Passava de meia noite quando Arzt e Frau Löhnhoff, bêbados de errar o buraco da fechadura, abriram, enfim, o portão da casa. Arzt Hans caminhava na frente. Frau Bertha logo atrás. O silêncio soava como a restauração desacelerada de um êxtase recém gozado. Estavam inebriados com as palavras do Fühher que acabaram de ouvir pelos alto falantes numa cervejaria apinhada na Bavária.
Era Primeiro de Setembro de 1939 e a blitzkrieg contra a Polônia na madrugada anterior fazia da noite o esplendor da Cavalgada das Valquírias.
O casal subiu as escadas do casarão trocando as pernas, arrotando cerveja aos soluços e cantarolando Wagner. Como por instinto simbiótico, os dois foram direto aos aposentos de Eithel, quando abriram a porta para admirar a filha, que no embalo de um sono profundo, emanava a beleza de sua pele alva e o dourado claro dos cabelos embaraçados sobre o rosto, guardiões junto com as pálpebras cerradas das joias que eram seus olhos azuis. Deitada de lado, joelhos dobrados, tinha sob sua proteção o filho de 7 anos dormindo na mesma cama aconchegante.
- Que Deus abençoe nosso soldado, disse Bertha.
- E que o Fühher o receba com toda sua perfeição, bradou Hans.
Eithel era a filha única do casal de arianos, como rezavam as cartilhas sobre raça pura de uma nação humilhada por um tratado de pós guerra que só produziu raiva e escombros. A missão da família Löhnhoff estava encaminhada: perpetuar e disseminar o alemão imaculado por todos os cantos da Terra.
Mas Eithel não era filha legítima. Fora sequestrada ainda bem criança por um grupo embrionário dos nacionais socialistas na fronteira coma Bielorrússia e oferecida a preço de ouro ao casal, já que, apesar de arianos de pedigree, era a mulher infértil, portanto, incapaz de contribuir com a expansão germânica pura pelo mundo. Uma desonra. Mas nada que o dinheiro do bom médico não pudesse comprar. “À Alemanha que emerge das ruinas morais, tudo, tudo e muito mais”, dizia ele com o braço direito apontado para os céus.
Arkt Hans Löhnhoff era um clínico geral obcecado por genética e pela Alemanha que renascia. Bertha comungava dos sentimentos pátrios do marido, e aceitar uma infeliz para criar como filha legítima seria a prova mais clara de sua devoção. Ao marido, à família germânica e ao Fühher.
Assim que Eithel foi adotada, o casal se mudou de um vilarejo próximo de Munique para Dresden, onde um centro de experiências cientificas com humanos havia atraído Hans. Ali, ele poderia com os incentivos infindáveis do Partido, desenvolver seus experimentos, especialmente esmiuçar as diferenças biológicas entre um cigano, um judeu, um homossexual e um ariano da melhor estirpe. E mais: dissecar o cérebro de um bolchevique para desvendar que mistérios levam um animal dito humano portar tão exótico pensamento.
Não muito distante de Dresden nasciam os primeiros campos de trabalho, onde a dita população inferior ficaria confinada como cobaias até que desaparecesse em sua totalidade, sem antes ceder ouro de seus dentes para os cofres nazistas e suas peles para a fabricação dos tambores que começavam a rufar em direção ao leste europeu.
Ao completar 14 anos, para orgulho dos pais, Eithel já pertencia à Liga das Meninas Germânicas, onde aprendia desde a manipular armas a amar incondicionalmente seu país, sua História, suas raízes, seus líderes, seu Fühher. Para ela, conquistar o mundo seria uma questão de tempo e algum sangue derramado. Dos outros, de preferência. Dos impuros, débeis, frágeis, inúteis, aleijados, indignos. Repetia cantilenas de que a colonização alemã do planeta não seria apenas apropriação de terras, mas a eliminação total de seus contrários. Não haveria colonizados para contar história, mas alemães legítimos onde quer que o planeta fosse habitável.
