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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Maria do Carmo


é difícil o amor
 melhor seria arrancar um braço
 fazê-lo voaaaaaar”  *

Diz que será bom recordar, e eu sinto-lhe o meio sorriso sob um batom que imagino enrugado e de cor berrante. Propõe que nos encontremos.
Combinamos.
Desligo e fico encostada na ombreira da porta. Fico remoendo.
Devia ter recusado. Ter inventado uma desculpa. Uma ocupação inadiável. Dizer-lhe que estava fora da terra onde ela viera procurar-me.
Devia ter, mesmo, dito, indelicada: não tenho nada para recordar contigo. Mas pelo contrário, disse-lhe, a tentar que ela julgasse em mim um sorriso afável: se queres, eu por mim. E acentuei o som das reticências, mas ela nem terá percebido encantada por eu concordar numa tarde de cavaqueira. Uma tarde a remexer no passado da gente, como ela mesmo disse.
Sentada à espera que ela chegue, noto que nem sequer coloquei perfume ou qualquer coisa bem cheirosa nos sovacos. Brincos de prata, pendentes, sim, esses, trago, como é meu costume, tal como estar com um vestido justo em malha vermelha e trazer sabrinas com meias opacas, umas e outras de cor preta.
Olho o espelho que ocupa, a toda a largura, uma das paredes do restaurante, e mordo o lábio de cima, hábito que tenho desde há muito e me aguenta a palavra corrosiva que normalmente me acompanha o brilho maldoso nos olhos. Quem mo disse foi um namorado, e eu sigo à risca este morder o lábio quando quero comedir-me.
Diria, fosse o caso: estou apetecível, e assim, calo-me, mas volto a olhar o meu reflexo, e fico presumindo que Maria do Carmo virá arranjada a rigor para este encontro. Ela gostava de vestidos, e de arranjos, e eu imagino-a, o cabelo platinado, ou negro azeviche num arranjo recente, e as unhas feitas num verniz berrante. E há-de trazer um lencinho embebido em água-de-colónia, lenço que tirará da carteira para um suor que nem tenha mas a ela pareça que lhe escorre na dobra que o queixo lhe faça em cima da gola da camisa, seda pura por baixo do casaquinho, conjunto completo com a saia justa, tudo em em pied de pool branco e preto. Lã pura, corte impecável.
Será assim que a verei daqui a nada, interrogo-me e olho o relógio. Ainda não está atrasada, e seria inesperado, que ela dizia, ainda tão menina: devemos chegar a horas, diz a minha mãezinha.
Maria do Carmo que foi minha colega de carteira, trará, quase me atrevo a jurar, sapatos de salto muito alto e meias com revesilho. Meias em tom de pele. Virá decerto bem vestida.
Sexta-feira, então, disse ela ao telefone, e eu devia ter dito que não tínhamos fosse o que fosse que nos unisse, nada que, recordado, desse a cada uma, e às duas em conjunto, qualquer motivo.
Mas não disse, e aqui estou eu a esperá-la.
Três e trinta, mais minuto menos minuto, tinha ela dito como quem parafraseia, e eu senti que, assim, recordando os meus atrasos, ela iniciava o seu remexer pelo passado.
Ai Carminha, Carminha, murmuro eu sem muita vontade de ficar, face a face, com a minha antiga parceira de carteira.
A gente partilhando o tinteiro, cada uma vestindo a bata branca, obrigatória, e por baixo uma saia de pregas em azul-escuro e uma camisola.
Maria do Carmo tinha uma saia de xadrez em tons de vermelhos e cinzentos de que eu gostava muito, tanto quanto detestava a saia de malha cor de salmão que a minha mãe teimava que eu vestisse: por baixo da bata, filha! e é tão quentinha! insistia.
Maria do Carmo usava vestidos com renda em redondo nos punhos e na gola.
No final do dia, cada uma vestia o seu abafo. O meu era um casaco liso, em tom de castanho com botões de quatro furos, e o dela era um sobretudo verde com botões doirados. Deixávamo-los dependurados nos cabides na entrada das salas onde tínhamos Português, Francês ou Matemática. Em todas as salas, excepto nos laboratórios onde tínhamos cacifes. E, se chovia, cada uma trazia um impermeável transparente como o vidro, e uma sombrinha. E galochas. Nisso, eram igualinhas as nossas indumentárias de meninas a frequentar o terceiro ano do liceu.
Apenas se chovia e apenas por fora.
No tempo quente, usávamos vestidinhos de manga curta em tecidos fininhos com bolas ou florinhas ou num xadrezinho miúdo. Usava-os ela, que eu tinha um único vestido em azul clarinho com risquinhas brancas, e a minha mãe lavava-o e secava-o, e eu vestia-o ao outro dia muito passado a ferro, muito mimoso.
Como se fosse novo, dizia a minha mãe a dar-mo ainda quente do ferro e segurando-o, com cuidado, pelos ombros.
