Joaquim Bispo
Todos
sabemos que os mortos não voltam; por uma razão muito simples — morreram. No
entanto, uma inaptidão para lidar com a interrupção do devir leva-nos a
imaginar os nossos mortos, em forma carnal incorrupta, como quando os
conhecemos. Aliás, a aventura humana, com as suas contínuas “entregas de
testemunho cultural”, é muito eficaz a fazer-nos proceder como se houvesse um
devir contínuo. E um contínuo progresso. Esta nossa capacidade de abstração e
de idealização permite-nos imaginar os cenários mais inverosímeis com a
naturalidade das coisas quotidianas.
Um
avô meu morreu em 1950, quando eu tinha dois anos. Uma lembrança que tenho dele
é, provavelmente, falsa. Era um agricultor que tinha vivido sempre na aldeia —
exceto a passagem por França, na I Guerra Mundial — e cuja informação se fazia
nos mercados, nas conversas de vizinhos e, talvez, num jornal mensal. O mundo
dele era calmo, duro, equilibrado. Vivia ao ritmo das estações. A curiosidade
de o conhecer é natural. Como seria se o encontrasse hoje, ele parado nos
cinquenta e tal anos da fotografia da parede, bem mais novo que eu agora? Como
nos relacionaríamos, se convivêssemos durante, digamos, um mês? Como camaradas?
A sua ascendência prevaleceria, ou a minha maior idade fá-lo-ia reverente,
vindo ele dum tempo em que o respeito pelos mais velhos era sagrado?
Se
bem o vislumbrei, melhor o fantasiei. O meu avô esteve connosco um mês.
Acompanhou a minha família em todos os momentos, desde os de lazer caseiro, aos
de afobamento de afazeres citadinos. Mostrei-lhe as maravilhas do meu tempo e
indaguei-o sobre muitos aspetos do dele. Levei-o velozmente pelos lisos tapetes
das autoestradas do país, mostrei-lhe a ponte de dezassete quilómetros sobre o
Tejo, mergulhámos de metro no ventre da cidade em hora de ponta, guiei-o pelas
avenidas dos grandes centros comerciais e outros formigueiros. Ele mostrava-se
um pouco confuso, mas muito adaptável. Gostou especialmente da televisão por
cabo. Devorava sobretudo as notícias. Embora se admirasse com os telemóveis, o
computador e a internet, ficava particularmente desconfiado com o microondas e
divertido com a máquina elétrica de barbear. Achava piada às roupas deste tempo
e às pessoas nos ginásios. Ver-me a pedalar em seco levava-o às lágrimas.
Gostou de encontrar roupa pronta a vestir e de conhecer as várias utilizações
dos plásticos. Apreciou o serviço de aconselhamento médico pelo telefone, a que
tive de recorrer. Admirava a utilidade de conservação do frigorífico e a
frescura das bebidas e da fruta, embora achasse esta insípida, apesar das cores
fortes e dos tamanhos surpreendentes.
Finalmente,
chegou o dia em que o prazo planeado acabava. Chamou-me de lado e — cito de
memória — disse-me:
«Amaro,
meu homónimo, meu velho neto, gostei muito de conhecer a tua família e o teu
mundo. É um mundo admirável, mas difícil de compreender para um homem do meu
tempo. Custa-me a crer que os homens foram à Lua, que desvendaram as entranhas
da vida, que criaram certas maravilhas tecnológicas. Talvez tenham feito tudo
isso, mas continuam a não ser solidários; nem sequer conseguem viver juntos. As
guerras são permanentes, e em inúmeros pontos do planeta há milhares de pessoas
a morrer de fome — que conceito abominável — enquanto nos países ricos se
destroem milhares de toneladas de alimentos, para não deixar baixar os preços.
As cidades estão cheias de fumo e sobrepovoadas. As pessoas amontoam-se em
pequenos espaços, trabalham toda a vida para pagar a casa, quase não veem os
filhos. Toda a gente tira cursos superiores, mas poucos conseguem exercer uma
profissão nessa área de estudos. Os jovens apenas conseguem trabalhos
precários, às vezes, escravatura encapotada, com nomes pomposos como “estágio
não remunerado”.
E,
no entanto, tens razoáveis condições para ter uma vida boa: já não trabalhas,
recebes o suficiente para viver, tens tempo e saúde, podes fazer o que
quiseres. E o que fazes tu? Agora brincas aos cronistas, como tens brincado aos
bloguistas e aos contistas. Passas demasiado tempo ao computador. Tens mais
amigos na internet que na “vida real”. As novidades tecnológicas vêm,
envolvem-te e passam. Tens centenas de DVD que nunca vês, dezenas de CD que
nunca ouves, rádios, oitenta canais de televisão, dos quais vês meia dúzia. A
oferta é avassaladora, dispersa-te. Era um mundo assim que idealizavas?
