terça-feira, 28 de dezembro de 2021
Para Um Bem Maior
sábado, 25 de dezembro de 2021
Quarta-feira na luta de classes
A meio da tarde, D. Matilde pediu a Ramiro:
— Prepare o carro e leve-me a Cascais, a casa da Tatá Menezes, se faz favor.
Durante a viagem, a senhora parecia apreensiva, ao contrário de outras ocasiões em que se encontrara com a amiga, e quase não falou. Já nas alamedas do bairro chique da Gandarinha, alterou:
— A Tatá mandou-me agora uma mensagem a dizer que está no bar do Hotel do Cabo. Vamos para lá, está bem?
Perto do hotel, Ramiro ouviu um sinal de chegada de mensagem. Entraram no estacionamento subterrâneo, mas D. Matilde manteve-se sentada. Pelo espelho, Ramiro percebeu alguma perturbação no rosto da patroa. Parecia claramente abatida. Após uns momentos que lhe pareceram longos, quebrou o silêncio.
— Esperamos um pouco, Sra. D. Matilde?
— Sim, deixe-me descansar cinco minutos.
A passageira cerrou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Mantinha o telemóvel na mão, como se se tivesse esquecido dele. Por pudor profissional, Ramiro passou a olhar ostensivamente para fora, após perceber um esgar ténue no rosto da patroa. Uns dez minutos depois, D. Matilde abriu a porta do carro:
— Ajude-me a levar a minha nécessaire, Ramiro, se faz favor. Preciso de me estender um pouco.
Tomaram o elevador para o segundo andar e, aí, D. Matilde entregou a Ramiro uma chave eletrónica marcada 202. Da janela larga da suíte avistava-se uma ampla mancha verde de pinhal. Ao fundo, o azul profundo do Atlântico. D. Matilde tirou o elegante bolero de cetim e sentou-se no sofá da zona de convívio.
— Sente-se aqui, Ramiro; faça-me um pouco de companhia! Traga um martini para mim, aí do bar, e uma bebida para si.
O motorista escolheu um maple fronteiro ao sofá, receoso de impor familiaridade não desejada.
— Há quanto tempo está connosco, Ramiro?
— Vai fazer treze anos em outubro, minha senhora. Foi pouco antes de o Sr. Conselheiro ter comprado os vinhos de Bucelas. Eu era motorista do dono daquelas caves, o Dr. Valadares. O Sr. Galhardo encontrou-me lá, fez-me uma festa e convidou-me a trabalhar para os senhores. Já me conhecia de Angola.
— Ah, eu lembro-me de si, muito jovem, ainda com o cabelo todo preto.
— Sim, a idade não perdoa.
— Bons tempos! Naquela altura, eu ainda nem tinha cinquenta, ainda estava bem viçosa. Agora, é o que se vê!
— Ó Sra. D. Matilde, por amor de Deus, a senhora está igual! — protestou Ramiro. — Parece que os anos não passam pela senhora.
— Não diga isso, Ramiro, que eu tenho espelhos. E o espelho mais cruel são os olhos dos outros. Dantes, os homens comiam-me com o olhar; agora… Se soubesse o que me aconteceu hoje!
— A sério, minha senhora. Acho-a muito bonita; sempre achei.
— Nesta idade ganha-se muita insegurança. Gasto fortunas em tratamentos para a pele. Mas, é quase só massagens e cremes. Só fiz um lifting e pus um pouco de silicone no peito. O rosto tem este aspeto, que engana, mas o corpo… nem tudo está bem. — Levantou-se e rodou lentamente à frente de Ramiro. — Acha que ainda sou atraente? Sinceramente!
D. Matilde era alta e um pouco magra. Tinha olhos azulados e pescoço esguio. Usava cabelo louro sempre bem armado, toaletes caras e, quase sempre, delicados perfumes florais. As suas formas mostravam alguma alteração pela idade, que as roupas disfarçavam. As ancas estavam um pouco menos arredondadas e a cintura um pouco mais cheia, mas o rosto apresentava-se bastante liso e os seios eram mantidos no ponto correto. Ramiro lembrava-se dela como uma mulher deslumbrante e ainda era fácil reconhecer o seu aspeto de então.
— Acho-a muito atraente, Sra. D. Matilde. Sempre achei.
— Ah! Ó Ramiro, você é tão cavalheiro. Eu pedi que fosse sincero!
— A sério, minha senhora; acho-a muito… desejável, se me permite.
— O que lhe agrada em mim?
— A elegância, os olhos, o rosto. Os lábios.
— Só?!
Ramiro não respondeu logo.
— Os seios. Sempre gostei dos seus seios. Não leve a mal.
— Sempre?
— Sempre. Às vezes, tinha que fazer um grande esforço para conter o meu olhar de fugir para eles.
D. Matilde manteve-se silenciosa a fitar Ramiro, como que a certificar-se da sua sinceridade. No passado, embora suspeitasse que ele a admirava furtivamente, nunca lhe notara o menor sinal desrespeitoso. O rosto dele denotava uma genuína dedicação pessoal que ultrapassava o mero empenho profissional. Naquele momento, D. Matilde experimentou um sentimento de reconhecimento e um apelo de generosidade.
— Gostava de vê-los, Ramiro?
Este levantou-se surpreendido e visivelmente pouco à vontade:
— Ó minha senhora, de maneira nenhuma; quero dizer, não me atrevo a dizer que sim.
