciso arrumar uma dessas antes que eu me acabe. Uma dessas numa noite e
apenas, sem prolongar o contentamento depois da euforia, sem prometer que serei
o seu escravo pela contenção dos abraços. Ela se veste como ninguém, aliás, com
quase roupa alguma... mas minha punhetagem mental gosta disso. Ela quer mesmo é
mostrar a escravidão que lhe acorrenta no corpo, quer ressaltar o sofrimento
das dietas e exercícios, demonstrar a insegurança perante o julgamento dos
cordeiros”. Os fatídicos deslumbravam-na na concretude das passadas, tropeçavam
no abstrato e, mesmo assim, não caiam em si, perdidos em cada distração. Monumento
dos silêncios, ardência assombrada, gélida vazies proclamada no estereótipo do
infortúnio. “A sua opinião nem deve valer porra nenhuma. Acho que nem teve
tempo de trabalhar sobre o próprio sangue”. Criatura forjada no modismo dos
músculos, cirurgicamente preenchida com as impalpáveis cores, via-se tão de
longe como quem se acomete ao pretérito tentando se raiar. A imprecisão de para
onde voltar é notável, braços que dançam irritados, língua ferina delineada na
retórica dos confins. “Essa garota deve repetir a mesma impassibilidade dos
signos terrenos sempre que o medo lhe invade”. Lágrimas, subterfúgio à surdina
sempre que os errados lhe açoitam. “Do tipo que bebe ácido querendo o néctar,
mas ela sabe que no íntimo as escolhas são fugazes. Ela sabe muito bem que o
orgulho vai afundar a modéstia”. Tão apegada à infância que apenas substitui os
costumes conforme a necessidade, os brinquedos vivos, as bonecas por vilões,
pois é sempre a vítima da cegueira induzida pelo próprio descontentamento. Coleciona
tanta evasão que se empaca enquanto chora, quase morre em cada prelúdio, e nem
assim se controla, quebra os olhos derramando a imaturidade. Relacionamentos
frustrados em fugas afetivas, inconsequente sentimental quando se esbarra na
incontrolável epopeia. “Bobagem! É tão fútil que não se arqueja com carinhos...
ela não deve gozar como quem reza”. Metade do salário é para a subversão do
peito, morfina deificada em chocolates, vinho e desatenção. A outra metade é
para a incessante troca de esporros, saliva, angústias, arranhões, conclusões em
cada página não lida, rasurada, coberta por traças, comparação das vivências no
amarelamento dos pontos finais. Anseia ficar apenas nisso, acabar-se só, mesmo não
sabendo que a carruagem segue a esmo com o desembestar da roda da fortuna. A
rotina lhe atordoa e amordaça. É uma profissional dedicada nos entraves da
submissão. No que quer que apregoe em honra ao indefinido se julga os caninos
da fome. O combustível do motor cardíaco é o trabalho, nada mais lhe escapa dos
pulmões além da toxicidade costumeira, garimpar os dias tentando chumbar a alma.
Afogar-se nas noites improdutivas é a memorização de todos os fantasmas, quase nenhum
silogismo lhe apetece para a renovação hemática. Contradiz o sonho de ser mãe na
impulsividade em se atarracar na natureza insolúvel. Tão forte quando a imagem
para agradar se estabelece nos padrões sociáveis, tão frágil quando a doçura inebria
o âmago e lhe desnuda a caixa torácica. É uma morsa a remoer tentações. “Ela
não se perdoa. Afinal, ela nunca esteve errada”. Não precisa da luminescência,
a profundeza do ser enegrece os gemidos. Não quer saber se algo brilha
alcançando-a em salvação, desbravar-se labiríntica é trespassar os cílios
antevendo o corpo rogado em anomalias. “É por isso que eu não paro pra ficar me
iludindo na frente da vitrine, eu não sei como me conquistar, eu não sei como
tocá-la”. Aperto o passo, tenho receio de que ela se embruteça enquanto velo suas
despretensões. Incrédula, pensará que estou almejando a rasa erudição do comum.
“Claro que eu quero fodê-la! Mas será que ela vai expirar se eu tateá-la?”. Cruzei
com seus olhos no desbravamento de uma incógnita, torpor anímico. Ela não se
ensandeceu com os meus destroços atravessando-a a sombra. Cumprimentei-a na
minúcia calejada das tentativas frustradas, e o desprezo veio logo em seguida.
Desconheceu-me no figurativo calar, não se infligiu com a minha iminência. Ressoei
a desforme inadaptabilidade na aceitação de todas as investidas, minha demente realidade.
“Ela não tem vocabulário, apenas isso me excita, somente o fardo me interessa”.
[Imagem: Stas Kudrolev | Ao som de: System of a down - ATWA]
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