Parece-me que estás esquecido dos sonhos da adolescência. Diz-me: és feliz?»
Antes
que eu tivesse tempo de responder, deu-me um abraço e foi-se embora.
Melodramático, este meu avô, mas interessante. Gostava de ter estado mais tempo
com ele!
* * *
(Esta crónica integra a coletânea resultante da edição de
2013 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente.)
* * *
Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77
7 comentários:
Obrigada pela crónica e parabéns mais uma vez! Mas será que o seu (e até o meu) avô teria como dúvida existencial a felicidade? Não será duma época mais recente essa aspiração social e pessoal à felicidade? Nos meus familiares mais velhos e mais localizados no conhecimento do mundo, as preocupações que lhes ouço são as relativas à saúde (o ter uma vida longa era uma fortuna!), à segurança (por exemplo, as colheitas serem boas e garantirem o ano), e às boas relações com os outros no cumprimento das regras. A palavra "felicidade" não me aparece com naturalidade nas suas bocas. Por isso não creio que o sentido da vida para eles se centre no "ser feliz". Porventura o seu avô - imaginado -, perspicaz como os antigos, percebeu logo a contradição do nosso tempo e foi directo à questão: "És feliz?"
Lia
Perspicaz comentário, Lia. Na verdade, o avô não regressou — “os mortos não regressam”. Tudo é interpretação do narrador, como que numa espécie de autoanálise envergonhada. Ainda assim, esse aspeto de verosimilhança devia ter sido prevenido.
Talvez o avô não falasse em felicidade, mas teria o conceito de harmonia com os homens e as outras forças presentes. Aliás, o avô não teria todo aquele discurso urbano e, em certo sentido, sofisticado. O vocabulário não seria, de certeza, aquele. “Felicidade” enquadra-se assim nessa liberdade do narrador de transformar em linguagem sua e mais entendível pelo leitor o que seria uma coloquialidade que ele não consegue recuperar.
Obrigado pelo excelente comentário, distante das louvaminhas tão frequentes no facebook.
Muito bom! Parabéns! Claro que és feliz! Se escreves, és feliz!
Obrigado, anónimo. Se calhar, tens razão.
Eu imagino, muitas vezes, como eram meus avós. Não conheci nenhum dos quatro. E o exercício de imaginar me faz...feliz. Apesar de tantas diferenças, e de sempre imaginarmos que uma época foi melhor que a nossa, esse saudosismo geralmente só nos aparece quando já somos mais velhos. Jovens, não nos apercebemos muito das distâncias entre as épocas. Eu gosto do presente. Apesar de sempre ter amado o tempo das valsas, dos sonetos de amor, dos cavaleiros vibrantes, lembro também que era um tempo de doenças sem cura, de amores proibidos por famílias, de muita miséria do povo e, acima, de tudo, um tempo em que as mulheres não tinham direito a nada, só ao silêncio e à ignorância, aos casamentos arranjados e a uma total submissão. Imaginar o passado e revê-lo é bom. Ficar lá, não creio. Feliz ou infeliz, prefiro sê-lo no presente. Mas sou feliz. Tenho felicidade ao redor, apesar de também ter tristezas e desgraças. Filha, árvores, sol, céu azul, chuva, grama, cachorros, minha escrita, saúde (as mazelas que eu tenho são detalhes) . Sim, eu sou feliz!
Belo texto que me convidou à reflexão! Obrigada!
Cinthia, fico contente por tê-la ajudado a refletir sobre o assunto. E por ter incluído a sua escrita nas coisas que lhe dão felicidade.
A minha geração viveu muitas “eras” em apenas 60 anos. Como as coisas mudaram!: as que não tínhamos (ou tínhamos outras) e as que temos (ou as outras que nos faltam).
Mas cá estamos, saudosos dos outros tempos, mas contentes por estarmos a viver este tempo de maravilhas.
Certamente que a situação da mulher era muito lamentável. Pessoalmente, considero que a maior alteração que a Revolução dos Cravos nos trouxe foi a da situação da mulher. Não há comparação. Acho que as mulheres ainda estão a pagar caro essas conquistas: este ano já foram assassinadas pelos companheiros, geralmente ex, cerca de 30 mulheres. A mulher já interiorizou a liberdade, o homem ainda não.
Obrigado por partilhares o que te vai na alma.
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