D. Matilde desapertou lentamente os botões da blusa de seda branca sem mangas que trazia e deixou-a solta. Pela abertura generosa, o volume bojudo e sedoso dos seios revelou-se saliente por sobre as copas alvas e delicadas do sutiã. Ramiro, apesar de ser homem de muitas mulheres, não pôde evitar uma aceleração cardíaca que a respiração denunciava. D. Matilde aproximou-se:
— Toque-os! Pode tocá-los.
Ramiro estendeu devagar a mão direita aberta, enchendo-a de seio e copa. Apertou delicadamente, enquanto semicerrava os olhos. D. Matilde rodou o corpo, oferecendo as costas e o fecho da peça íntima. Ramiro abraçou-a por detrás. Os seus braços cruzaram-se no peito de D. Matilde, penetrando por sob a base do sutiã e enchendo ambas as mãos com os frutos desejados. Manteve-se uns momentos a desfrutar a suavidade tensa das carnes, até que D. Matilde abriu o fecho do sutiã e o retirou. Ficou de frente para Ramiro, que parecia aparvalhado de desejo a mirar o par de seios, relativamente pequenos, suspensos do tronco estreito da sua senhora.
— Quer que tire mais alguma coisa, Ramiro? — incitou D. Matilde, inclinando a cabeça em trejeito insinuante.
— Deixe só a gargantilha, minha senhora! — pediu Ramiro, num sussurro rouco.
A azáfama que se seguiu podia presumir-se de sexo louco e desvairado, mas o corpo de Ramiro, que num primeiro momento parecia ir rebentar, mostrava-se preguiçoso e refratário.
— Desculpe, minha senhora, deve ter sido da cerveja do almoço.
— Deixa lá o “minha senhora”, Ramiro, pelo menos agora — sorria-se D. Matilde. — E olha que eu não sou de cristal; podes ser mais bruto, se quiseres.
E dava o exemplo com palmadas rijas no rabo de Ramiro. Este incremento de intimidade pareceu desinibi-lo. Seguiu o conselho e retaliou longamente, o que pareceu restaurar o seu desempenho e resultou em nádegas vermelhas em D. Matilde. Mais tarde, reconheceu para si próprio que grande parte do prazer adveio dos açoites dados. Além da alegria da sua parte solar por fornicar uma mulher ainda bonita, a sua parte escura, até aí inibida, rejubilara também por espancar a patroa. A gratificação era completa. D. Matilde parecia também muito distendida. Os gritos que dera tinham sido a consequência inevitável da mistura sofisticada de prazer e dor. Acendeu um cigarro longo e fino e contou:
— Uma vez fiquei assim com as nádegas por ter dito ao meu pai que era um assassino sem coração. Eu devia ter uns treze anos quando começaram os massacres de colonos em Angola. Nós tínhamos uma roça de café. Vieram os turras e mataram três empregados brancos nossos. Os meus pais tinham ido levar-me a Nova Lisboa, para a escola. Estava num colégio interno. Quando voltaram e o meu pai se deparou com aqueles corpos mutilados, juntou um grupo de homens, foram a uma aldeia que diziam que apoiava os turras, e enforcaram nove homens, pretos, claro. Foi muito falado o caso dos nove corpos pendurados dum embondeiro. Durante muito tempo tive medo que os amigos e familiares retaliassem, que entrassem pela roça adentro e nos matassem a todos. Talvez por isso, casei cedo.
— O meu marido — continuou — nunca me tocou com um dedo. Sempre nos demos bem. Talvez porque sempre fomos muito independentes. Sabes que até dormimos em quartos separados? — gracejou — mas é mais por causa dos ressonos. Quando ele andou metido naquela coisa dos negócios com a UITA — armas para lá, diamantes para cá — passava meses sem o ver. Depois, as idas à Lunda ficaram muito perigosas e ele optou por ficar cá definitivamente e investir em vinhos e bancos. Agora tramou-se com o BPN. Também não nos metemos muito na vida um do outro. Eu vou sabendo de um ou outro encantamento dele, mas vale a pena proibir as ondas de enrolar na areia? Isso também me deixa à vontade para algum devaneio que me apeteça. Não sei se ele já soube de algum, mas prefiro que não saiba. Apesar de sermos um casal mais ou menos aberto, não sei como iria reagir. A propósito, sabes o que me fez hoje o… — tu conheces — tinha combinado encontrar-me aqui com ele, mas sabes o que o sabujo me fez?: mandou uma mensagem — uma mensagem, vê bem! — a dizer que não conseguia trair o amigo e que, de qualquer modo, tinha uma reunião de trabalho. Detesto sedutores mal assumidos.
Para D. Matilde, este episódio que começara mal, acabara por ter um desfecho gratificante. Já vestidos, D. Matilde, num impulso de mulher abastada, e em gesto teatral, desapertou a gargantilha de pedras azuis e estendeu-a a Ramiro.
— Ramiro, quero que fique com esta gargantilha. Tome!
— Oh, Sra. D. Matilde, por amor de Deus; não posso aceitar.
— Aceite! Quando a olhar, lembre-se de mim só com ela em cima do corpo. Espero que seja uma recordação aprazível.
— Claro que é, minha senhora! Sem dúvida! Não a vou esquecer nunca mais. Mas, esta joia não foi uma prenda do Sr. Galhardo?
— Foi, mas era melhor que não ma tivesse dado. Acho que ele a comprou para a amante do Estoril e ma deu porque ela não gostou. Soou-me. Ele devia saber que a pedra do signo dela é a esmeralda! Bem, vamos embora. Não é preciso dizer que este é um segredo nosso; que não seria bom para mim se alguém o soubesse, muito menos para o Ramiro!
