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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O Ataque

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 3   

O justo se alegrará quando vir a vingança; lavará os seus pés no sangue do ímpio.

Salmos 58:10

 

— Então? — A voz de Zia, companheira de Erem, trouxe-o de volta à realidade. O rosto dela, uma pequena mancha de lama branca emoldurada pela enorme cabeleira negra, estava irreconhecível. Ela insistiu batendo com o cabo da lança no chão. — É agora ou nunca, temos de aproveitar que estão ainda a dormir.

— Eu sei. — Erem estava reticente. — Não sabemos quantos estão ali, pergunto-me se não seria melhor ir fazendo algumas emboscadas aos grupos de caça deles e matando-os gradualmente. Se o número deles reduzir, de certeza se mudarão para longe.

— Isso exigirá tê-los sempre vigiados. — Considerou Lemi. — Não somos assim tantos para fazer isso.

— Não vamos vingar o meu irmão? — Naci parecia estar sempre zangado, mesmo sem a justificação que tinha agora. — Não quero saber se fogem ou não. Mataram Nuri; por um dos nossos, terão de morrer pelo menos três deles! — Ele ostentava ainda as marcas da luta, principalmente um enorme hematoma que quase lhe fechava um dos olhos.

— É verdade que nunca mataram antes… sempre se limitaram a fazer-nos fugir e levavam a caça. — Considerou Asil. — Tu e o Nuri é que reagiram quando eles tentaram levar a gazela. Depois tivemos de atacar todos para vos ajudar e mesmo comigo, Civam e Ediz, todos os cinco, não conseguimos vencer apenas quatro deles.

— Querias fugir e deixá-los levar a comida do clã? — Naci olhou-o incrédulo. — Nuri estava certo, hoje tiram-nos a caça, amanhã roubam-nos dentro da própria aldeia.

— Basta! — Exigiu Lemi. — Fazemos muito barulho.

— Mesmo assim, — Cortou nervosamente Su, a mulher de Naci. — não sabemos contra quantos vamos lutar. — Ela penteou um dos lados da longa e escorrida cabeleira negra, soltando as folhas que estavam presas nela. — Se forem mais que nós…

— Quem não quiser vir que vá embora agora! — Exigiu Zia com os dentes cerrados. — Estamos a perder o tempo que precisamos. Mesmo que se vão todos embora, eu ficarei e haverei de mandar para o mundo das sombras pelo menos um.

— Eu também fico! — Afirmou Naci batendo com a lança no chão e logo secundado pelos seus irmãos Tekin e Asil.

— Parem com isso! — Ordenou Erem. — Claro que temos de ir todos. Vamos vingar o meu filho e dar-lhes uma lição que não esqueçam. Temos de entrar e matar os que nos aparecerem pela frente e, ao meu sinal, ou de Lemi, fugimos de novo para este sítio onde estamos agora. Aqui, esperamos a ver se nos tentam seguir, antes de regressar às nossas casas. Perceberão que a sua ação teve consequências e deverá ensiná-los a manterem a distância ou mudarem-se para longe.

Começaram a descer da crista ocultando-se nos tufos de vegetação. De súbito, Lemi percebeu movimento na entrada da gruta e fez um gesto aos outros. Habituados a serem comandados nas caçadas, imobilizaram-se em silêncio.

Na enorme abertura surgira um dos homens-macaco. Era baixo, como todos os da sua espécie, com os braços e as pernas cabeludos que pareciam troncos de árvore, grossos e duros. Cada soco daqueles punhos nodosos e desproporcionais tinha a força de uma pedrada. O cabelo hirsuto, indistinguível das barbas que lhe caíam pelo peito, tombava sobre o rosto quadrado de celhas negras e grossas que encimavam a arcada supraciliar saliente. Os olhos pequenos e vivos estavam semicerrados quando o indivíduo se abeirou da borda, soltou um ruidoso traque e começou a urinar algures do meio das peles que o envolviam. Assim que terminou, esfregou os olhos, soltou uns roncos preguiçosos e olhou em volta, farejando o ar. Satisfeito com a avaliação, regressou ao interior coçando as nádegas.

Em resposta a novo sinal, todo o grupo reiniciou a progressão começando a subir a encosta enquanto dois deles ficavam para trás certificando-se de que não havia o perigo de serem atacados pelas costas. Quase não era preciso falar, todos eram experientes caçadores e estavam bem habituados a vigiar as costas uns dos outros para não serem surpreendidos por algum outro predador quando caçavam. No ano anterior, um dos filhos de Lemi fora morto por um leão quando corria atrás de uma corça e um cunhado de Zia, acabara por morrer na aldeia vítima dos ferimentos provocados por um urso.

Naci, sempre mais arrojado, lançou-se na escalada primeiro que os outros, logo seguido do irmão Tekin e de Fuat um dos filhos mais novos de Lemi, ansiosos por mostrar o seu valor. A subida não foi difícil; os invasores usaram os pequenos socalcos, invisíveis a partir de baixo, que deviam ser usados pelos habitantes da gruta e rapidamente Tekin e Fuat ultrapassaram Naci, chegando ao patamar à frente de todos os outros.

