De um dia para o outro, coisas
começaram a cair na cozinha.
Pratos, copos, xícaras e canecas
amanheciam despedaçados no chão.
Talheres, cestas, latas e
sacos de condimentos permaneciam mudos e intactos em seus postos. a aparência
plácida e estática, como se sua segurança dependesse de seu silêncio e
alienação.
A partir de então, quase
dois anos agora, todas às manhãs era a mesma coisa: eu levantava, ia à cozinha,
recolhia pacientemente os despojos de minha louça e, agachada, analisava ali
mesmo se seu destino seria o lixo ou a recuperação.
Muitas peças eram salvas,
devo admitir. Ali perto de onde tudo caía havia um tubinho de cola, desses que
tudo grudam, aguardando de prontidão. Então eu o passava lentamente nas partes
separadas e, como se montando um quebra-cabeça, resgatava aos cacos sua
integridade.
Outras peças não. Algumas
viravam verdadeiros estilhaços, outras perdiam lascas que não mais se
encaixavam ou que de tão finas saltavam para longe e sumiam de meu campo de
visão.
A hora era sempre a mesma,
eu via e sentia tanto pela claridade do céu quanto pela temperatura do quarto:
no prenúncio do amanhecer. Hora certa e medida? Não sei. Era quando o céu não
estava mais tão negro e quando a temperatura subia fazendo com que eu me
livrasse do lençol e da manta com um movimento insistente dos pés. Então, em
sequência a esse movimento de cobertas sendo jogadas no chão, ouvia o estalo e
o estilhaço das louças se espatifando.
Eu ouvia e aguardava. Às
vezes, tentava até adivinhar. Quantas seriam? Quantos copos ou quantos
pratos? Quais itens seriam
privilegiados?
A quebradeira demorava uns
dez minutos, um item de cada vez, em queda livre, sem impulso: Plaft... plaft.... plaft. Com o tempo, fui desenvolvendo a capacidade de
perceber qual peça caía e qual o intervalo entre uma e outra.
Os copos de vidro produziam
um som mais aberto e alto, pareciam explodir: Plaaaft! As canecas de cerâmica, um som mais fechado, mais baixo,
como se com elas tudo fosse mais sério: Plâft.
As xícaras de porcelana branca eram a
que produziam mais barulho, as mais escandalosas, como quem perde a virgindade
à força: Pláááááft! Pláááááft! Pláááááft! Quanto aos pratos, engraçado, não
havia muita diferença entre eles.
Produziam um baque... e um crack.
Uma vez só, normalmente ao meio.
O intervalo entre as quedas
variava também. Se começasse pelos copos, em três minutos cairiam as xícaras
de porcelana branca ou em cinco
minutos as canecas. Plaaaft... Pláááááft!... Plâft.
Quando os pratos tomavam
parte na quebradeira ouviam-se cracks
repetidos entre plafts, pláfts e plâfts.
Assim sucessivamente,
diariamente, rotineiramente.
Um dia levei um jarro para
casa, um belo jarro azul-marinho. Cerâmica pesada, artesanal, com acabamento
esmaltado e arabescos dourados em tom fechado − “ouro velho” presumi.
Sem querer envolvê-lo no
ritual suicida de minhas louças utilitárias, acomodei-o numa prateleira
distante, bem à altura dos olhos.
De tão pesado, não caberia usá-lo. Ficaria em
minha cozinha como peça decorativa e admirável, que todos os dias eu admiraria tanto
por sua beleza quanto por sua sofisticação.
Meses de calmaria
experimentou o meu o jarro, como mero expectador dos espetáculos matinais até
que, no espaço de algumas semanas, começou a trocar de lugar.
Passei então a não mais saber
onde o veria. Alternava-se nas prateleiras, ora subia ora descia. E às vezes aparecia
sobre a mesa, como uma sentinela.
Tive medo de que se
quebrasse, mas isso não acontecia. O que era bom, pois não conseguiria repô-lo
com a facilidade que repunha as louças.
Caso quebrado, ou viraria
caco colado ou lixo triturado em caminhão.
Eu preparava o café naquela
manhã, a água esquentava na chaleira, o pó aguardava no filtro de papel. Eu lia o jornal, sentada à mesa quando ouvi o
ruído do jarro se arrastando.
Um
arrastar lento, pausado, quase inaudível.
Levantei e
fiquei olhando para ele. Mexeu-se novamente, como se executando uma dança
compassada. Era a primeira vez que isso acontecia.
Me
aproximei, alisei-o com minhas mãos mornas e a dança cessou.
Mudei de
posição à mesa e continuei a ler, os olhos ora no jornal, ora nas prateleiras.
Foi quando
tive a ideia.