Joaquim Bispo
*
Imagem: Lucian Freud, E o noivo, 1993.
Coleção privada.
* * *
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021
O PEDIDO DE NATAL
O PEDIDO DE NATAL
Na
fila do correio, a menina aguardava. Na vez, deu a carta ao atendente. Era para
o Papai Noel.
−
O prazo já acabou. – diz o servidor.
Desapontada,
olhou para a mãe. Saíram caladas.
Na
escada, um senhor a abordou:
−
Sou mecânico, tô indo consertar o trenó do velhinho. Quer que eu leve a
carta?
...
No
Natal, a boneca chegou.
Regina Ruth Rincon Caires
Araçatuba – Brasil
domingo, 19 de dezembro de 2021
Quando não tem jeito
Uma
perua parou a duas quadras da minha casa. Lógico, tenho uma boa vista para o
lixão clandestino e percebi tudo. Não parecia, de cara, ser algo comum. Liguei
o alerta. Estou acostumada a pilhas e pilhas de detritos, destroços de
construções e bichos mortos; restos de matadouros. O carro entrou sorrateiro,
em zigue-zague, para se esconder por detrás dos monturos. Mas, ainda assim, captei
a bendita imagem. Estava adesivado com frases do tipo: “Frete já!”, e
telefones. Poderia ser o carro do Cildo, um senhorzinho caquético que derruba
blocos inúteis, refugo de obras, quase todo santo dia. Não era ele, eu vi. Não
podia ser, também, pelo porte. Ainda que estivesse mascarado, percebiam-se os
músculos salientes. Quando o cara retirou o embrulho de talvez um metro em meio,
pesado, num saco preto, notei que os urubus se agitaram; davam-se bicadas,
tentando afastar a premente concorrência. Qual o porquê disso? Certamente
liberava gases e salmoura. Eu não conseguiria discernir a diferença de fedores
– o lixão sempre é podre –, porém os bichos sim. Também cachorros e gatos
espreitavam ao longe, brotando em artimanhas para se chegarem. O homem se
aperreou e quis terminar logo o serviço; pegou o embrulho com as mãos (com
luvas) e saiu arrastando por uns dez metros. Mais estranho foi o fato de ele
afastar os lixos já existentes e, com cuidado, colocar montinhos em cima do
seu. Sim, repito, nunca vi nada igual a isso. A minha primeira intenção foi sair,
ir à casa do Lucas, meu vizinho, e chamá-lo para pegar umas cenas com o celular
dele. O meu está uma bosta, e já não servia para tirar fotos. Estive por dois
segundos na porta, quando me deu uma perturbação para não perder nenhum lance.
Eu podia descrever tintim por tintim para a polícia. Mas ela iria acreditar em
mim? Poderia ser eu enquadrado como um sujeito que inventou uma história ou
sendo o próprio praticante do crime? Meu Deus do céu, fiquei desesperada. Seria
a minha história contra a da polícia. Não quero conversa com a polícia, para
completar. Meu filho morreu numa troca de tiros, em 1998, e até agora nada.
Desisti do processo, porque não tenho tempo nem dinheiro. Sofri muito por todos
esses anos. De tanto eu pedir, Deus já deve ter feito justiça, trucidado o
canalha que matou meu filho. Bom, melhor não entrar nessa história; me faz mal,
muito mal, só de pensar. Jairo morreu de graça. Eu não poderia morrer por ser cúmplice
de uma tragédia dessa? Deixei para lá, não valia a pena continuar com isso.
Fechei a janela e entreguei nas mãos de Deus. Continuo na sina de ser
invisível.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2021
segunda-feira, 13 de dezembro de 2021
O Presente
Aquele fim de tarde, tingido em tons de um vermelho laranja, caminhava em direcção ao zénite. Quem ali tivesse à mão uma máquina fotográfica facilmente teria conseguido um feito raro: aprisionar aquele momento mágico que, com toda a certeza, seria digno de figurar nos anais da fotografia.
Porém, sem que nada o fizesse prever, o tempo sofreu uma repentina alteração. Uma nuvem negra, mais negra que a noite mais negra, pairou alguns metros acima do solo e ofuscou por completo aquele artístico momento. Contudo, pode-se considerar normal o dito fenómeno, tanto mais que todos os que por ali passaram naquela altura não acharam estranho o que aconteceu. Aliás, o comportamento desses passeantes perante a ocorrência de tão negro fenómeno manteve-se dentro da normalidade.
O sucedido deveu-se tão só a uma alteração de alguns factores climatéricos, a mudança do vento, um anticiclone, um centro de baixas pressões ou de altas pressões, sabe-se lá, a natureza é fértil em tantas coisas.
Contudo o que se passou a seguir bem poderia vir a dar um caso de estudo. Todas aquelas pessoas que antes se passeavam despreocupadamente, alheias às alterações climatéricas, foram assaltadas por alguns presságios perturbadores, face a este novo fenómeno. Foi vê-las a olharem para o ar com a angústia e a perplexidade estampadas nos rostos e de bocas abertas. De facto, aquela negra nuvem de repente tinha ganhado vida, tinha-se elevado até chegar à frente de uma janela dum dado apartamento e tinha desaparecido sem deixar ponta de rasto.
− Talvez tivesse entrado pela janela. − alvitraram uns.
