Na Associação Cultural e Recreativa Esmorecense é noite de espetáculo. O convite tinha sido afixado nas montras dos
estabelecimentos comerciais e fora também enviado por e-mail
para os sócios que tinham caixa de correio eletrónico. O texto
pretendia ser apelativo:
«Nas comemorações do 25 de Abril deste ano, vamos inaugurar na nossa
Associação uma série de palestras proferidas pelo nosso sócio, Sr. Miguel
Alves Dantas, a que, para honrar o orador, chamaremos M.A.D. Talks, à
semelhança do que se faz lá fora. A imperdível palestra desta noite tem o
sugestivo título de A estranha cura dos corações empedernidos.»
Pelas 21 e 15, já a plateia do pequeno auditório estava composta.
Notava-se algum nervosismo entre os sócios. Cinco minutos depois das 21 e
30, entrou em palco o presidente da agremiação. O silêncio foi
quase instantâneo. Aurélio Miranda deu dois toques no microfone,
para confirmar que estava ligado, e anunciou:
— Muito boa noite! Obrigado por terem vindo. É uma honra
receber-vos e é muito gratificante verificar que os nossos sócios e
restantes conterrâneos corresponderam ao nosso convite. Como foi
anunciado, o Sr. Miguel Dantas, reconhecido
autodidata da nossa terra, vai dar uma pequena palestra sobre um
assunto candente da atualidade, a que se seguirá um pequeno período
de perguntas. Mas não vos canso com detalhes. É ele que vocês querem
ouvir; é a ele que vou já passar a palavra. O vosso aplauso para
Miguel Alves Dantas!
O visado subiu as estreitas escadas laterais do palco, sob uma
revoada de palmas, fez um ligeiro aceno de agradecimento e, decidido,
postou-se frente ao microfone de pé. As palmas terminaram de
imediato e fez-se um silêncio atento.
— Caros amigos: — começou o orador, lançando um olhar por sobre
toda a plateia — todos vocês me conhecem e sabem bem do meu gosto
pelo saber e da curiosidade que tenho por tudo o que não entendo.
“I have a dream”, como disse o poeta. Entre esses fenómenos, atingiu-me recentemente a extraordinária
adesão de toda a gente à condenação da invasão da Ucrânia e da
não menos surpreendente compaixão ativa por todos os que fogem
dessa guerra abjeta. Já não vou para novo e posso dizer, sem risco
de mentir, que nunca tal tinha visto. Nas televisões, rádios,
jornais, redes sociais era, foi, é permanente a raiva por este
ataque bárbaro da Rússia contra a Ucrânia, sem razão, sem
desculpa. As pessoas mostram-se verdadeiramente indignadas com a
situação. Horrorizam-se com as imagens de prédios esventrados, de
mortos espalhados pelas ruas, de multidões a tentar fugir daquele
pesadelo. Não estávamos preparados para tanta ferocidade.
Miguel Dantas fez uma pequena pausa para respirar. O auditório
mantinha-se atento, embora nada do que estava a ser dito fosse
novidade.
— Ora esta veemência contra uma guerra nunca se tinha visto. Só
para falar na guerra contra o Iraque, em que igualmente não havia
nenhuma justificação para um ataque, também foi uma guerra
injusta, feroz, canalha. As forças americanas entraram por ali
adentro a disparar sobre tudo e todos, a causar mortos sem conta, a
destruir infraestruturas, alvos militares e a fazer vítimas civis
sem pejo. Mas, se bem me lembro, delirávamos com os bombardeamentos,
admirávamos a pontaria cirúrgica e a capacidade destrutiva dos
mísseis, sentíamos algum conforto pelas vitórias do invasor,
achávamos muito bem destruir tudo, até que Saddam Hussein e o seu
exército fossem derrotados e derrubados.
A plateia agora manifestava algum agitar de cabeças, alguns
reajustes de posição nas cadeiras.
