(disparei o cronômetro)
este poema iniciou há vinte minutos
porque precisei
antes de escrevê-lo
fazer alguns cálculos
(sou péssimo para contas de cabeça)
calculei todos os gastos para que tu
estejas diante desse poema
(até agora já se passaram três minutos
desde o disparo)
para estar sentado em meu colchão
usando meu notebook
itens que não considero mais para a contabilidade
já se incorporaram a mim
meu corpo levou trinta e três anos
três meses
catorze dias e dezoito horas
(dezenove ao fim do poema)
para estar em condições de estar aqui
(uma pausa)
estar aqui e agora escrevendo um poema custa-me
(aluguel
condomínio
energia elétrica
internet
livros de poesia e
litros de álcool)
quase dois centavos por minuto
(nova pausa
ela fala que vai a porto alegre
para um congresso
ficará lá quatro dias
retomo o cronômetro)
há pouco tempo eu recebia um salário do comércio
recebo agora uma bolsa de estudos
dum órgão de apoio a pesquisadores
vinculado ao governo federal
ganho três centavos e meio por minuto para estudar poesia
dinheiro (prefiro acreditar)
bem investido
dos impostos do contribuinte
goste ele ou não de poesia
(abre parênteses
eu conto todos os minutos do dia
porque ganho inclusive para sonhar
que estou escrevendo artigos científicos
sobre poesia
eu deveria
nesse momento meu dever seria escrever
um artigo científico sobre um poema
pra um seminário ou congresso ou simpósio
sobre poesia
mas parei para escrever
um poema
sobre poesia
fecha parênteses)
fazendo as contas
este poema levou
para ser escrito
revisado (reescrito em boa parte)
cerca de duas horas
(ela chama minha atenção para qual seria a possível
e ingrata profissão de william shakespeare
no século vinte e um
diz que ele tem cara de trabalhador do comércio
ou de prestador de serviços
eu digo que estou escrevendo um poema
ela pede desculpas)
a mim
depois de duas horas
custou dois reais e trinta e dois centavos
aos cofres públicos
abastecidos pelos impostos
(os teus impostos
caro contribuinte
pelo que sou muito grato)
esse mesmo tempo custou
quatro reais e dez centavos
fiquei com um real e setenta e oito centavos de troco
esse um real e setenta e oito centavos
(ganhos desonestamente com poesia
em vez de artigos científicos)
correspondem aos cinco doze avos que eu mesmo pago
em impostos
resultado
nem eu
nem tu
(nem ela
que adormeceu me esperando para dormir)
(nem meu vizinho
que tosse para mostrar que está acordado
por causa do ruído intermitente do teclado
que escapa dia e noite do meu apartamento)
ganhamos nada
já está incalculável
o prejuízo de nossa convivência
__________________________________________
Poema submetido à seleção da segunda fase do concurso do site Autores S/A.
Desclassificado, infelizmente.
2 comentários:
Pena a desclassificação. Porque, como sempre (ultimamente) é de uma grande genuinidade. Ou honestidade. Mais exposto não se pode estar.
Muito, mas muito bom! Então, deixo esta ideia: nunca se perde um concurso. Ainda que não tenha didi classificado, vc ganhou o poema... Quando classificamos, ganhamos o pleito! Quando não, simplesmente deixamos de vencer, jamais uma perda.Este poema possui a etiqueta de... vencedor!
Postar um comentário