− Mas como se ela estava fechada. – desenganaram logo outros.
Um mistério!
Afinal, essa negra nuvem desfez-se em noite e entrou pela janela aguardando às escuras na sala de estar. Um pouco mais tarde, o luar veio fazer-lhe companhia. O breu da escuridão deu então lugar a uma claridade prateada que deixou ver um embrulho no centro da mesa.
Então, no silêncio que se fazia ouvir, ecoou o som de uns saltos altos a percorrerem o corredor e a pararem em frente da porta. A seguir ouviu-se a chave a rodar da fechadura e de imediato a porta abriu-se.
À contra luz destacaram-se os contornos esbeltos do corpo de uma jovem mulher que, antes de entrar, se deteve expectante durante alguns momentos à entrada da sala, até se decidir dar alguns passos em frente e fechar a porta. Depois de entrar, tacteou na parede e pressionou o interruptor para acender a luz. Mas nenhuma lâmpada se acendeu. A sala continuava envolta entre as sombras da noite e a luz da lua.
«Que coisa estranha não haver luz. Logo hoje. Parece que as sombras do passado vieram para me tentar».
Pressionou outra vez, mas agora com mais força o interruptor, mas nada. A falha de luz não tinha nada a ver com força. Eram provavelmente outros os desígnios, outras vontades, insondáveis.
Desolada, deixou cair a mala no chão, despiu o casaco, lançou-o para as costas de uma cadeira e atirou-se indolentemente para cima do sofá.
À sua frente, o presente esperava que os laços que o prendiam fossem enfim desfeitos.
«Eu bem sabia que a falha de luz não era um mero acaso, há muito que eu esperava por este momento.»
Cansada fechou os olhos, libertou a memória e deixou correr à solta as terríveis imagens daquele fatídico dia. Pareciam tão reais como se o passado tivesse voltado e fosse agora o presente: o carro voa pelo asfalto e ela alheia à estrada, à velocidade, ao destino. Está concentrada apenas naqueles acordes musicais que a fascinam. De repente, aquela música que a embala dá lugar ao ensurdecedor barulho de chapa a retorcer e a esmagar-se. Soube mais tarde que ele tinha partido, enquanto ela tinha resistido ao violento embate provocado por aquele camião desgovernado saído do fundo da noite.
Como no passado, sente agora o mesmo impacto do choque que lhe volta a dilacerar o corpo e a alma, mas sabe que não são só as recordações. Sabe também que ele voltou no primeiro aniversário, para a levar. Ele era o seu presente. Agora tem a certeza de que não é capaz de resistir àquele encontro.
Decidida, levantou-se, ligou a aparelhagem de som, escolheu aquela música que não acabara de ouvir e encaminhou-se em direcção à mesa. Carinhosamente agarrou no embrulho, desatou os laços e abriu a caixa.
Uma luz intensa soltou-se e milhares de partículas cósmicas ficaram a pairar por toda a sala.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2021
Uma Ocasião Especial
Desde muito novo que se habituara a ouvir elogios
constantes. Descendia de uma das melhores famílias do País e nascera num bom
ano. Num excelente ano, até! A sua infância e juventude foram cuidadosamente
controladas e acompanhadas, não fosse sofrer alguma má influência que prejudicasse as suas boas qualidades e o seu
pleno desenvolvimento. Ao fim de alguns anos de conforto e carinho contínuos e
de uma educação esmerada, foi finalmente considerado apto a deixar a casa
paterna: tornara-se um bom vinho tinto, que não envergonhava em nada a marca
famosa que ostentava. Esperavam, até, que se tornasse um dos seus mais famosos
membros, trazendo-lhe um acréscimo bem merecido de honra e glória.
Das imensas caves da família transitou para uma outra,
bem mais pequena, é claro, mas igualmente confortável e completamente
apropriada à sua alta categoria. Como não podia deixar de ser, as condições
ambientais e os cuidados recebidos eram os mesmos a que fora habituado, pelo
que mal deu pela mudança.
Sob certos aspetos, estava até melhor aqui. Os seus
companheiros eram todos adultos, uns mais do que outros, é certo, mas todos
tinham ultrapassado a necessidade de tagarelice da infância, ou os caprichos,
amuos e inconsistências da juventude. Como vinham de locais e países bem
diversos, era interessante escutar a narração das suas experiências, por vezes
bem diferentes das suas. Havia, até, entre eles, veneráveis anciães, carregados
de experiência e de anos, cujas memórias remontavam a um passado extremamente
nebuloso e quase esquecido. Por isso não sentia grandes saudades da casa de
família ou dos seus companheiros de então. Limitava-se a recordar esse período
crucial da sua vida com uma certa afeição distante e uma melancolia quase
convencional.
E os anos seguintes foram passando suavemente entre
longos sonos repousantes e doutas
conversas com alguns colegas de eleição, todos eles membros de famílias
igualmente respeitadas e famosas. A cave continha, até, alguns dos seus
parentes, embora nem todos da mesma elevada categoria. Alguns eram mesmo o que
se poderia chamar de ‘parentes pobres’. Mas estes sabiam bem a fraca posição
que ocupavam e portavam-se com a humildade e o respeito apropriados.
De vez em quando abria-se a porta da cave e um dos
membros daquela tão insigne sociedade era retirado com a solenidade e o aparato
adequados a tão augusta ocasião. Era sempre um dia de excitação mal contida
para todos, em particular para os mais antigos. Quem seria o feliz escolhido?
