Antes
de falar da viagem, quero falar da terra. E para falar da minha terra, transcrevo
antes a pequena jóia de concisão e beleza que o Rosa esculpiu para o seu burgo
do coração. Disse o Rosa: “Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas,
no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito”. Eu digo da
minha Buriti Alegre: “Buriti é pequenino lugarejo encantado, beira planalto,
nos confins de Goiás. Só quase vereda, mas tão de repente mítico!”. Gosto muito
do nome Buriti e mais ainda do adjetivo que lhe acrescentaram, ainda que atribuir
alegria a uma palmeira pareça sem sentido. Para mim, o Alegre de Buriti faz todo
sentido. O Buriti, nas palavras do Rosa, é senhor dos horizontes. Ali ele se
alteia, altivo. Gosto dessa altivez que não é soberba, mas destinação. E a mesma
alegria sem muito sentido que Buriti carrega no nome, eu carrego em mim – com todo
sentido.
Já
são mais de trinta anos longe daquele lugarejo encantado e a cada volta sinto
que estou todo lá – a geografia da memória pouco se altera com o tempo. E a
cidade mesma pouco mudou. O que mudou foi a paisagem humana. A cada volta sou
guiado pela geografia do afeto. Desde que bati asas do meu chão, os pousos lá
são raros e rápidos. O pretexto é quase sempre um casamento, um aniversário ou
a despedida de um parente que voou para outra geografia.
A
viagem da vez não foi por nenhum desses motivos. Minha mãe entrou com um
processo de aposentadoria e lá fomos eu e ela para uma entrevista com o
advogado que cuida do caso. Viagem mais rápida do que todas: chegamos à
noitinha de um dia, voltamos à noitinha do outro dia. Viagem de um dia para
outro, a rigor, mereceria o nome de pernoite. Mas, para mim, foi mesmo uma
viagem. E não sendo viagem de passeio, e sendo viagem em dia útil, revivi o
cotidiano típico de uma cidade do interior. Gosto demais de ser do interior. E
pensando agora em termos metafísicos, o mais importante de nossas vidas se
passa no interior – essa geografia de dentro tão misteriosa e fascinante.
O
compasso de uma cidade do interior é o da lentidão. E lá ficamos eu, minha mãe,
a tia que nos hospedou, entregues às horas escorrendo lentas. Todas as horas
sorvidas na sua inteireza. Na varanda da casa da tia, e enquanto corria a tarde,
conversávamos, ríamos, trazíamos à tona o que escavávamos no chão da memória,
todo ele bem sortido de idos e vividos. Enquanto conversávamos e ríamos, observávamos
quem passasse pela rua e a tia, sentadinha no seu mirante doméstico, dava
notícias de todos. Foi nesse compasso que tivemos notícias de um primo. É primo
de segundo grau e de pouco contato. Mesmo com o pai, que é primo em primeiro
grau, o convívio já foi pouco. O filho desse primo, quase trinta anos, se
extraviou de si, leva uma vida errante, sofreu algumas prisões e tem um jeito
de maior abandonado que corta o coração. Quando o vimos, ele vinha de um dia de
trabalho – trabalho incerto, sazonal – e trazia o corpo todo sujo. Ele vive sem
rumo, sem pouso certo. É filho do primeiro do casamento do pai – pai que já
está no terceiro casamento. Doeu ver esse primo tão entregue à sua falta de
rumo.
Enquanto
conversávamos, um carro de som anunciava o falecimento de alguém. Numa
regressão proustiana, para dizer como o Nelson Rodrigues, reconheço a
mesmíssima música fúnebre, o mesmíssimo texto. O carro circula pela cidade
inteira. Na minha cidade, todos os velórios são públicos. Em criança, eu me
impressionava com esta frase: “O féretro sairá da rua tal, a tal hora”.O que me
impressionava, em verdade, era a pompa da palavra “féretro” que, pomposa
embora, me entregava seu significado com a clareza que um dicionário talvez não
o conseguisse.
A
tarde no fim, a conversa baldia indo daqui pr’ali, minha mãe nota um adejo de
tristeza no rosto da tia. Indagada, a tia pensa um pouco e responde de um modo
profundo, compungido: “Não é tristeza. É medo”. Como eu entendi a extensão
daquela frase tão curta! A tia, viúva há seis anos, é alegre, conversadeira e
está muito bem para os seus oitenta e dois anos. Mas ela sabe, ela sente que,
por melhor que esteja, uma indesejada visita não tardará a chegar. Daí a frase
que calou fundo em mim.
Escurece. E a noite sempre
traz consigo alguma tristeza, algum medo. Na noite escura, eu e minha mãe fazemos
o caminho de volta em direção a mais um dia.
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