— Agora, reparem na atenção que damos aos refugiados ucranianos,
à pena que sentimos por eles e à vontade de ajudar que
manifestamos, até enviando ajuda através das organizações que
estão a fazê-lo. Tem sido maravilhoso, enche-nos de orgulho e
limpa-nos a alma. Afinal, somos gente com G grande, somos capazes de
solidariedade, a Humanidade pode rever-se em nós. Mas, como foi com
os refugiados do Iraque? Alguma vez se organizaram pontes aéreas
para ir buscar alguns? Alguma vez pensámos receber um casal em nossa
casa? Reparem na diferença. É certo que, uma vez por outra, ainda
nos afligimos com as centenas dos que se metiam de qualquer maneira
pelo Mediterrâneo adentro e lá naufragavam e se afogavam. Foi o
máximo que atingimos. Mas nunca conseguimos ultrapassar uma certa desconfiança, como que um conflito
interno de amor-repúdio.
Miguel Dantas avaliou a assistência. Aqui e ali percebia-se que
alguns dos presentes não concordavam completamente com o que estava
a ser dito.
— Pois foi esta aparente incoerência que me atingiu com toda a sua
estranheza. O que é que mudou? São assim tão díspares os cenários
de guerra que nos levam agora a agir de uma forma muito mais
humanitária? Os massacres de Fallujah eram menos terríveis que os de
Mariupol? Serão estes mortos e estes fugitivos mais dignos de
compaixão? Ou terá sido a lenta corrosão do tempo que nos mudou?
Passaram dezanove anos. Será que houve uma alteração qualitativa
da Humanidade de hoje, que se tornou mais sensível e dorida com os
males que vê o próximo sofrer? Amigos…
Chegara o momento de Miguel Dantas revelar o que descobrira, ou
pensava que descobrira. Não era preciso estar muito atento à
fisionomia do palestrante para perceber um disfarçado sorriso no
seu rosto um pouco macilento.
— Amigos — repetiu — o que se alterou não foi fruto de um
desenvolvimento das características altruístas da Humanidade, da
evolução no sentido darwinista, nem foram as características deste
conflito que determinaram esta onda de compaixão e revolta. Eu acho
que encontrei a explicação para este paradoxo. Pensei, examinei, vi
gráficos, li análises e cheguei à conclusão que, lógica e
humanamente, não há nenhuma diferença entre estes dois conflitos
armados que justifique tão grande mudança da nossa interação com
eles. Então, o que a motivou? Aqui surgiu-me, óbvia e luminosa, a
explicação. O que é que temos tido neste últimos anos, que não
tivemos no início do século? Uma pandemia global, intensa e
duradoura. É isto, é! — afirmava Dantas, acentuando a certeza com
acenos da cabeça, tentando matar à nascença a descrença que via
nascer aqui e ali. — Um dia viremos a conhecer toda a extensão e a
profundidade desta virose que mexeu com toda a nossa genética.
Então, confirmaremos que ela nos tornou mais sensíveis, acentuando
os sentimentos de empatia e compaixão pelos sofredores, ao mesmo
tempo que fortalece os sentimentos de indignação e ódio pelos que
infligem sofrimentos. Esta teoria explica esta contradição, é
lógica e, por isto, orgulho-me dela. Agora, fico à vossa
disposição para as perguntas que entenderem fazer.
Logo dois braços se levantaram. Dantas apontou para um rapaz com uma
barbita rala, que lhe pareceu ser quem tinha levantado o braço primeiro.
— Sr. Dantas, tenho dificuldade em concordar consigo. Parece-me que
existem diferenças importantes entre os dois conflitos que referiu e
que podem justificar esta diferença de atitude geral que apontou. A
começar por quem promoveu cada um dos conflitos. A invasão do
Iraque foi executada pelo bloco militar de que o nosso país faz
parte, o que determinou que a nossa comunicação social apoiasse a
narrativa do invasor. Hoje, a mesma comunicação social condena as razões do invasor, que é adverso do bloco a que pertencemos, e, desta vez, mostra e dramatiza os horrores que acontecem no território invadido. Isto faz toda a diferença, não acha?
