Aconteceu no interior do Brasil. Como tantas outras coisas que acontecem por este país imenso. Em 2009, um pequeno escândalo atingiu a Igreja Católica, provocando a desaprovação de alguns, a compaixão de outros. O caso foi abafado pelas altas autoridades eclesiásticas, que disseram que nada aconteceu. Mas aconteceu. Eu sei. Porque aconteceu comigo. Meu nome é Irismar Lopes de Souza, tenho 43 anos e sou padre. Eu poderia lhes contar onde nasci, quem são meus pais e várias outras coisas a meu respeito, mas isso fica para depois. Primeiro as coisas que vêm primeiro. Entrei mais tarde que a maioria para o seminário. Já tinha 19 anos quando permiti que o meu desejo de servir a Deus viesse à tona. Deixei a casa de minha avó, onde cresci, e segui para a capital, instalando-me numa pensão indicada pelo pároco da minha cidade. E dei início à longa caminhada que me trouxe até aqui. Conversas, entrevistas, encontros, retiros e, finalmente, lá estava eu, seminarista.
Mas este caso não é sobre o maçante caminho que trilhei até a ordenação. O que merece registro aconteceu bem depois daqueles anos de pesados estudos teológicos. Anos, por sinal, em que as dificuldades pessoais quase me fizeram desistir do meu propósito.
Santo Antônio dos Currais é uma terra de gente trabalhadeira. Desde cedo, os pais ensinam às crianças serviços de todo o tipo. Não tem casa em que um menino ou menina saia da mesa sem levar o prato até a pia e lavá-lo. Varrer o chão, fazer pequenas compras na quitanda ou no açougue, arrumar a cama. Hábitos. "É de pequeno que se torce o pepino", repetem as mães e avós orgulhosas. Quando cheguei àquela paróquia, oito anos atrás, vinha de outras, menores e mais pacatas, e achei que havia encontrado o paraíso. Nem bem tinha me instalado e as senhoras da cidade mandaram entregar macarronada, carne assada e uma ambrosia de fazer salivar. E continuou assim até que me bateu à porta o Amâncio, indicado pela viúva de um fazendeiro da região. O rapaz franzino, tímido, pelo qual eu não daria um tostão, acabou por se mostrar de grande ajuda: limpava, cozinhava, arrumava e ainda era devoto de Nossa Senhora, o que me encantou acima de tudo.
— Por aqui é assim, padre Irismar, todo o mundo é prendado. Não tem vagabundo nesta terra — diziam os moradores.
Verdade. Vagabundo não tinha mesmo. O que tinha era gente com segredos. E que segredos! Durante um tempo, fiquei na dúvida se iria ou não revelar a vocês o que ouvi em confissão. "Pecado mortal!", dirão alguns. Não, não é, eu lhes garanto. Quando chegarem ao fim desta história comigo, verão que de um ponto de vista filosófico-conceitual nada do que lhes conto pode ser considerado pecado.
Fato é que, até uns seis meses depois da minha chegada à cidade, o tédio me consumia e nada merecia registro. Casamentos, batizados, enterros... Batizados, enterros, casamentos. Mas uma tarde, pouco antes de a igreja abrir as portas para a missa das 18h30, D. Beatriz, a senhora que me indicara o Amâncio, entrou afogueada na sacristia.
— Sua bênção, padre.
— Deus abençoe. O que eu posso fazer pela senhora?
— Eu quero me confessar.
O rosto preocupado de D. Beatriz contava que a coisa era grave. E era.
— Perdão, padre, porque eu pequei.
— O que houve com a senhora?
— Padre, o Amâncio é meu filho — disse, de supetão.
Com apreensão, comecei a pensar que aquela cidade talvez não fosse o Éden que eu tinha imaginado.
— Fale mais, D. Beatriz, conte tudo.
— Eu era menina, inocente, e me deixei seduzir pelo advogado de meu pai, um homem mais velho e casado. Ele me dizia coisas lindas, me mandava poemas e me chamava de "minha flor".
Bem, a flor foi colhida aos 15 anos e Amâncio nasceu de sete meses, miúdo e sem saúde. Foi logo entregue, em sigilo, a uma família de pequenos agricultores que nunca soube de quem era a criança. O advogado foi expulso da cidade e tudo ficou entre quatro paredes. Além dos pais e das duas avós da moça, só o médico sabia do que se passara. Beatriz foi afastada para uma fazenda em outro município e todos na cidade acreditaram que estivesse num colégio suíço. Desses protagonistas, só Beatriz, o filho e o médico ainda estavam vivos. E o advogado, pai da criança.
— A senhora já se confessou sobre isso antes?
— Não, claro que não! Nunca tive coragem padre. Um grande pecado, eu sei, mas morro de vergonha de falar disso, mesmo agora!
