Quando nasceu, um anjo baldio desses que fingem brincar de Deus disse: vai, menino, ser feliz na vida! E ele foi! Desde então vem ele bordando no tecido do tempo sua arte e vida severina. É possível que ele siga as linhas invisíveis do risco de um bordado previamente traçado. Ele pouco sabe. Desconfia apenas de sua sina de tecelão e, graças a ela, entrega-se ao ofício de tramar os fios da vida. Enquanto isso, o tempo, um senhor tão bonito, brinca ao redor do caminho daquele menino.
Lá está ele, menino-criança, entregue às experiências inaugurais, aquelas que pavimentam o chão da memória com pedrinhas de brilhante. É o tempo dos primeiros encantamentos, das primeiras descobertas, dos primeiros sustos, das primeiras letras, da alegria da vida solta, da revoada de primos da mesma idade, das frutas colhidas no pé, do pé no chão. É o tempo da vida miúda na miúda Buriti Alegre, pequenino lugarejo encantado, beira-planalto, nos confins de Goiás. Só quase vereda, mas tão de repente mítico! É o tempo do abandono do pai. Havia no pai um desejo de rio – e o pai se deixou navegar errante pelas correntezas até aportar numa terceira margem.
Mais adiante e ei-lo menino-rapaz, entregue aos sonhos possíveis, aqueles que migraram do casulo da imaginação para o palco da ação. É o tempo do desassossego, do sobressalto, da mudança para uma cidade nova, do desafio do vestibular, da descoberta da leitura, do encantamento diante de tudo que leva a assinatura da imaginação, do mergulho na arte (a arte que sustenta a vida real). É o tempo das grandes dificuldades, dos grandes medos, das grandes incertezas. É o tempo de uma conquista fundamental – o ingresso no Banco do Brasil. É o tempo de uma tranqüilidade financeira inédita para um menino que, junto com a mãe e dois irmãos, vinha cumprindo, sem amargura, sem revolta, o estatuto civil da pobreza. É hora de dizer que havia na mãe um desejo de raiz – e a mãe fez o que pôde para manter seus frutos ao abrigo de sua árvore.
Ali na curva dos trinta, menino-homem, está ele entregue a uma paixão com contornos de para sempre, daquelas que parecem decretar o início, o fim e o meio. É o tempo de sedimentar conquistas, de se apegar mais ainda à vida e seu incessante cortejo de dor e delícia, de acreditar que nas dobras do ordinário pode estar o extraordinário. É o tempo de ensaiar mais um vôo. Havia no menino um desejo de asas – e ele acabou pousando numa das asas de Brasília, o seu sonho feliz de cidade, de onde só pensa voar rumo ao derradeiro pouso.
Agora, para sempre homenino, está ele entregue à travessia da casa dos quarenta, inteiramente despreocupado com o final dessa travessia. É o tempo da vida tranqüila, da paixão que virou uma amizade mais que amorosa, da calmaria de quem quer muito pouco. É o tempo de apreciar a vida se vivendo nele e ao redor dele. Há sempre no homenino um desejo de vela – e ele cuida de manter seu barco o mais possível na rota dos ventos favoráveis.
Mas quem é esse menino? É um menino do Brasil que se confunde com outros tantos meninos severinos, iguais em tudo na vida, iguais em tudo e na sina. É um menino brasileiro que não se cansa de ter a esperança de um dia ser tudo o que quer.