Seria desta? Caber-lhes-ia, finalmente, a vez? Bem sabiam que os cuidados e
tratamentos recebidos desde a infância e juventude e os longos anos passados na
escuridão e sossego da cave apenas serviam para os preparar para a prova
suprema: o momento em que seriam julgados no Tribunal da Mesa.
Para isso viviam, era isso que aguardavam desde sempre. A
única razão para a sua existência era o instante final da Prova. Saberiam,
então, se havia justificação para a sua existência ou se todas as provações do
passado tinham sido em vão. O seu nome e o das suas famílias dependiam do
resultado desse exame. A responsabilidade era tremenda e a ideia de tudo jogar
num só momento, terrível, medonha, até, mas incrivelmente aliciante. Era a atração
do abismo, o pavor de falharem e de serem reduzidos a nada, que os fazia
discutir o assunto em murmúrios deliciosamente conspiratórios. Embora todos
aparentassem confiança no bom resultado da experiência, lá bem no íntimo
residia um núcleo de dúvida e ansiedade, cuidadosamente ignorado e negado para
bem da sua sanidade mental.
O nosso herói mal podia esperar pela sua vez. Continuava
a preparar-se intensa e conscienciosamente, executando diariamente os
exercícios que lhe tinham sido aconselhados pelos seus educadores e tendo o
máximo cuidado com as emoções, que só o podiam prejudicar. Nas suas conversas
mantinha um tom de voz cordato e comedido, fugindo de qualquer assunto que o
pudesse excitar ou enervar. Era sempre bem educado, respondendo polidamente aos
que com ele falavam, nem que o interlocutor fosse desagradável, ofensivo ou
decididamente detestável. Na sua posição não se podia dar ao luxo de ter ódios
ou discussões que lhe poderiam ser fatais! Tinha de manter a qualidade, de
fazer jus ao seu nome e às expectativas da família!
Chegou, finalmente, o tão ansiado dia. Retirado do seu
canto, foi limpo e cuidadosamente transportado para fora da cave. Não olhou
para trás e nem mesmo pensou em despedir-se dos outros. Embora com alguns deles
tivesse o que se poderia considerar uma franca amizade, faziam parte do passado,
e o que lhe interessava agora era a provação que se aproximava e o futuro
glorioso que o aguardava. Além disso, precisava de fazer os últimos
preparativos, de executar os exercícios prescritos, indispensáveis para a
ocasião. Era um momento solene, e como tal devia ser acompanhado do estado de
espírito apropriado.
A luz crua do dia feriu-lhe os olhos demasiado habituados
à escuridão confortável da cave, desorientando-o e incomodando-o por instantes.
Mas os exercícios de descontração aprendidos na juventude em breve deram o seu
fruto, permitindo-lhe um rápido retomar do seu já famoso domínio sobre si
mesmo. Sentia-se confiante e apto a enfrentar qualquer Tribunal, qualquer
Prova!
Mas a sua expectativa saiu gorada. Ainda não chegara o
momento, tão esperado e tão temido, de se apresentar ao Tribunal da Mesa. Não
era a sua vez de enfrentar a Grande Pergunta, de saber a resposta à Questão da
Vida. Não fora para isso que o tinham ido buscar, mas sim para o oferecerem.
Por instantes sentiu uma leve irritação, logo prontamente
reprimida. Preparar-se com todo o cuidado e afinal para nada! Mas um sentimento
de orgulho em breve se sobrepôs. Devia ser realmente muito especial para ser
escolhido entre tantos outros como dádiva! Que honra para a sua família, para o
seu nome! E que responsabilidade acrescida! Esperava não desmerecer de
semelhante prova de confiança.
As condições de transporte foram as adequadas, embora se
pudesse desejar melhor. Mas as viagens implicavam sempre um certo desconforto, facilmente
ultrapassado uma vez atingido o conforto do destino. Havia mesmo alguns
exercícios mentais que ajudavam a superar as possíveis más consequências da
mudança, evitando o aparecimento de perturbações que poderiam vir a ser fatais
a organismos tão delicados. Suportou, pois, com paciência, as atribulações
passageiras, sabendo que as esqueceria assim que se instalasse.
Ao chegar à sua nova casa, porém, sofreu um profundo
choque que quase o matou. Sem qualquer respeito pelo seu nome e categoria foi
enfiado de qualquer maneira num vulgaríssimo armário de madeira, já quase cheio
com outras garrafas de vários formatos e tamanhos. Ainda por cima colocaram-no
em pé, o que sempre lhe provocava um grande mal-estar. Ao fecharem a porta do
armário ouviu alguém dizer:
— Este é bom de mais para todos os dias. Ficará para uma
ocasião especial.
Ainda sentiu um bocadinho de orgulho ao ver-se assim
classificado e colocado à parte, mas a sua situação atual era demasiado má para
que esse sentimento durasse muito. Deixou-se, pois, cair numa melancolia
profunda, ficando durante muito tempo totalmente alheado do que o rodeava.
Passadas algumas horas, porém, a sua disciplina interior foi mais forte do que
as péssimas condições ambientais e o nosso herói conseguiu dominar a má
disposição física provocada pelo choque moral sofrido e pela posição totalmente
imprópria em que o tinham colocado. Olhou, então, pela primeira vez em torno de
si, para estudar melhor o local onde teria de passar algum tempo, possivelmente
o resto da sua vida.
