Rodrigo cresceu passando férias no bairro-balneário, na casa dos avós, que fica no fim da Avenida Atlântica, quase na Querência. Aprendeu com o vô Matias a enfiar a mão bem fundo na areia molhada e puxar tatuíras, iscas para a pesca das manhãs. Ficar com o seu Matias na beira da praia fez Rodrigo entender, desde cedo, uma porção de coisas que uma pessoa precisa saber sobre o tempo, a razão e os sentidos. A principal delas, talvez, é que o espaço comprido entre lançar a linha ao mar e recolhê-la é paciência e nesse intervalo não cabe conversa, não se diz palavra, ou não se escutará o que vem de lá.
Por detrás do bigodão de fios brancos, cobrindo a boca, vinham orientações fundamentais: que o mar não tem rédea, que a água salgada cura tudo, que só bom nadador morre afogado, que o oceano devolve o que lhe é intruso. O avô, pescador de ofício, introduzia o neto em constatações e regularidades de uma língua selvagem, um idioma que Rodrigo compreenderia de ouvido, mas jamais se atreveria a falar. Por respeito. Faz três anos que Rodrigo perdeu o avô para um câncer no pâncreas. Antes de morrer, Matias pedia que o neto não se esquecesse de jogar a correntinha de ouro, aquela abençoada por São Pedro, nas primeiras ondas de junho. E que bebesse um vinho tinto pensando nele num domingo qualquer.
Entrou na praia pela Barra e dirigiu devagar até o navio encalhado. Estacionou. Não faz muito, parece, foi pela mão com o avô ver a embarcação que não suportou as ondas do Cassino e atracou na areia. Quase podia ver Matias e os amigos de pescaria ali, eufóricos, contando do resgate da tripulação e de alguns equipamentos do Altair. Há décadas as ondas batem e lanham e deterioram aquele casco, que tem uma história misturada a sua. O navio que a água comeu. Está comendo. Um monumento aos naufrágios. Ficou olhando as ferrugens e pensando que tinha uma vida meio assim carcomida pelo vento. Ainda é madrugada e os olhos de Rodrigo ardem dentro do carro, de chorar e de não dormir. Quer que tenha sol quando for cumprir o combinado. É domingo, primeiro de junho, três garrafas de vinho tinto vazias repousam no banco do carona, o celular conta seis chamadas não atendidas e pisca o último tracinho de bateria, não demora desligar.
Descalça as botas, remanga as calças, abre a porta e desce. Faz um frio de doer as orelhas e o nariz. A luz começa à esquerda, por trás dos paredões de pedra. Já é hora. À frente e à direita há água cinza que não acaba mais, espuma aqui e ali, ondas altas. Horizonte não serve para nada, resmunga. Tropeça em conchas e se detém em uma carcaça de caramujo enorme. Herança do mar, como o vô dizia. Examina, ri e se baba e fala para o alto, leva a concha ao ouvido.
- Matias, velho safado, sabia que ias querer me ver nesse dia de pagar a promessa que eu te fiz. Eu vim, ó. Vim. Tô bem aqui nesse frio do cacete. Vou jogar a tua corrente lá no fundo, do jeito que tu querias. Eu seeeeei! Eu sei que o mar tá brabo, tchê. Já vou, tá bem? Vou jogar de longe, nem vou entrar, tá bom assim? Que falta eu sinto de ti, vô. Que falta.
O neto sobe na borda do navio encalhado e caminha até a ponta fora d’água. Fere a sola dos pés e nem repara. A onda vem forte e molha Rodrigo da cintura para baixo, respinga seu rosto e recebe de volta um palavrão. Ele tira a corrente do bolso e coloca dentro da concha. Afasta as pernas para manter o equilíbrio possível, mira a formação de onda mais distante e atira. Por pouco o corpo bêbado não vai junto, corrente e caramujo. Rodrigo volta encarangado. Está feito. Senta no chão úmido e canta que é doce morrer no mar. Pega no sono e tomba de todo comprimento na areia enquanto a maré recua. Adiante, um avô mostra ao neto, com todo o cuidado, como se prende tatuíra no anzol.
1 comentários:
Quanta poesia, Andréa! Prosa poética da melhor qualidade, sempre! Que texto lindo! Nostálgico, forte, lírico, na medida certa! Seus personagens sempre parecem amigos, parentes, conhecidos de cada um de nós...Adorei!
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