— E por que agora?
A indecisão do outro lado dos furos da tela de madeira que me separava de D. Beatrizme fez imaginar o pior. E era.
— O pa... O pai do rapaz voltou!
— E o que ele quer?
— Conhecer o filho! Disse que está velho, que não teve outros filhos e que precisa pelo menos ver o rapaz, antes de morrer! Ai, padre, o que é que eu faço?
— Ele sabe quem é o filho?
— Claro que não! Eu mesma só descobri quando minha mãe me contou, no leito de morte. O problema é que ele quer tornar a história pública e nem meu marido nem meus outros filhos sabem de nada! O senhor já imaginou o que vai acontecer?
Não, eu não tinha a menor ideia. Mas estava começando a antecipar o caos, a me dar conta do perigo de certas revelações fora de hora.
— Reze o Ato de Contrição enquanto penso na penitência e numa solução.
— Meu Jesus, estou muito arrependida de ter pecado, pois ofendi a Vós, tão bom. Mereci ser castigada...
Castigo, punição. Era isso! O que D. Beatriz queria, na verdade, era ser castigada por seus pecados para se sentir aliviada! Nada disso, nada disso! Penitência, sim. Mas a verdade junto!
— Como penitência, reze três rosários, ainda hoje. Em seguida, a senhora vai chamar o Amâncio e lhe contar a verdade.
— Não! Eu não posso fazer isso! Eu não posso!
— A senhora está se negando a cumprir a penitência, D. Beatriz?
— Não, padre, não é isso...
— Escute! A senhora precisa contar para o Amâncio antes que o pai o encontre e faça isso pela senhora. O homem é advogado, tem posses. Pode fazer um escândalo desnecessário. Além do mais, quem disse que, depois de saber, o Amâncio vai aceitar o pai?
Enfim convencida, D. Beatriz saiu do confessionário em lágrimas. Passou por Amâncio quando já ia deixando a igreja, falou alguma coisa com ele em voz baixa e os dois caminharam rumo à sacristia.
Eu não via a hora que as confissões terminassem para ir ter com Amâncio. Mas aquele dia foi infernal. Parecia que todos tinham combinado de me contar seus piores segredos na mesma hora. Dois adúlteros, um ladrão e uma sadomasoquista, que insistiu em me dar os detalhes mais bizarros da prática, me deixaram com saudade dos meninos que mentiam para a mãe e das meninas que passavam trote telefônico nas freiras do Sagrado Coração.
Mas o pior ainda estava por vir.
Tão logo cheguei à sacristia, vi no rosto de Amâncio que era outro rapaz. Transtornado, mordia o lábio superior e apertava as mãos com força sobre o cálice que limpava com um pano branco.
— Lembrou de lavar? — perguntei, puxando conversa.
— Lavar...?
— O cálice, Amâncio. Eu não gosto que passe só o pano, você sabe. Mesmo sendo somente eu a beber, com o tempo vai ficando com cheiro de saliva.
Sem responder, ele pegou de volta o cálice que tinha colocado sobre uma prateleira e saiu por uma porta lateral em direção à área, com cara de poucos amigos. Fui atrás dele.
— Algum problema?
Ele me olhou longamente e pensei que não responderia. Mas, ao contrário, foi direto ao ponto:
— O senhor sabe, não?
— Sei o quê?
— Que D. Beatriz é... é... minha mãe de verdade.
Calei-me. Segredo de confissão é coisa sagrada. E se me concederem o tempo desta narrativa, verão que tenho meus motivos para esta posição ambígua em relação a dogma tão severo. Até lá, pensem o que quiserem.
Não nos falamos mais naquela noite e eu varei a madrugada pensando em como as coisas se dariam dali em diante. Dormi pouco. Acordei com batidas fortes à porta. Era Amâncio. Fora de si, e com um brilho malévolo nos olhos, repetia:
— Eu quero me confessar, eu quero me confessar, padre! Agora!
Ele tinha bebido. Pelo visto, muito. Mas o que me deixou mais em choque foi o que me disse nem bem se ajoelhou no confessionário:
— Eu vou matar o meu pai. Eu vou sair daqui e matar aquele monstro! Eu combinei com a minha mãe, eu jurei pra ela que nós dois vamos ficar livres desse homem para sempre!
— Calma, calma! O que é isso! Nem repita uma coisa dessas! Um filho matar o pai! Que pecado! E foi D. Beatriz quem lhe pediu isso? Em nome de Deus, como é que pode!
— Que Deus? Que Deus? — ele berrava. — Onde é que Deus estava quando deixou uma menina de 15 anos ser emprenhada por um homem que podia ser pai dela? Onde é que ele estava esse quando deixou a minha avó me separar da minha mãe? Por que é que esse seu Deus aí me deixou ser criado por uma família pobre, enquanto a minha família de verdade vivia na riqueza? Coitadinha da minha mãe, nem sabia quem eu era até a minha avó morrer! Que Deus é esse, hein?