O armário era bastante pequeno e estava sufocantemente
quente e abafado. Nada que se comparasse à frescura repousantemente constante
das caves que conhecera anteriormente. A porta tinha pequenas fendas
irregulares e vedava muito mal, deixando passar grandes laivos de luz. Estes
eram frequentemente interrompidos por rápidas sombras, e com a continuação este
cintilar aleatório tornava-se bastante incómodo. O teto era baixo, pouco
distando do topo da sua cabeça, o que, aliado à grande quantidade de garrafas
ali existentes, lhe dava uma certa sensação de claustrofobia. Que péssimas
condições de habitação, muito em particular para seres habituados a um certo
conforto e bem-estar!
Como a iluminação ambiente era suficientemente boa para
isso — demasiadamente boa, até — pensou em identificar os seus companheiros de
desgraça. Seria agradável ter uma boa conversa, trocar dados e experiências
pessoais, ficar a conhecer melhor o local, as condições gerais e o que poderia
esperar do futuro. Poderiam, mesmo, lamentar-se juntos, recordando com
nostalgia os bons velhos tempos passados em locais bem mais apropriados.
Foi quando teve um segundo choque, talvez ainda maior que
o primeiro: não havia um único nome decente entre eles, nem mesmo o de um
daqueles parentes pobres e vagamente desclassificados que todas as grandes
famílias possuem, embora raras vezes o reconheçam. Tudo plebeus e, a avaliar
pelas poucas frases que escutou, plebeus da pior qualidade. Autênticos
vagabundos! Verdadeiro lixo! Nunca se vira ou sequer imaginara em tal companhia!
Era totalmente inadmissível que o colocassem ali, entre semelhante gente!
Foi de mais. Os incómodos da viagem, a má posição em que
ficara e os dois tremendos choques morais que sofrera provocaram-lhe um estado
de inconsciência total, quase de coma, que durou vários dias, talvez até vários
meses.
Ao fim desse tempo, que lhe pareceu imenso, mas talvez o
não fosse, a consciência voltou-lhe pouco a pouco, ténue, a princípio, depois
clara e bem precisa. Antes o não fosse. Nas condições em que se encontrava, uma
certa diminuição das suas faculdades seria desejável, indispensável até para a
preservação da sua sanidade mental. Mas o treino que lhe fora dado na juventude
tinha sido demasiado bom, o seu autodomínio excessivamente aperfeiçoado por
anos seguidos de trabalho persistente e consciencioso. Quer o quisesse, quer
não, o seu espírito estava bem desperto e tão acutilante como sempre o fora.
A maior parte dos seus companheiros fora substituída
durante esse intervalo, embora mal se desse por isso. Os novos eram da mesma
qualidade, ou completa falta dela, dos antigos. O armário, esse, continuava tão
desconfortável como dantes, talvez um pouco pior com a habituação. Tudo estava
na mesma. A sua situação era verdadeiramente horrível, catastrófica, trágica mesmo.
Infelizmente, nada podia fazer a esse respeito, exceto desejar que a tal
‘ocasião especial’ chegasse o mais depressa possível, salvando-o daquela vida
infernal. Era uma razão suplementar, talvez a mais importante, para ansiar pelo
momento supremo da sua vida.
Com a passagem do tempo, e para aliviar a monotonia dos
dias sempre iguais e desagradáveis, decidiu tentar tirar o melhor partido
possível da situação horrível em que se encontrava. Mas poucos resultados
conseguiu obter. Os seus diversos companheiros eram realmente seres
tremendamente incultos, que tagarelavam e se querelavam sem parar sobre as
maiores insignificâncias. Não havia um pensamento mais original, uma ideia mais
profunda, uma opinião mais abalizada! E que balbúrdia permanente, que vozearia
constante!
Que saudades sentia das longas, estudadas conversas a que
se habituara na sua anterior residência. Das calmas discussões filosóficas, da
troca de experiências ou de histórias. Lembrou-se, até, com pena, do balbuciar
dos novos e das contínuas quezílias dos jovens instáveis, que tanto o tinham
irritado na casa paterna. Tudo era preferível à inanidade intelectual dos seus atuais
parceiros.
Aos poucos foi-se fechando em si mesmo, recusando
qualquer contacto com os outros. Quando algum novato tentava inclui-lo na
conversação geral, fazia-lhe imediatamente notar que considerava isso como uma
grande falta de respeito. Era um ser de qualidade para uma ocasião especial, e
não um desclassificado como eles. Ao fim de algum tempo deixaram-no em paz,
passando palavra aos recém-chegados. Não o compreendiam, mas acatavam as suas
manias e necessidade de isolamento. Até certo ponto, era mesmo respeitado,
sendo olhado como um ser estranho e exótico que ali aparecera sem se saber
como. Mas esse respeito não o consolava da tragédia atual, pois era dado por
quem tudo ignorava sobre o seu nome e categoria.
Tentava não escutar o que se passava à sua volta,
dedicando o seu tempo a especular sobre questões que sempre o tinham
interessado: o sentido da vida e a resposta à Grande Pergunta. Apesar do perigo
que isso representava para a sua sanidade mental, chegou mesmo a entrar no
campo proibido das especulações sobre o Depois, o que estava Para Além da
Prova. Em suma, a questão da sobrevivência de algo pessoal, de uma essência indetetável
que estaria acima de meras classificações de qualidade ou categoria. Mas por
pouco tempo o fez, pois o seu sentido de autopreservação era demasiado forte
para continuar num caminho que só lhe prejudicaria a saúde. Pelo menos, assim
fora ensinado.
