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domingo, 28 de setembro de 2014

De como cheguei à Filosofia – para não ficar

Uma circunstância acadêmica deu-me a oportunidade de voltar o olhar para os caminhos que me levaram até à Filosofia. A oportunidade veio acompanhada da sugestão de refazer esse percurso tendo o Discurso do Método, de Descartes, como interlocutor de fundo, sugestão bem-vinda pela certeza de que a interlocução – mais pelo distanciamento e menos pela aderência que apresenta em relação à trajetória de Descartes – me permitiria estabelecer contrapontos esclarecedores sobre os rumos que venho seguindo.

Descartes exalta o método como sumamente necessário para se aplicar bem o espírito, para bem conduzir a razão, construindo para si um método. E, tendo-o construído, é com certa presunção que diz ter empreendido o caminho certo na busca da verdade, declarando-se disposto a procurar apenas pela ciência que pudesse achar em si próprio.

Os registros biográficos dão conta de que Descartes estudou numa das escolas mais célebres da Europa e percorreu todos os livros que tratavam das ciências de então. Resolveu, contudo, abandonar todos os saberes acumulados – só acolhendo aqueles que sobrevivessem ao martelo da dúvida –, passando a dedicar-se às viagens, ciente de que era preciso testar os saberes em contato com o mundo, era preciso colar-se à vida para colher dela a verdade, era preciso desenvolver a capacidade de ouvir a razão. Assim, ao mesmo tempo em que se dispõe às viagens, Descartes decide estudar a si próprio para melhor escolher os caminhos a seguir.

A essa altura já tenho elementos para assinalar as diferenças (radicais?) de um percurso que teve um ponto de partida inteiramente outro.

Nasci e vivo num país que, apesar de “gigante pela própria natureza”, tem se mantido na periferia do mundo. Não vai nessa constatação nenhum laivo de contrariedade diante do que não passa de um acaso geográfico. Tal constatação serve apenas para dizer que, tendo nascido nos confins deste país imenso e periférico, vivi todas as conseqüências desse pormenor biográfico. Para começar, o ensino a que tive acesso – hoje o posso constatar – trazia a marca da precariedade; longe, todo ele, de qualquer indicador de excelência. Além disso, a necessidade de garantir o próprio sustento confrontou-me desde cedo. Obrigado a cumprir fielmente “o estatuto civil da pobreza”(1), espaço nenhum havia para vagares, reflexões, viagens, nada, embora andasse sempre “à procura de espaço para o desenho da vida”(2). O certo é que as urgências primárias do estar no mundo roubavam qualquer possibilidade de colocar a vida em perspectiva.

Dito isto, cá estou, “preso à minha classe e a algumas roupas”(3), a bordo da máquina do mundo munido apenas dos sensores da razão. É com esse aparato que sigo em busca de uma “total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular”(4), ainda que, por vezes, seja difícil prosseguir na “inspeção contínua e dolorosa do deserto”(4), a mente já “exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos”(4). Mas, diferentemente do poeta, e se tanto me fosse oferecido, certamente não baixaria “os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abrisse gratuita a meu engenho”(4).

Descartes declara ter percorrido todos os livros disponíveis, fato que, à parte alguma possível presunção, era perfeitamente factível no seu tempo, sobretudo levando-se em consideração que ele dispunha de tempo e fortuna para se dedicar a esse mister. Quanto a mim, “estou atrasadíssimo nos gregos, não conheço os Anais de Assurbanipal, como é que vou (...) chegar à filosofia contemporânea e às glórias do 2015 que telefonam?”(5).