No entanto, tal retórica seria insuficiente. Além de pegar em armas, e propagar palavras ao vento, Eithel fora destinada – e estimulada pelos pais – a um gesto maior. Cabia a ela perpetuar sua raça a qualquer custo, embora o preço em mira era um bonitão de louros cabelos emplastrados, exemplar perfeito do vigor, do porte atlético e dos ideais da Alemanha eterna.
O primeiro encontro se deu por acaso. Ao esbelto Kapitän SS Kuntz fora designada a missão de treinar moçoilas da Liga a frequentar um possível front pelas bandas do leste, já que era iminente a resistência de Stalin ao assédio generoso de Hitler, com suas Wermatch e Luftwaffe na manga.
Eithel sentiu um frisson ao ser abraçada por trás a pretexto de bem segurar um fuzil. Bastou o rosto de Kuntz deslizar como uma pluma em seu pescoço, e seu volumoso e rijo entrepernas roçar
seus glúteos, para que a menina virasse em direção aos lábios que circundavam um sorriso másculo e sedutor. Ainda bem que a luz crepuscular escondeu das outras alunas e seus oficiais professores um beijo tão explosivo quanto um morteiro direcionado às fileiras inimigas.
Semanas se passaram, Eithel levou Kuntz a conhecer os pais, quando repetidas e enfáticas saudações ao Fühher retardaram as informalidades de um encontro para lá de desejado. Kuntz estava tenso, com uma taça de Riesling numa mão e os dedos nervosos e suados de Eithel na outra. Não tinha muita certeza do momento propício para revelar que era casado e deixara um casal de filhos nos arredores de Dusseldorf com a esposa, em nome de algo muito mais nobre chamado Grande Alemanha.
Ao segundo e longo gole, não resistiu. Confessou sua condição de pai de família.
Mas um oficial da SS que nascia era forjado à frieza. Olhando firme nos olhos de Arzt Hans recebeu de volta a aprovação orgulhosa de que entregar uma filha a tão seleto militar, acima de tudo, fazia parte da missão de limpar o mundo. E de imediato fora convidado a se estabelecer naquela residência, dividindo o quarto com sua pupila, enquanto sua companhia SS cuidava dos treinamentos militares da juventude da cidade.
Não houve hesitação de nenhuma das partes. Dormir com Eithel não era coisa que um macho ariano recusasse - a esposa oficial nas lonjuras da Renânia haveria de compreender, já que louros portentosos eram escassos no mundo e seria necessário, justo e legítimo dividi-lo com outras germânicas em nome de um mundo clareado. Pelo lado de Hans, entregar a filha ao corpo atlético de um ariano era a certeza da continuidade da missão e da raça. E assim, para consciência
tranquila de todos, Eithel se deu a Kuntz sob o teto e a orgulhosa concordância dos pais.
Tempos depois, a companhia SS de Kuntz partiu rumo a outras missões, mas deixou no lar dos Löhnhoff a semente de uma raça próspera, pura e onipotente. Aos primeiros enjoos, Eithel orgulhou-se que carregaria para sempre a nobreza de ser mãe de um ser humano de superior qualidade. Quem sabe um bravo soldado, quem sabe um músico excepcional, um escritor extraordinário, talvez uma professora rigorosa, uma enfermeira dedicada ou mesmo uma exemplar dona de casa de um
lar ariano. Não importa. Ter um Kuntz na barriga por si só era uma missão nobre a ser cumprida.
Hoje Frau Eithel Löhnhoff vagueia pelos jardins mal cuidados de um pobre asilo de idosos num subúrbio de Berlim, outrora oriental. Os reveses da vida cuidaram de apagar de sua memória os fatos mais recentes, mas jamais os detalhes de uma manhã esfumaçada de fevereiro de 1945.
A enfermeira Eithel abrigou-se num túnel improvisado sob o Hospital Militar de Dresden, às primeiras sirenes e aos roncos longínquos dos bombardeiros aliados, seguidos de explosões que se aproximavam como passos de um gigante determinado e aterrorizante. Com as mãos grudadas nos ouvidos e a cabeça entre os joelhos trêmulos, pressentiu o hospital desaparecer sobre o abrigo. Baixada a poeira, controlado o pavor, cessados os infinitos estrondos, rastejou entre um amontoado de desfalecidos pelo precário túnel até o que seria luz do dia disfarçado em noite de tanta fumaça. O que deixou de ver deve ter sido devastador. Os gritos, gemidos e pedidos de socorro escondidos pintavam um quadro de horror. Retardatários clarões sinalizavam avisos da morte e da destruição.