A porta do armário era aberta com muita frequência para
retirar um dos outros, o que contribuía para agravar as más condições do
ambiente. Os seus companheiros iam sendo substituídos com grande regularidade,
mas sempre por outros com a mesma fraca qualidade física e intelectual.
Inicialmente aguardara essas substituições com uma certa dose de expectativa.
Podia ser que um dia aparecesse alguém com quem pudesse conversar, mesmo que
não fosse um gigante intelectual. Bastar-lhe-ia um único companheiro que
tivesse uma pequena inteligência e alguns, mesmo poucos, conhecimentos. Sempre
seria melhor que o habitual. Mas as desilusões foram tantas, que ao fim de
algum tempo já nem reparava nos recém-chegados, embora estes lhe fossem
imediatamente apresentados com uma certa cerimónia.
Aos poucos entrou numa certa modorra melancólica,
bastante agravada pelas péssimas condições em que vivia. A temperatura variava
continuamente durante o dia e ao longo do ano, sendo umas vezes mais baixa e
outras mais alta, mas nunca a ideal. Sentia uma dor contínua no estômago,
devido à sua incómoda posição e tonturas provocadas pelo cintilar da luz
através das fendas. E isto para já não falar na claustrofobia provocada pelo
excesso de moradores, que por momentos se tornava de tal modo intolerável que
só lhe apetecia acabar com aquela existência ignóbil, mesmo que isto
significasse a vergonha de faltar ao exame final.
Por vezes era deslocado sem quaisquer cuidados, para
facilitar a arrumação de outros, ou, o que era ainda pior, para limpeza do
armário. Nessas ocasiões tinha de aguentar a luz forte do exterior e grandes
abanões e solavancos. De uma das vezes foi mesmo agitado com tal violência, que
perdeu os sentidos durante várias horas. Acordou muito enjoado e só se sentiu
normal, ou quase normal, passados muitos dias.
O desespero atacou-o com força. Deixou as especulações
filosóficas e passava os dias a remoer o seu passado e as suas mágoas. Para ali
estava ele, sozinho a um canto, em condições que não desejaria a uma mera
garrafa de vinagre sintético. Sonhava com os confortos das suas anteriores
caves e com os seus antigos companheiros, a maior parte dos quais estaria já,
talvez, no Grande Além. Clamava contra a pouca sorte que o trouxera até ali e
lamentava os muitos anos de trabalho e de preparação, que se estavam a perder
nas condições atuais. Assustava-se com os danos que a péssima situação em que
se encontrava poderia estar a provocar no seu delicado organismo. Acima de tudo
sentia uma imensa pena de si próprio e do ruir de tudo o que lhe fora
prometido: uma vida confortável e agradável, durante a qual se poderia preparar
adequadamente para o seu destino final.
Tentava, ainda, desesperadamente manter uma certa
equanimidade de espírito, mas era difícil, muito difícil. Tudo lhe parecia em
vão. Só com grande dificuldade se decidia a executar o mínimo de exercícios de
manutenção, e nem sempre com a atenção e o cuidado devidos. A noção de que
desleixava as suas obrigações essenciais ainda agravava mais o seu já pobre
estado de espírito. Enfim, sentia-se completamente infeliz e desesperava da
vida.
Ansiava cada vez mais pelo momento de enfrentar a Prova
Suprema. Era uma maneira de acabar com a degradação corrente e não só. Estava
convencido de que nessa altura seria, então, devidamente apreciado e elogiado e
a sua qualidade amplamente reconhecida. Ao imaginar os comentários e elogios
que ouviria, sentia uma alegria fugaz que por vezes até lhe permitia esquecer
um pouco a realidade. Mas não por muito tempo.
Chegou finalmente a tal ocasião especial. Quando o
retiraram do armário, ainda pensou que fosse para a limpeza do costume. Pelo
menos os abanões e a falta de cuidado foram os habituais. Mas todos os outros
permaneceram dentro do armário, o que deveria queria dizer que estava por fim a
caminho do Tribunal da Mesa. A emoção que sentiu nesse momento foi de tal modo
grande, que, embora desde há muito os ignorasse, não resistiu em dizer aos
companheiros de armário, à laia de despedida:
- Agora, sim, vão ver o que é a verdadeira qualidade. Depois
de me provarem, ninguém mais vos tocará.
Levaram-no para um local demasiado iluminado e sentiu que
lhe retiravam a rolha, embora com muitas hesitações e recomeços. Apesar das
inúmeras provações porque passara até então e do sentimento de profundo desespero
que há muito o invadira, o profissionalismo que lhe fora inculcado na infância
veio ao de cima. Apressou-se, pois, a dar início à meditação prescrita para a
ocasião. Não foi fácil concentrar-se, no meio de tanto solavanco e abanão. Mas
conseguiu-o, o que muito o orgulhou.
Já na mesa executou os vários exercícios de respiração e descontração
aprendidos num passado que sentia cada vez mais remoto, destinados a trazerem
ao de cima o melhor das suas numerosas e variadas qualidades. Era um momento de
grande solenidade e havia muitos rituais a cumprir. Teve, no entanto, de
apressar-se, pois não lhe deram tempo suficiente para o poder fazer com a calma
e o método desejáveis.
Ouviu uma grande algazarra, que lhe cortou ainda mais a
frágil concentração, seguida de aplausos gerais. A garrafa foi erguida com
brusquidão e, sem mais delongas, o vinho especial foi atabalhoadamente distribuído
pelos inúmeros copos que avidamente se estendiam.
