Uma circunstância acadêmica deu-me a
oportunidade de voltar o olhar para os caminhos que me levaram até à Filosofia.
A oportunidade veio acompanhada da sugestão de refazer esse percurso tendo o Discurso do Método, de Descartes, como
interlocutor de fundo, sugestão bem-vinda pela certeza de que a interlocução –
mais pelo distanciamento e menos pela aderência que apresenta em relação à
trajetória de Descartes – me permitiria estabelecer contrapontos esclarecedores
sobre os rumos que venho seguindo.
Descartes exalta o método como sumamente
necessário para se aplicar bem o espírito, para bem conduzir a razão,
construindo para si um método. E, tendo-o construído, é com certa presunção que
diz ter empreendido o caminho certo na busca da verdade, declarando-se disposto
a procurar apenas pela ciência que pudesse achar em si próprio.
Os registros biográficos dão conta de que
Descartes estudou numa das escolas mais célebres da Europa e percorreu todos os
livros que tratavam das ciências de então. Resolveu, contudo, abandonar todos
os saberes acumulados – só acolhendo aqueles que sobrevivessem ao martelo da
dúvida –, passando a dedicar-se às viagens, ciente de que era preciso testar os
saberes em contato com o mundo, era preciso colar-se à vida para colher dela a
verdade, era preciso desenvolver a capacidade de ouvir a razão. Assim, ao mesmo
tempo em que se dispõe às viagens, Descartes decide estudar a si próprio para
melhor escolher os caminhos a seguir.
A essa altura já tenho elementos para assinalar
as diferenças (radicais?) de um percurso que teve um ponto de partida
inteiramente outro.
Nasci e vivo num país que, apesar de “gigante
pela própria natureza”, tem se mantido na periferia do mundo. Não vai nessa
constatação nenhum laivo de contrariedade diante do que não passa de um acaso
geográfico. Tal constatação serve apenas para dizer que, tendo nascido nos
confins deste país imenso e periférico, vivi todas as conseqüências desse
pormenor biográfico. Para começar, o ensino a que tive acesso – hoje o posso
constatar – trazia a marca da precariedade; longe, todo ele, de qualquer
indicador de excelência. Além disso, a necessidade de garantir o próprio
sustento confrontou-me desde cedo. Obrigado a cumprir fielmente “o estatuto
civil da pobreza”(1), espaço nenhum
havia para vagares, reflexões, viagens, nada, embora andasse sempre “à procura
de espaço para o desenho da vida”(2).
O certo é que as urgências primárias do estar no mundo roubavam qualquer
possibilidade de colocar a vida em perspectiva.
Dito isto, cá estou, “preso à minha classe e a
algumas roupas”(3), a bordo da
máquina do mundo munido apenas dos sensores da razão. É com esse aparato que
sigo em busca de uma “total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular”(4), ainda que, por vezes, seja difícil
prosseguir na “inspeção contínua e dolorosa do deserto”(4), a mente já “exausta de mentar toda uma realidade que
transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos”(4). Mas, diferentemente do poeta, e se
tanto me fosse oferecido, certamente não baixaria “os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta que se abrisse
gratuita a meu engenho”(4).
Descartes declara ter percorrido todos os livros
disponíveis, fato que, à parte alguma possível presunção, era perfeitamente factível
no seu tempo, sobretudo levando-se em consideração que ele dispunha de tempo e
fortuna para se dedicar a esse mister. Quanto a mim, “estou atrasadíssimo nos
gregos, não conheço os Anais de Assurbanipal, como é que vou (...) chegar à filosofia contemporânea e às glórias do
2015 que telefonam?”(5).
De sua parte, Descartes apanhou do mundo tudo
quanto havia – e tudo ele submeteu ao aluvião da dúvida para ver que sedimentos
de verdade era possível colher ali. De minha parte, sigo na obstinação da
colheita com a nítida sensação de que ela jamais chegará a termo. O mundo
transbordou de si, tornou-se uma imensa caverna permeada por múltiplos
labirintos e espelhos, neles se podendo colher, se tanto, apenas estilhaços de
verdade. A razão, sob a avalanche de signos que lhe incumbe decifrar, parece
incapaz de extrair do mundo verdades seguras. O sentimento é o de se estar
diante de um palimpsesto impenetrável, fechado a qualquer leitura segura, e que
fornece de si versões que não se conciliam com quaisquer princípios de razão.