Lemi soltou um pequeno silvo para que os dois mais jovens se detivessem, enquanto Zia o ultrapassava também. Ele era o mais velho e ficava para último. Os dois rapazes desapareceram na borda do penhasco e já Naci e uma das cunhadas de Erem os seguiram. No momento seguinte ouviram-se vozes e gritos irados que ecoaram vale e espantaram um bando de aves de uma das árvores que crescia inclinada sobre o barranco. Já Erem, um dos seus irmãos, Zia e um irmão dela se guindavam para a plataforma. Havia luta na entrada da gruta e um corpo voou sobre os que ainda escalavam, batendo no fundo da ravina com um baque surdo; Lemi reconheceu o seu filho Fuat. À medida que mais invasores atingiam o patamar, a gritaria intensificava-se; dois corpos agarrados tombaram do patamar e rebolaram na encosta arrastando com eles dois dos invasores que descansavam na subida. Quase derrubaram Lemi que se viu de repente o único na face do barranco. Havia cinco corpos no fundo, e só um era dos homens-macaco.

Sem fôlego para subir mais depressa e desesperado por ir ajudar os companheiros, Lemi esforçava-se ao máximo. Um dos inimigos voou por cima dele com um grito silenciando-se em simultâneo com o baque no solo duro. Várias pedras e algumas lanças caíram em seguida.

Depois da sua subida imprudente, Fuat, Tekin e Naci, viram-se num patamar, meio direito, com cerca de dez metros até à entrada da gruta, de onde saíam quatro homens-macaco gritando de forma alarmante.

Um deles gritou-lhes incompreensivelmente, mas o outro disse com clareza: —Vão embora!

Naci não estava ali para conversar; atirou e cravou a sua lança no pescoço do que falara a língua deles. Tekin imitou o irmão, mas falhou o alvo que se esquivou agilmente. Os três defensores restantes atacaram os invasores de mãos nuas e soltando gritos selvagens.

Fuat não conseguiu usar a lança, partida de imediato pelos braços fortes do oponente que logo o agarrou pelo pescoço. Sem conseguir opor-se-lhe, o filho de Lemi conseguiu pegar a faca de pedra da sua bolsa e cravou-a várias vezes no ventre musculoso do homem-macaco. Este soltou um grito lancinante e empurrou o infeliz do penhasco.

Tekin, esquivou-se habilmente do ataque do seu inimigo e foi mais feliz com a faca do que com a lança, conseguindo espetá-la profundamente entre as costelas do outro.

Havia já mais companheiros a subir ao patamar e a ajudar Naci que, caído no chão, era alvo dos socos impiedosos do seu oponente. Zia cravou-lhe a lança nas costas e um companheiro pontapeou-o no rosto assim que ele caiu, espetando-o várias vezes no peito a seguir.

O homem-macaco que Tekin espetara soltou um enorme grito de fúria e agarrou-o pelo tronco, prendendo-lhe os braços tentando esmagá-lo. Asil correu em socorro do irmão e espetou a lança nas costas do inimigo que, na tentativa de fuga, precipitou-se com a sua presa no vazio.

Da entrada da gruta soavam novos gritos e vários homens e mulheres-macaco corriam na direção deles, enquanto outros atiravam pedras e lanças grosseiras: eram mais de vinte! Mais dois dos atacantes tombaram feridos.

Eda e Ezgi, respetivamente cunhadas de Erem e Zia usaram as fundas em que eram exímias e derrubaram alguns dos defensores, causando a confusão entre os restantes. As lanças bem apontadas de Erem e dos outros causaram mais vítimas e pararam a investida, com exceção de um deles que se chegou perto o suficiente do grupo invasor para sofrer vários golpes de e tombar imóvel. Havia agora vários corpos caídos na área da esplanada.

Os defensores, refugiados na entrada da caverna, atiraram nova chuva de pedras e lanças com pouco efeito, tirando alguns feridos ligeiros. Eda e Ezgi causaram novas vítimas com as suas fundas que tinham um alcance muito maior, fazendo os inimigos recuarem ainda mais para o interior. Lemi chegava nesse momento à borda do patamar.

Erem tentava assimilar rapidamente a situação complicada em que se encontravam; não podiam investir, pois, os outros eram em número superior e eram precisos vários para liquidar apenas um deles, além disso, já tinham vários feridos e seriam rapidamente suplantados. — Desçam depressa, vamos, fujam! — Gritou decidido na borda do patamar. — Eda, atira-lhes mais pedras, mantém-nos lá dentro. Cemil, ajuda-me, atiremos-lhes com as lanças deles.

Enquanto os restantes desciam e ajudavam os feridos, um pequeno grupo de quatro tentou manter os inimigos à distância, mas as lanças eram mais pesadas e mais toscas, caíam quase sem força ou batiam inutilmente nas paredes da gruta.

Vendo que o número de atacantes era irrisório, os homens-macaco começaram timidamente a sair da gruta atirando mais pedras e os quatro resistentes tiveram de se lançar na descida de forma meio atabalhoada. No fundo do barranco, já os outros acabavam com um dos inimigos que ainda estava vivo e arrastavam os seus mortos e feridos pela encosta contrária.

Enquanto Eda descia, Asli conseguia atirar com a funda algumas pedras bem colocadas para assobiarem à cabeça dos defensores que se atreveram a espreitar na borda do penhasco, mas isso não impediu que uma chuva de grandes rebos caísse sobre eles. Um dos projéteis acertou com força sobre as costas e ombro de Erem fazendo-o cair e foi Cemil, seu irmão, quem o ajudou a refugiar-se com os restantes atrás da crista onde haviam iniciado o desgraçado ataque.

Gritos de vitória e de desafio dos defensores, postados na borda do penhasco, faziam-se ouvir.