Infelizmente, o Grande Momento acabou aí. As más
condições em que vivera desde a mudança, os profundos choques mentais que
sofrera, o grande isolamento dos últimos tempos e a depressão em que soçobrara
tinham-no azedado, tornando-o intragável.
Foi despejado sem cerimónias pelo cano abaixo.
Luísa Lopes
Foto de Markus Spiske no Pexels
sexta-feira, 3 de dezembro de 2021
TEXTO AO FILHO HIPOTÉTICO
Um filho hipotético nasceu de mim como um resíduo. Um
destes fragmentos que incorporo à minha verdade diária de construir uma vida
autêntica diretamente proporcional ao espaço concedido/conquistado. Um resíduo,
não muito, daquilo que em mim é o mais permanente. Uma parte que ainda se
resguarda e que a sociedade não corrompeu, por ser imune a tudo.
Não lhe dou um nome pois ele não
carece de um signo que o faça distinguível entre os seus. Todo o espaço que ele
ocupa está cá dentro e não existe senão aqui, onde o sinto e ouço. Uma
substância não de todo discernível, alguma coisa como que matéria neutra dotada
de impulso vital que lhe forneço em nível de emoções diversas.
E diante da possibilidade de este
filho nunca se constituir como um ser real, de existência visível e concreta
como esses seres de braços pernas cabelos e dentes, a quem chamamos homens e
que circulam pelas ruas identificáveis por um nome, é que lhe conto. Para que
ele saia de mim e se concretize em palavras.
Ou então seria preciso que alguém me
ajudasse a completar o esboço que na solidão chamei de filho. Mas é tarde e
decerto ninguém viria até mim sabendo que o meu filho já nasceu do nada e
existe sem existir e que, além disso, eu não quero tirar sua existência de anjo
para trazê-lo ao palco de nossa cotidiana tragédia.
Chamo-o de filho sem saber de seu
sexo. Aliás eu o sinto e criei assexuado e hermafrodita ao mesmo tempo e com
ele converso em sonhos. Diálogos de sonhos que não transcrevo pois os sonhos
não se transcrevem e sinto que se fossem transcritos perderiam a sua substância
de sonho, além de não terem importância para os outros por serem específicos.
Certo dia, conversando com meu
protótipo de filho, ele (contrariando minhas determinações de criador e se libertando
da esfera mínima em que o permito autônomo) perguntou-me o que eu achava de mim
e dos motivos pelos quais o criei. Se minha vida não bastava a mim mesmo a
ponto de o chamar a coexistir comigo num espaço unicamente meu. Se a vida
humana era mesmo esse desconhecimento primário da vida, com tudo o que ela tem
de implicações intrínsecas.
Atingido assim em um ponto tão
vulnerável e crucial, respondi, contrafeito, que não sabia de nada e que também
não queria pensar demasiadamente sobre isso. Mesmo porque eu não tinha meios
para tal avaliação. Apenas me foi dado viver e conseqüentemente eu habitava
esse verbo sem nenhuma estrutura lógica ou transcendente.
Depois disso, eu e meu estereotipado
filho entramos assim numa espécie de comunhão silenciosa, onde as perguntas não
eram feitas e nem respondidas. Mas nem por isso deixavam de ser formuladas no
íntimo secreto de mim para mim, através dele. E daquela sintonia inicial de
quando o criei, fez-se o estranhamento inevitável entre o criador e o objeto
criado. Daí para o divórcio total não demorou muito.
Nosso afastamento não foi uma
ruptura inesperada e muito menos unilateral. Veio de uma sequência de
desencontros em que sabíamos levar ao aniquilamento total em termos de
comunicação. Foi assim e sempre será assim entre os homens e talvez justamente
por causa disso que eu o tenha criado, na ilusão de que ele, não sendo um ser
real, pudesse manter um diálogo fraterno para comigo que me achava só e único
em minhas ideias que eram, no isolamento, concebidas exclusivamente para mim
mesmo.
Aconteceu, porém, fato inesperado,
que meu filho foi-se libertando de mim e de meus conceitos, criando para si
próprio uma nova escala de valores que naturalmente divergia da minha sob
alguns aspectos. E eu não contava com isso. Na verdade, somos todos
despreparados para uma possível vida, tal como imaginamos e que não nos basta
quando se concretiza.
Assim, a cada dia, fomos percebendo
que nossa convivência estava se tornando impossível. Estabeleceu-se um abismo e
nele nos perdemos em nossa ânsia de tanto querer e que só nos afastava ainda
mais do outro enquanto objeto de desejo. Eu e meu filho hipotético, no qual eu
vislumbrava um desdobramento de mim e que, uma vez concretizado, era estranho a
mim. Não nos entendíamos mais.
Então eu o expulsei de mim
trazendo-o a mim, de onde ele afinal tinha vindo. E ele em mim e eu nele
absorvemo-nos num único ser que era o resultado de duas partes que naquele
momento voltava à unidade aparente de um todo que já não mais se questionava.
Não havia mais desavenças e passamos a nos entender muito bem no ser insípido
que surgiu de nós dessa fusão e que, sem constrangimentos, contemplava a fumaça
do cigarro em espirais de sono.
domingo, 28 de novembro de 2021
O Sonho
Dormia calmamente quando senti o toque fresco da tua mão no meu rosto em total contraste com o calor que fazia no quarto.
Manuel Amaro Mendonça
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