Resta sempre a impressão de que “tudo é muito mais”(6).
A disposição da procura – fruto de uma natureza
curiosa, desconfiada, nesse que talvez seja o único elo entre mim e Descartes –
serviu para revelar o tamanho da minha ignorância, tais são os “buracos negros”
que venho descobrindo em mim. O resultado disso tudo é ter-me lançado ao mar
das indagações. A sensação do quanto me faltava (trata-se de pretérito
imperfeito mais-que-presente) e o desejo de preencher lacunas, primeiro me levaram
à literatura. Ler virou uma paixão. E o ato da leitura é por si indômito, o
apetite nunca cessa. De leitura em leitura, e confrontado sempre com a
incompletude, cheguei à Filosofia. Meus únicos recursos eram vinte e poucos
anos e uma vastíssima ignorância (desses recursos o único que se alterou foi,
obviamente, a idade). Desembarquei na Filosofia tímido e totalmente virgem de
um passado que se conta em milênios. Mesmo com o certo desapreço de Descartes
pela Filosofia especulativa [(“Da Filosofia nada direi, senão que, vendo que
foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e
que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se
dispute, e por conseguinte que não seja duvidoso, eu não alimentava qualquer
presunção de acertar melhor do que os outros”)(7)], percebi que o exercício investigativo a que a Filosofia se
propõe poderia me ajudar não a obter respostas, mas a melhor encaminhar minhas
perguntas. O desassossego vem de que “perguntar é ter sempre como resposta
outra pergunta” (8).
Descartes não primava pela modéstia ao se referir à obra já feita. Eu, ungido pela humildade, sinto que “o silêncio serão minhas obras completas”(9). Descartes pretendia unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade. Já eu, avaliando o que não posso alcançar, sigo vagaroso, “de mãos pensas”(4).
O namoro com a Filosofia, embora breve, foi ótimo, sobretudo por confirmar: não nascemos um para o outro. Não, pelo menos, para casamento. Um flerte vez em quando é quanto basta. É que a Filosofia ergue em triunfo o primado da razão e sabemos todos que a razão não está com essa bola toda. O que ficou desse breve namoro foi: "Nessas altas idéias navego mal" (Guimarães Rosa). Sigo diletante, um pensageiro serelépido, um mero colecionador de pensatempos.
___________________
Notas:
(1)
Citação
de memória – sujeita à infidelidade – de trecho de poema de Carlos Drummond de
Andrade dedicado a Manuel Bandeira;
(2)
Trecho
do poema Canção Excêntrica, de
Cecília Meireles, em Flor de Poemas,
Ed. Nova Fronteira, 9ª edição, pág. 80;
(3)
Trechos
do poema A Flor e a Náusea, de Carlos
Drummond de Andrade, em Antologia Poética,
Ed. Record, 23ª edição, pág. 24;
(4)
Trechos
do poema A Máquina do Mundo, de
Carlos Drummond de Andrade, em Antologia
Poética, Ed. Record, 23ª edição, pág. 206; (Obs.: o sublinhado na quarta citação indica alteração necessária do
original para manter o sentido do texto);
(5)
Trecho
do poema Apelo a Meus Dessemelhantes em
Favor da Paz, em Antologia Poética,
Ed. Record, 23ª edição, pág. 269; (Obs.:
os sublinhados, com o perdão de Drummond, foram uma licença poética pedida pelo
texto);
(6)
Caetano
Veloso, em letra da canção Podres Poderes;
(7)
Trecho
do Discurso do Método, coleção Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, pág.
32;
(8)
Citação
de memória que atribuo – sem certeza – a Clarice Lispector;
(9)
Trecho
do poema Lápide 1, de Paulo Leminski,
colhido em http://www.insite.com.br/rodrigo/poet/leminski/lapide1.html,
transcrito com ajustes.
0 comentários:
Postar um comentário