De sua parte, Descartes apanhou do mundo tudo quanto havia – e tudo ele submeteu ao aluvião da dúvida para ver que sedimentos de verdade era possível colher ali. De minha parte, sigo na obstinação da colheita com a nítida sensação de que ela jamais chegará a termo. O mundo transbordou de si, tornou-se uma imensa caverna permeada por múltiplos labirintos e espelhos, neles se podendo colher, se tanto, apenas estilhaços de verdade. A razão, sob a avalanche de signos que lhe incumbe decifrar, parece incapaz de extrair do mundo verdades seguras. O sentimento é o de se estar diante de um palimpsesto impenetrável, fechado a qualquer leitura segura, e que fornece de si versões que não se conciliam com quaisquer princípios de razão. Resta sempre a impressão de que “tudo é muito mais”(6). 

A disposição da procura – fruto de uma natureza curiosa, desconfiada, nesse que talvez seja o único elo entre mim e Descartes – serviu para revelar o tamanho da minha ignorância, tais são os “buracos negros” que venho descobrindo em mim. O resultado disso tudo é ter-me lançado ao mar das indagações. A sensação do quanto me faltava (trata-se de pretérito imperfeito mais-que-presente) e o desejo de preencher lacunas, primeiro me levaram à literatura. Ler virou uma paixão. E o ato da leitura é por si indômito, o apetite nunca cessa. De leitura em leitura, e confrontado sempre com a incompletude, cheguei à Filosofia. Meus únicos recursos eram vinte e poucos anos e uma vastíssima ignorância (desses recursos o único que se alterou foi, obviamente, a idade). Desembarquei na Filosofia tímido e totalmente virgem de um passado que se conta em milênios. Mesmo com o certo desapreço de Descartes pela Filosofia especulativa [(“Da Filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute, e por conseguinte que não seja duvidoso, eu não alimentava qualquer presunção de acertar melhor do que os outros”)(7)], percebi que o exercício investigativo a que a Filosofia se propõe poderia me ajudar não a obter respostas, mas a melhor encaminhar minhas perguntas. O desassossego vem de que “perguntar é ter sempre como resposta outra pergunta” (8).

Descartes não primava pela modéstia ao se referir à obra já feita. Eu, ungido pela humildade, sinto que “o silêncio serão minhas obras completas”(9). Descartes pretendia unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade. Já eu, avaliando o que não posso alcançar, sigo vagaroso, “de mãos pensas”(4). 

O namoro com a Filosofia, embora breve, foi ótimo, sobretudo por confirmar: não nascemos um para o outro. Não, pelo menos, para casamento. Um flerte vez em quando é quanto basta. É que a Filosofia ergue em triunfo o primado da razão e sabemos todos que a razão não está com essa bola toda. O que ficou desse breve namoro foi: "Nessas altas idéias navego mal" (Guimarães Rosa). Sigo diletante, um pensageiro serelépido, um mero colecionador de pensatempos.  

            

___________________
Notas:
(1)   Citação de memória – sujeita à infidelidade – de trecho de poema de Carlos Drummond de Andrade dedicado a Manuel Bandeira;

(2)   Trecho do poema Canção Excêntrica, de Cecília Meireles, em Flor de Poemas, Ed. Nova Fronteira, 9ª edição, pág. 80;

(3)   Trechos do poema A Flor e a Náusea, de Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética, Ed. Record, 23ª edição, pág. 24;

(4)   Trechos do poema A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética, Ed. Record, 23ª edição, pág. 206; (Obs.: o sublinhado na quarta citação indica alteração necessária do original para manter o sentido do texto)

(5)   Trecho do poema Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz, em Antologia Poética, Ed. Record, 23ª edição, pág. 269; (Obs.: os sublinhados, com o perdão de Drummond, foram uma licença poética pedida pelo texto);

(6)   Caetano Veloso, em letra da canção Podres Poderes;

(7)   Trecho do Discurso do Método, coleção Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, pág. 32;

(8)   Citação de memória que atribuo – sem certeza – a Clarice Lispector;

(9)   Trecho do poema Lápide 1, de Paulo Leminski, colhido em http://www.insite.com.br/rodrigo/poet/leminski/lapide1.html, transcrito com ajustes. 

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