Cheio de dores, Erem olhou para os companheiros; Fuat e Alev estavam mortos, Tekin estava bastante ferido e teria de ser carregado, quase todos ostentavam ferimentos mais ou menos ligeiros, com exceção de Lemi que estava pálido de cansaço, ofegante e com a cabeça entre os joelhos.

Apesar de terem causado bastantes vítimas, o resultado era pior para eles. Os homens-macaco ganharam o combate.

 

 

 

Manuel Amaro Mendonça

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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

A chave do guarda-joias

 


Túlio já era um pouco entradote quando se apaixonou por Georgete. Reconheceram afinidades num grupo católico, que organizava ações de apoio social nos bairros de barracas que iam cercando a capital. Nesses finais dos anos 60, a cidade abarrotava de migrantes internos, à procura de ocupações com salário, que os campos negavam cada vez mais, e o grupo tentava minimizar o choque com as condições degradadas que encontravam.

Ele já tinha uns anos de contabilidade na Frutuoso e Irmãos, ali ao Conde-barão, uma empresa de equipamentos de escritório; ela, a fazer os vinte e três anos, dava os primeiros passos na promissora carreira de datilógrafa, na mesma firma. O namoro foi rápido, mas contido, e o casamento, bastante frugal, não juntou mais de trinta pessoas. Foram viver para um andar antigo, mas espaçoso, que a empresa dispunha em Campolide e cedeu por empréstimo de 10 anos ao diligente funcionário, o que ajudou Túlio a convencer a mulher a dedicar-se exclusivamente ao lar.

Ordenado e assíduo, todas as tardes de sábado, depois de almoço, Túlio aproveitava a recente regalia da semana inglesa e transformava-se numa espécie de fauno das assoalhadas. Pelo pequeno labirinto da casa, perseguia a jovem esposa, que, antevendo a captura inevitável, fugia em alvoroço de risadas e gritinhos, acicatando o instinto predador do caçador. Os vizinhos não tinham nenhumas dúvidas do que acontecia, quando o clamor da presa emudecia. O ritual semanal manteve-se cronometricamente regular e tinha o condão de lembrar a um ou outro casal das redondezas que ainda não tinha cumprido o compromisso conjugal semanal. Nasceu até uma criança, no prédio do lado, a quem puseram o nome de George, que nunca conseguiu convencer os pais a contar-lhe porque raio lhe tinham posto aquele nome.

O 25 de Abril constituiu um choque enorme para o casal. O valor das ações em que Túlio ia aplicando as poupanças esfumou-se naquele dia. Os aumentos de salários que a convulsão social trouxe, começou a desencadear um fenómeno quase desconhecido — a inflação. Túlio pensou muito, antes de se decidir a explanar à mulher a situação económica familiar e a propor-lhe que voltasse a trabalhar fora de casa. Havia muitas indefinições a ultrapassar e muito perigos a evitar.

Já podias ter falado há mais tempo, querido! Não, não me importo nada; não é coisa que eu não tivesse já pensado. Só acho que, se calhar, estou um pouco destreinada. Mas tudo se aprende.

Um mês depois, Túlio chegou com uma novidade.

Amorzinho, já te arranjei trabalho. Falei com o meu amigo Queiroz da contabilidade da Contugal e ele disse que podes começar como assistente da secretária dos vendedores. Para começar, não é mau, pois não?

Está bem. Vais ver que aprendo depressa.

Claro, não tenho dúvidas. Mas estou tão preocupado. É que eu sei como são os vendedores. E vejo bem o que acontece na Frutuoso. Anda toda a gente enrolada com toda a gente. E esses não são os nossos valores, pois não?

Ó querido, até me ofendes. Para mim, pode vir o mais pintado…

Eu sei, eu sei, amorzinho; mas mesmo assim. Esta modernice de homens e mulheres trabalharem juntos provoca devaneios, oportunidades. Acho que devíamos jogar pelo seguro. Não podemos dar azo à malícia, nos tempos que correm. “A ocasião faz o ladrão”, como bem se diz. Sabes o que me deixava mesmo tranquilo? Era deixares a pombinha em casa. Muita gente está a fazer isso. E ainda mais com as ruas cheias de barbudos e mal-encarados, não duvido que vão aumentar as violações. Com a pombinha bem guardada, estavas tu segura e eu descansado. O que achas?

Em casa? Eu não vejo necessidade; parece-me um excesso securitário, mas não quero, de maneira nenhuma, que fiques preocupado. Deixo-a cá, está combinado. Pelo menos enquanto os tempos não mudarem.

Olha, amorzinho, podíamos guardá-la no guarda-joias que comprámos no Mercado do Povo, aquela caixa de madeira avermelhada com aplicações de madrepérola, com uma chavinha dourada. E metemo-lo na mesa de cabeceira.

Georgete adaptou-se bem ao emprego, mas sempre com os procedimentos de segurança bem assumidos. A rotina dos sábados pouco se alterou; apenas faziam um pequeno compasso de espera para abrir a caixa, exceto da vez em que só deram com a chave quando já estavam irritados e desanimados. Resolveram passar a deixá-la na fechadura.

Uns meses depois, Georgete contou o gracejo divertido, que metia chuchas, que um vendedor da empresa lhe dissera; Túlio teve um frémito de angústia.

Amorzinho, não queres deixar cá também as margaridas? Só para não provocar esses depravados.

