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domingo, 26 de outubro de 2014

Diante da forca

Ela ocupava um naco de quase nada dos meus pensamentos. Aparecia e sumia rápido, sem deixar cicatriz. Não causava insônia ou gastrite. Passava ao largo dos meus poemas debutantes. Nas aulas de Introdução à Filosofia ou de História do Pensamento Filosófico-Científico Ocidental da universidade, a discussão acerca do tema não me apetecia muito. Eu chegava a cochilar, enquanto o pós-doutor desfilava aqueles conceitos intransponíveis, cuja comprovação empírica nenhum dos alunos se aventurava a querer passar. A verdade é que a vida pulsava sempre tão lépida no meu dia a dia, que o fantasma da morte não me amedrontava.

O problema foi eu ter me tornado pai. Quando minha filhota nasceu, há três anos, a "indesejada das gentes" sentiu-se no direito de aparecer no meu canteiro, hóspede maldita com presença confirmada. Entre uma lavoura e outra — nas minhas atividades como cronista, contribuinte, marido, filho e pai —, a erva-daninha ocupou-se de me atazanar.

Desatemos qualquer equívoco, querido leitor: não perdi nenhum ente querido. A mulher e a filha suportaram bem o parto e vendem saúde. Parecem mais vivas que nunca. A preciosa não precisa de mim para nada. Se eu for embora, certamente sobrevive. A morte física não me beliscou com ataque fulminante, nem aos meus. O que apareceu de repente, sem motivo real, foi a iminência de vitória da diaba, com todo o poder que ela tem de resgatar qualquer um (inclusive eu) a qualquer momento, de forma definitiva.

Assim, diante de uma ameaça constante da morte, fui tomado por um desejo de viver eternamente. Apresento apenas alguns dos muitos motivos. Preciso prover minha casa e família. Tenho um romance inédito a entregar ao editor até o fim do semestre. Ainda não me reconciliei com minha irmã mais velha. Minhas gavetas estão desorganizadas e ninguém saberá compilar meus poemas num livro póstumo — não numero páginas, nem designo títulos ou separo capítulos. Preciso fazer campanha contra o Aécio. Falta ler a obra completa de Guimarães Rosa. Preciso degustar Shakespeare no original. Só agora consegui descartar a única amante, primeira ex-namorada, para me dedicar fielmente à esposa. É injusto deixar viúva tão bela e órfã tão pequetita. Só consigo correr meia maratona. Ainda considero difícil distinguir o conto da crônica. Essa morte deveria tocar outro fazendeiro...

Enquanto capino palavras supérfluas numa sentença, enquanto sedimento amores no campo literário, ou planto sementes que acredito fecundas num novo texto, ou até mesmo enxerto ideias na troca de e-mails com leitores, preparo também o canteiro para a minha morte. Como já disse, não mereço sua foice cortando o meu pescoço. A sedução do paraíso também me parece desanimadora, já que o cumprimento da promessa tem garantia limitada para os santos ou pouco pecadores. Ávido, retomo meu Saramago e releio os grifos de As intermitências da morte. Quem dera se ela resolvesse fazer greve ou cessar justamente na minha vez... Quem dera uma vida eterna aqui mesmo...

Não sei se isso é positivo, mas pensar na possibilidade de a morte me sorver tem-me feito alguém melhor. Conversão radical! Outro dia, lavei as louças sujas lá em casa (até a panela de pressão e a leiteira). No domingo, levei minha filha ao zoológico e esperei, paciente, que a girafa saísse da toca. Tento não encrencar tanto quando a mulher pinta as unhas de vermelho. Já topei até participar do próximo Encontro de Casais com Cristo da minha paróquia, obedecendo a um pedido dela. Meu tio encomendou-me um discurso para sua posse num dos clubes de serviço de que é membro, e eu escrevi o pronunciamento de bom grado, entregando-lhe a tempo do ensaio. Nunca mais xinguei um flamenguista no trânsito, e estou menos agressivo com os cruzeirenses. Enquanto escovo os dentes, deixo a torneira fechada. Respeito a vaga de deficientes e idosos nos estacionamentos. Não escrevi linha alguma criticando a escalação do Dunga para os amistosos. Beiro à santidade, hein?!

E você esboça um sorriso, ilustre leitor. Não se convence com os planos deste alguém que deseja chegar a uma boa morte? Considera fracos os meus argumentos? Gostaria que eu me preparasse de forma mais efetiva, antecipando o pagamento das prestações do velório, flores, esquife, previdência privada? No mínimo, considera um dever que eu já deixe redigido meu obituário, para facilitar o trabalho dos colegas de redação. Antevejo seu sarcasmo quando critica minha coluna em branco (ou negro) no dia do meu falecimento. Mas mesmo que seja do seu interesse, nada disso eu vou fazer, porque minha partida demora, amigo. Duvido até que aconteça um dia. Prefiro relatar caprichosamente a morte de outrem, até mesmo a sua, se preciso for. Não somos inimigos, mas prefiro que tirem o seu couro ao meu. Desculpe a franqueza. É verdade. Essa história está ficando muito sem graça. Quero mesmo é que a morte volte a ocupar um naco de quase nada dos meus pensamentos e escritos.

Maria Amélia Elói

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