Eithel bateu com as mãos no corpo inteiro, como se para se certificar que estava viva ou, pelo menos, para limpar histericamente a alvura de seu uniforme. Enquanto se batia, chorava por dentro.
Um filme de terror se passou pelas suas entranhas. O primeiro personagem foi Kuntz, o esbelto capitão SS que lhe produziu Mark no ventre e desapareceu duas vezes: uma de sua vida, sem ao menos ver seu filho nascido, e outra da própria vida, congelado nos arredores de Stalingrado, com um rasgo extenso e profundo na altura da jugular. O segundo personagem fora seu pai, o obcecado cientista nacionalista, estraçalhado por lobos famintos, logo que um dos campos de experiências humanas caíra nas impiedades do Exército Vermelho. Restava-lhe imaginar a mãe Bertha e o filho Mark, recruta de 14 anos da debilitada Wermatch, que naquela manhã supostamente
estaria de folga ajudando a avó nos afazeres domésticos.
Quando a poeira se dissipou e os roncos sumiram nos céus, Eithel abriu os olhos ardentes e percebeu ao redor a bomba que lhe caíra silenciosamente na cabeça: sim, a Alemanha mais uma vez havia perdido uma guerra.
Focos de incêndio, ruínas, mortos até nos postes caídos e incandescentes, escombros, pedaços de gente, vidas retorcidas. A paisagem de Dresden era desoladora. E no meio da morbidez, Eithel ganhou forças para correr pelas ruas esburacadas, saltitar entre cadáveres chamuscados, carbonizados ou mutilados de todas as idades, até encontrar o que seria a casa que lhe acolheu, criou seu filho, seu orgulho.
Já caía a noite, quando avistou o que sobrou do casarão do casal Löhnhoff. A penumbra sugeriu um inferno. Apenas o portão tinha ficado de pé. Na calçada despedaçada, viu Bertha estirada no chão, velada por Mark, que chorava de joelhos dentro da empoeirada farda da Wermatch. Mantinha as botas, o culote e a túnica no lugar. O capacete tinha rolado a metros de distância.
Eithel de repente se viu paralisada. Assim como de repente, desembestou a correr em direção ao filho. Pegou o menino pelo braço, gritou um “não olhe para trás!” de ensurdecer os caídos e saiu de mãos dadas com ele sobre o que restou de Dresden.
Encontrou o que procurava. A horas de casa, na periferia distante, um pequeno pelotão do exército alemão estropiado guardava uma das entradas da cidade. Poucos valentes soldados, todos meninos como seu filho, rodeando um ninho de metralhadora, protegidos por heroicos sacos de areia, em direção à entrada da cidade voltada para o leste.
- Quem está no comando? - gritou Eithel.
Surgiu um jovem oficial. Nada de bonito, portentoso, garboso e impávido como Kuntz, mas um infeliz esquálido e de olhar desesperado.
- Eu, sargento Woltz, Frau. A maior patente desta patrulha.
- Pois então, Sargento, trago um bravo soldado.
Woltz olhou o rosto imberbe e apavorado de Mark.
- Vai, meu filho, nossa Alemanha precisa de você.
E Eithel soltou a mão de Mark, que logo recebeu uma Lugger recém tirada da cintura de um cabo morto, tão menino quanto ele. A mãe foi se afastando devagar, andando de costas, até que o breu da noite tomasse conta do cenário, como se uma cortina se fechasse.
Nunca mais soube do filho.
Até hoje espera por sua visita no pobre asilo de idosos num subúrbio de Berlim, outrora oriental. Não há um cair da tarde em que Eithel não se coloque em posição de sentido em direção ao leste. A cada sombra que vislumbra, ela diz para si mesma:
- Deve ser ele. Deve estar muito cansado. Vai precisar de mim para tirar suas botas.
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
O BRAVO SOLDADO MARK
por José Guilherme Vereza
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