Querido, ele referia-se aos socialistas; foi um dito sem más intenções. E o peito compõe muito uma mulher. Não quero parecer uma matrafona com chumaços, muito menos aparecer lá agora de peito liso. E a propósito, porque é que tu não deixas cá também o tulinho? Segundo me disseste, uma das operadoras mecanográficas tem sido muito simpática...

Quiducha, fica em casa já amanhã. Não me faz falta nenhuma lá, garanto-te. Tenho ali um estojo, que acho que era da máquina de barbear, que deve ser à medida.

A sociedade ia mudando em ritmo acelerado, Georgete foi promovida a secretária do chefe dos vendedores, mas o casal não se afastava das rotinas sensuais a que estava habituado. Certa tarde de sábado, porém, no vertiginoso momento das aberturas da caixa e do estojo, a dona da pombinha estranhou qualquer coisa na posição da sua joia.

Túlio, mexeste na pombinha? — perguntou em tom desconfiado.

Os princípios cristãos de Túlio não o deixaram mentir.

Amorzinho, desculpa! — pediu Túlio com os olhos em alvo e a testa franzida. — Tinhas ido ao almoço de anos da tua amiga Fernanda; era sábado e não estavas cá… Tu sabes que o sábado é sagrado para mim. Não te fui infiel; foi tudo só nosso.

Francamente, Túlio, não podias esperar?; era dia de afogar o careca, como vocês dizem?; é só disso que precisas de mim? — reagiu, indignada.

Eu não digo expressões rascas dessas; faz-me a justiça de o reconhecer.

Fazer, fazer... O que é que eu faço, agora? Deixa-me pensar. Olha que tem de haver reciprocidade! Vai lá fazer um balancete, que eu vou discutir o assunto a sós aqui com o teu embuçadinho.

O episódio foi ultrapassado sem mais crispações, mas Georgete passou a andar com a chave do cofre da pombinha. Os anos decorriam calmos, Túlio começou a apostar dinheiro na D. Branca, que, na altura, era afamada por dar juros de 10% ao mês, o que sempre compunha o bolo remuneratório mensal. Certo sábado, Georgete notou que a fechadura do guarda-joias parecia mexida e confrontou o marido. Túlio, envergonhado, desatou a chorar em silêncio, para não alertar os vizinhos.

Desculpa, desculpa, desculpa! A D. Branca entrou em falência e ficámos sem o dinheiro.

Quê? O que é que estás para aí a dizer?

O Queiroz. Somos amigos há tanto tempo. Foi ele que te arranjou emprego lá na Contugal, lembras-te? Foi a ele que recorri, para ultrapassar esta perda imensa.

O chefe da contabilidade? O que é que o Queiroz é para aqui chamado? O que é que fizeste com a minha pombinha? — gritava Georgete, que temia o pior.

Era para ser uma coisa simples e tão esmerada que nem desses por nada. Entreguei-lhe a caixa na segunda e uma cópia da chave, que fiz há anos, mas ou ele é desajeitado ou estava tão apressado que não conseguiu abri-la e resolveu arrombá-la. Ontem, ainda tentei compor a fechadura, mas, pelos vistos, foi em vão.

Tu vendeste a minha pombinha ao Queiroz, aquele monte de banha?

Foi só um empréstimo por cinco dias. E bem remunerado. Nem te digo quanto é que ele bateu em notas de 5000!

Tu não tens vergonha nessa cara de degenerado? — berrou Georgete, sem se preocupar com a vizinhança.

Degenerado, não! Há situações na vida em que um homem tem de assumir as ações que mais o magoam. Nem imaginas o quanto me custou.

Tu é que não imaginas! O tulinho vai comigo na segunda e só peço ao Florêncio que mo devolva na sexta. O Florêncio, sabes?; aquele que te estava a galar na festa de Natal? Estou a dever-lhe um favor: foi ele que substituiu a fechadura do meu guarda-joias há uns meses. Tem muito jeito de mãos. Mas, descansa que não vou violar os nossos princípios católicos de renúncia da usura. Será a título gratuito.

O rosto de Túlio fazia pena. Parecia tão indefeso como um dos deserdados dos bairros de barracas que visitavam. Claramente, não fora boa ideia separarem-se das suas joias íntimas.

Joaquim Bispo

*

Imagem:

Caixa de concha de búzios com dobradiças de prata contendo pintura de um homem abrindo o cinto de castidade de uma mulher nua reclinada.

Coleção de Sir Henry Wellcome, Londres.

* * *





sábado, 22 de outubro de 2022

Lágrimas de Escorpião

 

Era o emblemático machão: cara fechada, sisudo e lacônico, as mangas da camisa acuadas ante a musculatura dos braços. Chamava ele o sorriso de acovardamento, e as lágrimas, as rendas de nossa dor, chamava-as de fracasso. Mas isso entre conhecidos e desconhecidos, na mesa do escritório ou nas mesas de bar; já nos vulcões de sua intimidade era emotivo, dado a arroubos de sentimentalidade, e ao assistir vídeos onde filhotes de cachorro brincavam e rolavam, mordiam-se em ofensivas de fofurice, lágrimas desleais assomavam de seus olhos.

Tal sensibilidade era o mais frágil alicerce de sua masculinidade e moral agressiva, dos trejeitos ríspidos, e não atribua-se o fato de ser um valentão à vida ou, mesmo, a terceiros, não atribua-se a nada senão ao próprio Vander. Tudo vem de mim, assim acreditava. Um homem tem suas escolhas. Pois seria errado culpar seus pais ou sua criação, as venturas da genética ou os anos no exército, seria errado incriminar ocorrências e variáveis quando houve, por parte dele, a intenção de ser um bruto.