Esperei que chorasse bastante e se acalmasse, antes de falar com ele.
— Você está me deixando de pés e mãos atados de propósito, não é Amâncio? Porque você sabe que eu não posso revelar um segredo de confissão.
Soltando uma risada, ele encostou bem o rosto na tela de madeira e disse, com a vozbaixa:
— Poder até que pode, não é Irismar? Porque nós dois sabemos que o sigilo de confissão não vale nada pra você, não é mesmo?
Ele havia mesmo dito o que eu entendi que dissera? Não, não! Meus ouvidos estavam me confundindo. A falta de sono daquela noite estava mexendo com os meus sentidos.
— Não entendi, Amâncio.
— Entendeu, sim, Irismar! Ah, entendeu, sim! A escolha é sua. Ou você mantém a sua boca fechada, ou eu abro a minha! Eu tenho umas coisas em meu poder, umas coisas que eu encontrei no lixo do seu quarto, que eu estou guardando para uma emergência, sabia?
E sem que eu pudesse contê-lo, saiu correndo e gritando pela nave lateral da igreja, ainda vazia àquela hora da manhã: “E a verdade vos libertará, e a verdade vos libertará”.
Não lembro quanto tempo levei para me recuperar. Os primeiros fiéis já tinham chegado para a missa da 6h30, quando um dos coroinhas me viu sair, cambaleando, do confessionário. Estômago embrulhando, cabeça doendo muito, eu quase não conseguia distinguir as pessoas, porque a vista estava turva. Amparado pelo menino, cheguei à sacristia, onde pedi a uma das senhoras que avisasse que não haveria missa. Eu não podia rezar. Não depois da confissão de Amâncio.
Não deixei que ninguém chamasse o médico. Eu nunca deixava que chamassem o médico. Quando necessário, eu procurava a minha própria medicina nos livros, na internet, ou buscava uma consulta num lugar bem distante das paróquias em que morava. Fazia isso desde a época do seminário, mesmo sendo mais arriscado. Pedi a todos que me deixassem ficar sozinho e, depois que todos saíram, sentei-me com a cabeça entre as mãos, imaginando que dentro de pouco tempo um homem seria assassinado. E que eu não ia fazer nada mesmo podendo, mesmo podendo!
De repente, todo o medo desapareceu. Eu sabia o que tinha que fazer, o que podia fazer. E sabia que se eu não tomasse uma atitude, uma atitude só, nunca mais teria paz. Procurei o nome de D. Beatriz na listagem da sacristia. Ela atendeu no segundo toque.
— Em que hotel o pai de seu filho está hospedado?
— Eu não vou lhe dizer isso, padre.
— Se a senhora não me disser eu vou pedir à polícia que procure o Amâncio pela cidade inteira.
— O senhor não pode! O que ele lhe disse foi em segredo de confissão!
— Eu não posso contar o que eu sei à polícia, mas posso pedir que procurem por ele, sob a alegação de que ele está sumido e transtornado! Isso eu posso fazer, D. Beatriz! E sem precisar entrar em detalhes!
— O senhor não vai contar nada, vai? — ela perguntou, em pânico.
— Eu, não. Mas pode ser que o Amâncio acabe falando. O rapaz é emocionalmente instável. A senhora acha que ele vai guardar para si essa história do pai?
Engraçado como os padres nunca são barrados. No hotel indicado por D. Beatriz, o atendente da recepção me informou com um sorriso, e sem titubear, onde encontrar quem eu estava procurando. “Um velho amigo”, disse eu, tomando, em seguida o elevador. Já na porta do apartamento daquele homem que eu nem conhecia, ouvi a voz de Amâncio, gritando: “Eu te odeio! Você não é meu pai, não tem direito de ser meu pai!”. Em seguida, um instante de silêncio, seguido de uma música em volume muito alto; e então a porta se abriu. Amâncio deu de cara comigo e eu o empurrei de volta para o interior do quarto, fechando a porta atrás de mim. Lá dentro, os olhos abertos e parados do homem idoso confirmavam sua morte. Sem dar tempo a Amâncio de se recuperar do transe em que se encontrava, apontei para ele a arma que trazia no meu próprio bolso e o matei com um tiro certeiro. Rapidamente, fui até o idoso e pressionei com força seus dedos, ainda quentes, na minha arma, pegando-a de volta. Quando o gerente do hotel entrou no apartamento, acompanhado de um segurança truculento, me encontrou no chão, ao lado do cadáver do homem velho. Eu estava com a minha arma na mão e apontava para a frente, onde estava caído o corpo sem vida de Amâncio. Segundo as palavras do segurança, “o padre estava em estado de choque”.