À noite,
quando aquela mesma hora chegasse, quando percebesse o clarear do céu e a
elevação da temperatura, eu não aguardaria mais no quarto. Chutaria as cobertas para o chão e levantaria
em seguida. Iria então pé ante pé à cozinha e veria in loco o que há anos acontecia.
Acabei o
café e saí para a biblioteca. Teria um expediente cheio, muitos livros para
receber e catalogar.
O dia
transcorreu normalmente, fui e voltei do trabalho. À noite, me despedi de meu
namorado que há dias insistia conhecer minha casa. Tenho tia doente e acamada, caso perdido, coitada, explicava a ele. Melhor não ir por enquanto, não seria
agradável.
Ele concordava
relutante e ia embora.
Voltei
para casa, acendi a luz da sala e larguei bolsa e pastas sobre o sofá. Logo em
seguida, entrei no quarto e abri a
janela para arejar. Fechada durante todo o dia, o ar vicioso da casa me
sufocava.
Descansei
um pouco, tomei banho e me preparei para a noite. Os filmes na tevê não me
interessavam, comédias românticas ficção da ficção. O livro na cabeceira me deu
sono. Dormi.
Então
acordei àquela mesma hora e, como planejado, chutei as cobertas e logo me
levantei. Saí sorrateiramente do quarto, atenta a qualquer ruído vindo da
cozinha, e segui.
Nada.
Encostei o
ouvido à porta da cozinha e fiquei aguardando do lado de fora, espiando pela
fenda entre as dobradiças. Devem saber
que estou aqui, pensei.
Então entrei
e, protegida pela geladeira, fiquei olhando para as louças, para os jarros. Tudo
parado.
Minutos
depois, a dança começou aos estalos que, num crescendo, transformou-se em frenesi.
E as louças foram saltando para os meus pés, para cima de mim.
De repente,
como se numa explosão de loucura e vigor, todas as portas dos armários se
abriram e todos os copos, pratos, potes, xícaras me atacaram, jogando-se em
minha direção. Estilhaçavam-se na lajota
fria e ricocheteavam em cima de mim.
Fui sendo
alvejada, jogada para trás, sentindo cortes rasgarem minha pele e cacos pontiagudos
abrirem furos em minhas pernas, em meus seios, em meu rosto.
Protegi os
olhos e comecei a gritar, a chorar de pânico e dor. Apavorada, saí correndo da
cozinha e subi as escadas. Se ficasse ali, morreria.
Num
impulso, abri ofegante a porta do quarto de minha tia. Ela estava deitada,
esticada, a camisola escura tomada de pó. Tudo fechado, o tal ar viciado, reconheci, vinha
de lá. Há quanto tempo estaria assim? Há quanto tempo não a via?
Então a
olhei de perto.
Com os
olhos vidrados no rosto de porcelana branca, virou lentamente o pescoço num
grosso e sonoro arrastar. Tinha a face craquelê, a pele envernizada. Olhou-me sem
ver, mexeu músculos frágeis e flácidos.
Meu sangue
pingava, empoçava no chão e secava com rapidez. Naquela poça endurecida,
senti-me imobilizada.
Tentei
correr, mas não consegui. Quanto mais o rosto porcelanado se virava para mim,
mais craquelado ficava, mais rachava, quebrava. Até começar a cair:
Pláááft...
pláááft.... pláááf.
Esfacelou-se
completamente. Senti ânsia de vômito. Fiz força para não envergar. Segundos
depois, foi como se tudo começasse a ficar mais fluido, diluído.
O sangue
endurecido foi ficando gosmento até voltar ao seu estado líquido. Meu vômito começou
a escorrer pelo quarto feito água pura, pura bile.
Saí dali.
O
movimento na cozinha havia cessado, nenhuma peça de vidro ficara inteira. Nem
meu jarro tão caro. Sentei-me à mesa e olhei desalentada para o chão. Nada a
fazer.
Em
sequência, peguei vassoura, pá, jornal, pano, balde, água. Voltei ao quarto,
varri os restos de minha tia, limpei a nojeira. Fiz uma trouxa com os lençóis e
escancarei as janelas para arejar.
Voltei à
cozinha, juntei os estilhaços e joguei tudo fora. Nem uma só xícara permanecera
intacta. Talvez isso significasse o fim.
Apressada,
terminei a limpeza. Em meia hora teria que sair. Tomei um banho, limpei os cortes
pelo corpo e me vesti. Virei as costas e fui embora.
Sentia-me
aos cacos, o corpo tenso, os cortes ardendo, os movimentos duros, os ossos a
estalar.
Fui
andando pela calçada rumo à biblioteca. No caminho, procurei respirar
profundamente para relaxar. Teria mais um dia cheio pela frente.
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