Foi sua primeira decisão, tomada antes dos passos iniciais, e seria, também, a última e mais fatídica delas, ocorrida horas depois de entrar no escritório e chutar portas e paredes, reclamar da ausência dos colegas e só então surpreendê-los amontoados em torno de um monitor. Juntou-se a eles, não sem antes comentar,

Bando de vadios.

Às cotoveladas abriu espaço e ignorou as provocações, e diante da tela estacou: via-se, num carpete bege, três filhotes de cachorro engalfinhando-se em brincadeiras. Abocanhavam-se e corriam, rolavam, e eram tão redondos quanto as lágrimas que de imediato insurgiram-se contra Vander e seu rigor. Mas esta nem tanto é a história de um selvagem como é uma história sobre o arbítrio, e malgrado ele não sentisse vergonha de chorar em público, de enfim revelar a outros o mais sensível recanto de sua natureza, abalou-o e apavorou-o a contingência de não ter escolha, de ser coagido a soluçar e esvair-se em prantos.

Tudo bem, Vander, indagou Regina, uma das colegas, e afagou seus ombros.

Tudo, tudo, gaguejou ele e virou as costas para o grupo e os cachorrinhos, partiu e refugiou-se no banheiro. De tão humilhado, evitou os próprios olhos e, bruto como era, e seria até o fim, secou as gotas com o esmerilhar dos olhos nos ombros. Ali demorou-se até compreender que tais lágrimas não eram as de sempre, sensível reação à inocência, mas eram lágrimas de ódio, raiva, de quem descobria-se enganado e condenado. As últimas a lhe surgir, inclusive, das pálpebras emergiam maiores e mais lentas, distintas das anteriores. Recompôs-se em frente ao espelho, ajeitou as sobrancelhas de pelos grossos, e ao sair do banheiro estava ciente de como todo homem, durante a extensão de sua vida, tem somente uma decisão a tomar.

O resto do expediente, enfrentou-o carrancudo e irritado, e a tudo respondia com monossílabos.

No outro dia souberam que, ao deixar o trabalho, jogara-se na frente do trem.






quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Cristão é outra coisa

 

Não dou o outro lado da face. Sou cristão, sim, mas sem exagero e “mimimi”. O negócio é “direitos humanos para humanos direitos”, o resto é baboseira. Não tenho paciência de contar setenta vezes sete. Se Jesus fosse vivo hoje, se visse essa canalhada, teria feito uma bíblia diferente. Bolsonaro falou que Jesus andaria armado. Nosso Senhor não pisaria na terra de bobeira, com um bando de comunistinhas soltos por aí. Aquele tempo em que ele nasceu era o céu, não tinha bagunça, não. Homem era homem, mulher era mulher, e ponto. É tanto que ele não chamou mulher nenhuma para segui-lo. Teve uma enxerida lá, que queria acompanhar, a Maria Madalena, mas era puta e foi dispensada. No grupo dele tinha gente direita, de honra e princípios. Judas deu uma vaciladinha, bobagem, e acabou se matando. Jesus teria perdoado, certeza. Já fiz essas besteirinhas e nem por isso me matei. Se um otário deixar uma mala de dinheiro vivo na rua, ah, meu patrão, vai pro papo, já era! Quem mandou ser burro? É a lei da sobrevivência, quem chegar primeiro e for mais esperto vence a batalha. Nasci porque fui o mais sabido dos espermatozoides. Mas tem uns aí que parece que furaram a fila! Merecem levar umas porradas, isso sim! Comigo é tolerância zero. “Bandido bom é bandido morto!”, como no velho ditado. Se matassem uns trinta mil, o Brasil estava resolvido. É por isso que o País não vai pra frente. Pelo menos, umas boas lapadas nos couros dão uma aliviada no estresse. Ah, como é bom… Pego uns meliantezinhos, cara de pirangueiros, e meto a sola, umas duas vezes por semana. Lavo a alma. Vou com meu amigo Nonato, reformado da polícia. Ele fala o mesmo, que desestressa, faz bem à saúde. Não passo um mês sem o “Serviço Secreto do Cidadão de Bem”, o SSCB; no máximo duas semanas, quando tiro férias – e fico mal-humorado pra caralho. O SSCB se formou em 2018, com o objetivo de ajudar na reforma do país. Sou patriota e quero o bem do povo honesto, trabalhador. O grupo está aumentando. Entraram, recentemente, o Nazi – de Nazareno – e o Milico; dois homens do mais alto quilate. Jovens, assim, renovam os propósitos. Na última reunião que tivemos, Nazi decretou que vai partir para a matança se o “bandido de nove dedos” ganhar. Vou junto, me candidatei. A polícia está do lado do cidadão de bem. O nosso presidente vai bater palmas se livrarmos o país dessa gentalha, que suga o nosso dinheiro, acaba com as nossas famílias. Encontrei o Silva, outro dia, na igreja. Ele relatou que está meio desanimado com a política e que quer entrar no “corpo a corpo”. Chamei o garotão para participar da tropa, estamos precisando de homens de bom coração. Temos que nos defender do comunismo. É o maior mal que existe no planeta. Lascou um monte de país na América Latina, mas aqui não entra! Em 2023, o nosso presidente vai liberar mais armas, e não vai ter pra ninguém; rapidinho a bandidagem vaza ou entra na linha. Maria, minha esposa, está amargurada e triste estes dias. Pergunto, e ela não tem coragem de dizer o porquê. Aprendeu a respeitar cedo, deve ser por isso. Peguei ela novinha e ensinei o caminho certo. Ela é quase muda quando está comigo. É obediente e faz bem em cuidar do maridão, da casa e dos meninos. Sim, e é inteligente, entende o que é ter um homem dentro de casa, dando do bom e do melhor. Acabei o casamento com a Patrícia, minha ex, porque queria botar moral, ser a dona da situação. Foi uma luta de seis anos, até que ela fugiu, não aguentou a pressão. A minha filha, desse casamento, está nas mãos da pilantra. Ela conseguiu, não sei como, o direito de ficar com a guarda. Desgraçou a menina. A pirralha falou pra mãe que não quer mais sair com o pai. Isso é mentira. Na minha frente, a menina não fala nada disso; só chorou um bocado no dia em que prometi cortar o cabelo dela na tora se inventar de pintar. A mãe diz que eu assusto a donzelinha. Porra, ela tem treze anos, já sabe o que é certo e errado. Se estivesse nas minhas posses, seria outra coisa; ah, sim, seria. Os lá de casa, um com oito e o outro com seis, são bem-criados, compreendem as regras da boa cidadania patriótica. Têm de aprender na marra, pra serem homens de verdade, comprometidos com a causa maior, o Brasil. É assim, não tem jeito. Cada qual com a sua missão; essa é a minha. Missão dada é missão cumprida. Em nome de Jesus.








segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Flecha - poema de Carol Ruiz

 


    Flecha


O tempo

Ancorado no espaço

Ancorado no espelho

Ancorado no retrato

preto e branco da família


O tempo

Um vulto

Um suspiro

Uma flecha

a 250 km/h na memória




Do livro Raízes, Editora Patuá 





sábado, 8 de outubro de 2022

A Chuva

 




Olhando pela janela custava-lhe a acreditar que estava na Europa e muito menos só no início do verão. A paisagem era de uma desolação de cortar a alma. Campos secos, acastanhados, como se há anos não vissem chuva. Nem uma árvore, arbusto ou planta mais alta sobressaía da planura terrosa. Nem casas, nem pessoas, nem animais, nada. Um verdadeiro deserto, uma verdadeira paisagem lunar, menos as crateras, claro.

Embora a casa fosse fresca e sombria, graças às espessas paredes exteriores, sentia-se sufocar só de pensar no calor que fazia no exterior. Em três semanas saíra apenas uma vez, logo no dia seguinte ao da sua chegada. E bastara-lhe. Limitara-se a dar meia dúzia de passos e logo desistira, sentindo-se queimar por dentro. Só a custo alcançara novamente a porta de casa, onde se refugiara, sofregamente.

E ali estava desde então, sem ver ninguém e falando apenas consigo própria. Sentia-se o único ser vivo à face da Terra, a última sobrevivente de uma terrível e misteriosa catástrofe que lhe passara despercebida e de que só agora avaliava as consequências. Era apenas uma questão de tempo até chegar a sua vez. E depois a Terra regressaria às suas origens, uma simples bola de terra e rochas, estéril e morta.

É claro que sabia que as coisas não eram bem assim. Havia certamente mais alguém na casa durante uma boa parte do dia. As suas refeições apareciam prontas na enorme mesa da velha sala de jantar, a cama era feita quando se ausentava do quarto, a roupa aparecia lavada e passada. Mas nunca via ninguém e escolhia ignorar todos os sons que poderiam ser indícios de vida, dando-lhe prazer imaginar que estava nalgum castelo encantado a ser servida por duendes, fadas ou outros seres mágicos. Não que fosse particularmente imaginativa, mas sempre lhe ficara alguma coisinha dos contos que lhe liam na infância. E, sendo assim, preferia ignorar que essa invisibilidade resultava apenas das ordens que enviara antes da sua vinda.

Viera até ali para morrer e não estava disposta a que nada interferisse com a morte do seu mundo. Ou antes, de todo o Mundo, como gostava de pensar num pequeno rasgo de megalomania. O local não fora escolhido por acaso. A velha casa já estava bastante arruinada quando ali estivera pela última vez, há séculos, segundo lhe parecia. E os anos decorridos desde então não lhe tinham sido benévolos, destruindo parte do telhado, partindo janelas, esburacando paredes. Apenas a zona central, mais protegida dos elementos e, possivelmente, de vândalos, estava ainda habitável.

A época também era a melhor para o seu fito. Os verões naquela zona eram habitualmente secos, quentes e dificilmente suportáveis por quem não estivesse habituado a eles. O sol ardente era reflectido pela terra queimada e nua, dando um efeito de fornalha. Só a madrugada e as noites eram suportáveis, amenas, até.

Naquele passado distante da sua adolescência, em que aqui residira durante as férias grandes, costumava dar longos passeios de manhã cedo, assistindo com um enlevo sempre renovado ao nascer do sol. Também as noites eram suas amigas, frescas, belas e com mais estrelas do que jamais sonhara existirem. Bons tempos, em que parecia que tinha uma vida infinita pela frente, vida essa em que tudo seria possível.

Mas agora odiava tudo o que antes a enlevara, recusando-se, até, a olhar pelas janelas enquanto o dia não estivesse adiantado e feroz. Só então a paisagem estava em sintonia perfeita com a sua alma – deserta e estéril.