Também me lembro do meu depoimento, naquele dia, poucas horas depois:
“Ontem à noite, eu fui procurado por D. Beatriz na sacristia. Ela me contou que era mãe desse rapaz, do Amâncio, mas que ele não sabia disso. Coisas da adolescência que a família escondeu. De acordo com ela, o pai de Amâncio estava na cidade e queria conhecer o filho. Eu a aconselhei a falar tudo para o rapaz; e foi o que ela fez, pouco depois, na sacristia. Hoje cedo, Amâncio me procurou em meu quarto, coisa que não é comum, e parecia estar enlouquecido. Bastante transtornado, falou mal da mãe, do pai que nem conhecia e disse que daria um jeito em tudo. Logo depois, eu o ouvi sair de moto. Liguei para D. Beatriz, perguntei a ela o nome do hotel onde estava o pai de Amâncio e fui correndo para lá, temendo uma tragédia. Assim que cheguei, ouvi uma discussão dentro do apartamento e escutei o Amâncio berrando: ‘Você me chamou aqui pra me matar, pra se ver livre de mim porque eu sou seu herdeiro, não é, seu velho doente? Mas é você quem vai morrer!’. Depois, tudo ficou em silêncio por uns segundos e, de repente, uma música foi ligada bem alto. Em seguida, a porta se abriu e eu dei de cara com o Amâncio com uma arma na mão. Foi então que eu vi, dentro do apartamento, um homem velho caído no chão, aparentemente morto, e também com uma arma numa das mãos. Corri para o homem e me abaixei para ter certeza de que estava mesmo morto, mas, no momento em que me virei para falar com o Amâncio, vi que ele estava apontando a arma para mim. Eu tive certeza de que ele ia atirar, porque ele gritou: ‘Ninguém vai testemunhar contra mim, ninguém!’. Então, sem pensar, instintivamente, me joguei com rapidez para o lado, arranquei a arma da mão do morto e atirei uma vez contra o Amâncio. Aí, fechei os olhos, com muito medo, e só os abri novamente quando ouvi o segurança do hotel chamar por mim”.
Era 2009. E a Cúria foi atingida pelo escândalo de um padre que matou um homem. O acontecimento provocou a desaprovação de alguns, a compaixão de outros. O caso foi arquivado como legítima defesa e abafado pelas autoridades da Igreja. Não há mais nada com o que me preocupar.
Mas eu lhes disse que contaria mais coisas a meu respeito, não foi? Pois que seja.
Eu, Irismar Lopes de Souza, tenho 43 anos e sou nascida mulher. Vim ao mundo malnutrida e sem chorar. Acharam até que eu não vingava, de tão miúda. Nasci em casa, pelas mãos de uma parteira tão pobre quanto a minha família, numa cama dura, perto da janela, que era para a mulher ter a ajuda da luz do sol. Meu pai estava longe, trabalhando, e minha mãe ficou de cama vários dias, muito fraca. Por isso, o cartório aceitou que minha avó fizesse o meu registro. No momento em que o escrivão lhe perguntou sobre o sexo da criança, ela, velha e caduca, nem titubeou: “Masculino”.
Cresci e segui mulher até a adolescência, enfiada no serviço pesado das casas em que fazia faxina e na cama de homens que me davam um pouco de dinheiro. Aos 16 anos, ganhei de presente uma Bíblia de umas irmãs de caridade e comecei a ler, repetidamente, dia e noite, aqueles textos que eu pouco compreendia. Não importava. Eu me sentia importante lendo aquilo, e achava tudo lindo. Depois de passar os três anos seguintes pensando num futuro para mim, descobri, sem querer, o erro na minha certidão de nascimento. Achei que era obra de Deus. Daquele Deus da Bíblia que eu carregava comigo até para a cama dos homens que se fartavam da minha carne.
O cabelo, o andar, as sobrancelhas e as unhas masculinas nunca me incomodaram. Nem mesmo a falta de sexo, essa imundície da qual estou livre para sempre. De incômodo, a faixa com que aperto meus seios, há mais de 30 anos. E os períodos menstruais que me exigiram muita astúcia e mentira nos tempos de seminário, mas que hoje estão longe de olhares indiscretos.
Os dois homens que matei para ter paz foram desígnios de Deus. O seminarista Ernesto, que me pegou trocando um absorvente no banheiro. E Amâncio, que vasculhou o meu lixo no dia errado do mês. Os dois me ameaçaram com chantagens. Espíritos do mal. Mas tudo já passou. Agora estou aqui, em nova paróquia, nova cidade, neste ano da graça de 2013. Porque é como diz o texto sagrado: “Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar”.
Foi isso o que aconteceu. Eu sei. Porque aconteceu comigo.