Dantas fez um trejeito de desconforto, e avançou para o microfone.
— O que o meu amigo diz é verdade em parte, mas, para que fosse relevante, teríamos de admitir duas condições irrealistas e até ofensivas. Primeira: que os jornalistas se guiam pelo seu arbítrio pessoal, em vez de pelo seu código deontológico, ou pior, que são uma espécie de agentes do bloco político-militar ocidental. Segunda: que as pessoas seguem submissamente tudo o que a comunicação social difunde. Que amam ou odeiam o que ela determina. E que acham que o que ela não mostra não existe. Não quero acreditar nisso. Acredito que, no geral, a comunicação social mantém uma equidistância informativa entre as partes, em vez de uma adesão militante a um dos blocos, como dizem alguns. E acho que as pessoas são críticas do que veem e sabem muito bem distinguir as situações. Só que hoje, devido ao vírus da COVID-19, os nossos mecanismos de empatia estão mais sensíveis.
Ouviu-se um risinho no fundo da sala e o rapaz que tinha feito a pergunta abanava a cabeça, nada
convencido, mas Dantas já apontava para outra pessoa do público,
uma rapariga com um único brinco do lado direito.
— O Sr. Dantas disse, e bem, que estamos muito sensíveis aos
dramas dos refugiados ucranianos, mas já pensou que pode tratar-se
de uma mera consequência do nosso racismo tendencialmente endémico?
Há dias ouvi alguém notar que estes refugiados são lourinhos e
lavadinhos e os outros eram “farruscos”. Não acha que o racismo
pode ter tido aqui um papel?
— De maneira nenhuma! — declarou Dantas com veemência. — Isso
seria de uma sordidez sem nome. Então nós estaremos a condoer-nos com uns, porque são branquinhos, e borrifámo-nos para outros, como que a exorcizar o nosso grau de “farrusquice”? Não acredito nisso! Se não fosse a pandemia, também nos borrifávamos para os ucranianos. É a minha tese.
No meio do zunzum que flutuava na plateia, levantou-se o braço de
uma mulher, com um colar de pérolas de fantasia.
— Sr. Dantas, no Iraque havia um ditador que mantinha o povo
debaixo da pata; na Ucrânia existe um regime democrático, com um
presidente eleito, atacado por um ditador. Parece-me que será mais
por aqui…
— Os refugiados são todos iguais: são desgraçados a fugir da guerra e da fome; da perseguição e da morte. Tanto no Iraque como na Ucrânia, fugiam e fogem da devastação causada por uma superpotência. Recuso-me a acreditar que a maioria das pessoas trate os povos conforme os regimes que têm — sejam ditaduras ou democracias aprovadas pelas superpotências —, e que deixe de ter compaixão pelas pessoas que nasceram nos países cujo modelo político não aprovam.
O burburinho acentuava-se. Antes que o orador entrasse em pormenorizações, o presidente da coletividade resolveu dar por
concluída a sessão e entrou em palco. De rosto sorridente, deu um
abraço ao orador e dirigiu-se ao microfone.
— E pronto, caros associados e público em geral; encerramos assim
a nossa primeira palestra. Espero que tenham gostado. Quero agradecer
ao Sr. Miguel Alves Dantas a sua brilhante comunicação e cá estaremos de
hoje a um mês para mais uma MAD Talks. Até lá!
O salão da associação encheu-se com as palmas de quase todos os presentes, alguns estavam até a decidir não deixar passar a próxima palestra, mas outros pareciam muito desapontados e não tencionavam voltar. Miguel Dantas mostrava-se satisfeito e já antevia o êxito da palestra do mês seguinte de título “As tocantes declarações de amor das superpotências pelas populações dos países hostis".
Joaquim Bispo
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Imagem:
Georges de La Tour (atribuído), São Sebastião tratado por
Irene, 1630.
Museu de Arte Kimbell, Fort Worth, Texas (EUA).
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