Só esperava que tudo se resolvesse antes do fim do verão, antes que uma chuvada estragasse tudo dando vida e frescura à paisagem. Infelizmente, não havia garantias de que isso acontecesse, a menos que fosse ela a garanti-lo. Mas por muito erma que sentisse a alma, por muito desolada que fosse a sua vida, nunca lhe ocorrera tomar medidas para lhe pôr fim antes do tempo.

Se ao menos o médico tivesse sido mais exato! “Sem uma operação, poderá ter de três a seis meses. Se optar por fazê-la, talvez dois ou três anos. Ou mais, consoante o que encontrarmos.”

A doença fora o último golpe numa série de pequenos percalços, nenhum deles grave só por si, mas cuja acumulação gerara em si um enorme cansaço espiritual. Por muito positiva que tentasse ser, só conseguia antever uma série de dias tirados a papel químico, um trabalho sempre igual e que podia até fazer meia a dormir, uma série de conhecidos – nem amigos lhes podia chamar – que eram mais fruto das circunstâncias do que de quaisquer afinidades com ela, um apartamento herdado e que nunca se dera ao trabalho de decorar e de tornar bem seu, enfim, um ramerrame que se arrastava há décadas.

Tal como a dorzinha crónica no estômago que a afetara durante anos antes de se tornar suficientemente forte para a levar a uma consulta médica. E que acabara por ser a única coisa excitante, diferente, que lhe acontecera na vida, pelo menos na vida adulta, apesar de ser uma sentença de morte sem uma operação dolorosa e de recuperação difícil.

Ainda pensou fazê-la, chegou até a acertar uma data, mas depois caíra em si. Passar por tudo isso para quê? Para voltar à mesma vidinha que a entediava de morte? Trocar uma morte física antecipada por um tempo indefinido de morte em vida?

Fora então que decidira isolar-se para passar os seus últimos dias sem ter de aturar cenas, choros, conselhos e, o mais irritante de tudo, o ar de compaixão, falsa ou não, com que quem sabia do caso lhe falava, a começar pelo médico e enfermeira. Lembrou-se, então, da casa de campo que herdara dos pais e que nunca visitara desde que acabara o liceu. Sabia que a propriedade passara por vários arrendatários temporários para tentativas agrícolas, todas elas fracassadas, diga-se de passagem, mas a casa em si não era habitada há anos, uma vez que, estando num dos extremos, nunca era incluída nesses contratos.

O agente que lhe tratava desses assuntos ainda tentara dissuadi-la, evocando o péssimo estado em que tudo estava, mas nada a demovera. Pusera como única condição nada ter a ver com o governo da casa e não ter de ver nem falar com ninguém. Espantosamente, tudo se resolvera a seu contento e não vira qualquer ser vivo desde que entrara na estrada secundária que dava acesso à propriedade, nem sequer um animal, fosse de que tipo fosse.

E os dias do verão cada vez mais ardente foram-se sucedendo, sem que soubesse muito bem quantos já teriam passado. Deixara o telemóvel descarregar-se e nem se dera ao trabalho de trazer o portátil antigo que usava muito esporadicamente, já lhe bastavam as longas horas passadas ao computador durante o horário de trabalho. Só tinha uma noção bastante exata das horas porque havia na casa vários relógios antigos, dos de dar corda, que decidira deixar que funcionassem, uma vez que o seu toque, um tanto lúgubre ao ecoar na casa vazia, parecia ser a banda sonora adequada ao filme chatérrimo que era a história da sua morte.

Incrivelmente, sentia-se bem melhor a cada dia que passava, não fisicamente, claro, a dor piorara imenso e só a mantinha em respeito aumentando cada vez mais a dose de comprimidos de que trouxera uma boa quantidade, mas espiritualmente, talvez por estar finalmente em sintonia com o mundo que a rodeava: árido, em ruínas e sem vivalma. Dormia, finalmente, bem, sem sonhos que a despertassem alvoroçada, e acordando sem se sentir esmagada pelo peso da sua vidinha.

Se ao menos o fim chegasse antes que algo acontecesse e estragasse tudo!

Uma noite, porém, houve algo que a acordou. Um ruído surdo e monótono, mas quase musical. Ensonada, levou algum tempo a perceber do que se tratava. Era a chuva, a maldita chuva que decidira aparecer apesar do dia ter estado, como sempre, um forno de céu sem nuvens. Mas podia ser apenas uma pequena chuvada que não fizesse grande diferença no solo tão seco. Só a manhã o diria.

O som ritmado acabou por fazê-la adormecer e quando finalmente acordou e abriu as portadas o sol já ia alto. Infelizmente, a primeira coisa que viu foi o solo enlameado do que fora outrora um pequeno jardim lateral e era agora apenas um espaço de terra batida. Mesmo assim, ainda havia a esperança de a chuva não se repetir e voltar tudo ao normal.

Esperança vã! Começou a chover todas as noites, apesar de nem uma nuvem se ver no céu quando se deitava. E em breve o solo ocre e desértico estava coberto de um verde ainda ralo, mas que se alastrava a cada dia que passava, como se as muitas ervas daninhas só esperassem por um pequeno encorajamento para voltarem à vida antes que o frio gélido do inverno as voltasse a matar.

E com esta mudança veio-lhe um sentimento de inquietação, de insatisfação, que a fazia percorrer a casa de ponta a ponta, até as zonas instáveis e perigosas, numa tentativa vã de esgotar toda essa energia nervosa e recuperar a calma interior em que vivera durante as últimas semanas. Também a saúde não dava sinais de piorar e a morte fazia-se esperar – uma breve carga do telemóvel confirmara que estava ali há três meses. E os sonhos que nunca conseguia recordar quando acordava voltaram, dando-lhe um sono inquieto que a deixava mais cansada do que quando se deitara.

Ao fim de alguns dias teve de se render à evidência. O breve período de sintonia com o mundo que a rodeava tinha acabado. Esta paisagem verde, cheia de vida e de novidades diárias era-lhe ainda mais estranha do que o mundo citadino de que fugira. Ali, pelo menos, sabia com que contar, podia simplesmente deixar passar os dias meia acordada, quase como um autómato.

E com o azar que sempre tivera, era bem capaz de morrer sem voltar a ver o “seu” mundo, no próximo ano.

Sim, vistas bem as coisas, mais valia voltar à cidade, ao emprego, de que estava de licença sem vencimento, aos seus vários conhecidos. Felizmente, poucos sabiam da sua doença e poderia sempre evitá-los caso se tornassem demasiado incómodos. Ou, melhor ainda, poderia despedir-se e ficar simplesmente em casa, abastecendo-se totalmente via Internet. Assim, só veria o pessoal das entregas e o médico, claro, para renovar as receitas.

Era isso mesmo, aguardaria o fim na sua suposta casa e não aqui, como desejara mal soubera da sua sentença de morte.

Maldita chuva!

Luísa Lopes





segunda-feira, 3 de outubro de 2022

OUTRO SILVA IS DEAD


 

                                                               “saí para me divertir,

                                                                            acabei num enterro.

                                                                            um parente distante.”

                                                                                   (Dostoiévski)

Por Ferreira Jr. (*)

            Eu não sabia até então. Sexta-feira de chuva fina e o colapso do mundo sendo alardeado por todos e em tudo quanto é canto. Desliguei-me das pessoas mais em função disso, pois preferia a visão das nuvens e dos pássaros que eu alimentava como se estivesse longe. Não estava. A realidade me cerceava e eu saí para encher a cara. Num pequeno beco sem saída havia um boteco e logo em frente o cemitério.

            Entre um gole e outro passou o cortejo fúnebre e resolvi acompanhar. Durante o percurso fui informado que se tratava da morte de um sujeito conhecido como “Outro Silva”, aliás, pouco conhecido, a julgar pelo nome. Afinal são tantos silvas que um silva a mais ou um a menos não faria, àquela altura, muita diferença. Como se fosse um silvo no deserto.

            Devido a esta singularidade do nome do defunto, resolvi acompanhá-lo até sua última morada e no trajeto tentaria saber mais sobre o cadáver. Entabulei conversação com um senhor de meia-idade que estava do meu lado, julgando que fossem parentes. Na verdade, só trabalhavam juntos num escritório mixuruca de contabilidade e redação de textos para jornais.

            Alexandre Barret era o nome da pessoa com a qual eu falava. Indagado a respeito do falecido disse-me que o “Outro Silva” era um homem estranho como o próprio nome, mas davam-se bem no serviço diário onde se encontravam como empregados de um proprietário, que morava numa cidade distante e repassava as suas ordens por telefone ou por e-mail.

            Numa dessas ordens foi que o “Outro Silva” se destacou, produzindo sob encomenda seu único texto re/conhecido: “Gênese de um nome e de um livro”, que acabou sendo publicado como apresentação ao livro “Textos e Ensaios”, do escritor mineiro Milton Rezende.

            “Depois disso, apesar da pequena repercussão favorável aos seus escritos, não produziu mais nada que eu saiba e entrou assim numa espécie de recesso das ideias”, disse-me o Barret sobre o seu finado amigo, quando já ultrapassávamos o portão de grades da entrada do cemitério. Poucas pessoas acompanhavam o cortejo, pois atualmente já não se usa muito celebrar os rituais da morte e ela, esvaziada do seu contexto histórico, aninhou-se no subconsciente humano produzindo ali estragos ainda maiores de quando era uma senhora respeitada na sociedade.

            A causa da morte do “Outro Silva”, conforme atestado de óbito assinado pelo médico plantonista, Dr. Carlos Águia, teria ocorrido em função de “insuficiência respiratória aguda, edema agudo do pulmão, infarto agudo do miocárdio e hipertensão arterial sistêmica”. Contava 47 anos.

            Foi enterrado ao lado do finado Tibúrcio Soledade que, segundo consta, teria sepultado a si mesmo no quintal de sua própria casa numa crise de identidade. Mais tarde seu corpo foi transladado para este cemitério e agora jazem os dois em covas rasas, esquecidos de si mesmos e dos homens com os quais haviam convivido.

            Despedi-me do Alexandre Barret na saída e uma vaga nuvem de tristeza rondava-me os olhos lacrimejantes. Voltei ao boteco do beco para celebrar a continuidade da vida num ninho de passarinho que eu vira construído no coqueiro ao lado do túmulo do “Outro Silva”.

            Sobre a mesa do bar estava um exemplar do Diário de Notícias, estampando em letras garrafais a corrupção nossa de cada dia e a cara dos políticos escarnecendo das nossas caras de otários. Um sujeito passou na rua de carro e deu para acompanhar o refrão da música de rap que tocava através do pen drive: “era só mais um silva que a estrela não brilha”.

 

(*) Ferreira Jr. é um heterônimo de Milton Rezende