Tínhamos vivido, sim, eu e Maria do Carmo emparceiradas numa mesma carteira no período da manhã, até ser o almoço e, no período da tarde, até ser hora do lanche e sairmos da escola, e lá ao fundo havia o rio.
 Tínhamos tido, cada uma a sua, uma mala de cartão debruado a metal fininho. Uma mala com cheiro.
Se bem que eu não sei se a mala de Maria do Carmo também cheirava o mesmo odor. Ela nunca mo disse e eu nunca lhe perguntei. A minha mala tinha, e mantém, que, num dia de arrumações, descobri, amassada, mas ainda inteira, a minha mala de cartão prensado, e curiosa de saber se tinha lá dentro algum caderno, um livro, algum lápis, abri-a com cuidado. Estava vazia. Mas, levantando a tampa, entrou-me pelo nariz aquele odor que era um odor intenso de eu ter tido tão pouca idade e ter vestido um vestidinho azul com risquinhas e por cima uma bata muito branca.
Um cheiro que me trouxe a imagem da minha colega de carteira do terceiro ano, e eu fechei a mala e deixei que ficasse lá onde a tinha encontrado.
Não iria dizer-lhe de malas nem de cheiros.
Maria do Carmo quase em atraso e eu, aqui sentada na mesa do restaurante, sorriu-me e olho-me de esguelha no espelho da outra parede.
Não irei dizer-lhe: olha, a minha mala ainda tem cheiro, descobri um dia destes. Não pronunciarei uma palavra acerca desse cheiro inconfessado que talvez fosse o cheiro de todas as malas, e não só da minha, que era castanha com uma asa arredondada.
Olho o relógio.
Olho o meu que trago no pulso, e olho aquele imenso sobre o espelho da parede em frente, mais do que um relógio, um adereço, mas está certo: são três horas e vinte e oito minutos em ambos os marcadores.
Maria do Carmo está quase, quase.
Mal percebi que era ela ao telefone, veio-me às narinas aquele odor. Um cheiro que afinal nem fosse senão resultante do paninho de apagar a lousa misturado com restos de borracha soltos. Ou cheiro do papel prensado e da cola de que era feita a mala. Ou seria disso tudo e mais do sabão azul e branco com que era lavado o guardanapo que me levava o lanche.
Não iria confidenciar isso com Maria do Carmo.
Não iria dizer-lhe: e o cheiro que tinha a mala da escola, lembras-te dele? mas lembraria, sensata e cordial, quando me chamavam: anda jogar ao prego, ao Manecas, anda saltar à corda.
Mas não irei confessar-lhe o horror que sempre tinha sido entrar e sair na corda que rodava. A corda a rodar de cima para baixo, e depois em sentido contrário, e eu apavorada que a corda me batia, ou me encalhava nas pernas, e eu baralhava tudo estatelada na terra do recreio. Como eu preferiria ficar sentada a desenhar florinhas na borda dos cadernos. Ou uma cercadura de pássaros. Mas eu acorri sempre ao chamamento: anda saltar à corda, anda. Acorri sempre e, apesar do medo, joguei muitos jogos, esfolei os joelhos, rasguei bibes e o cós das saias.
Irei dizer-lhe: lembras-te Maria do Carmo? a falar dos jogos, mas não lhe confessarei esses meus temores, que se Maria do Carmo os soubesse colocaria sobre a boca, os dedos de unhas envernizadas que ela decerto terá daqui a nada sentada à minha frente nesta mesa, e ficaria a sonegar-me o total do seu imenso espanto. E mais se espantaria, se eu lhe dissesse que tremia de vergonha, a minha timidez ao rubro, quando a professora de Francês ou de Língua Portuguesa me convidava para ler em voz alta para a classe a redacção impecável que tinha escrito na prova.
Não. Não seria por termos agora netos que eu iria confessar-lhe que dizer um poema em frente ao quadro negro, eu ali pespegada sob o crucifixo e aquele senhor sisudo e mais o outro com o casaco repleto de medalhas, era tão odioso como ficar perdida de todas no jogo das escondidas e ninguém vir ver que aquele esconderijo era o melhor de todos: nunca te encontramos, refilavam, cansadas de buscar-me o intervalo inteiro, e a sineta tocava ou a contínua batia palmas a chamar-nos: meninas, e elas sem me encontrarem.
E a jogar ao Manecas ou a jogar às cinco pedrinhas ou no jogo da malha, eu morria de medo de trocar os pés, de trocar as mãos e estragar o jogo. Mas ganhava. 
Ganhas sempre, dizias, irritada. Lembras-te, Maria do Carmo?
Não irei perguntar-lhe.
Olho a porta e os dois mostradores. São três e trinta. Em ponto.
Não és decerto aquela mulher que ali entra, calças de ganga e o cabelo a dar para o grisalho, uma parca usada e nem verniz nas unhas nem batom nos lábios. Nem és tu aquela senhora de saia- casaco cinza-rato e chapéu com duas flores. Não. Nenhuma das mulheres tem o ar de quem marcou encontro, nenhuma se aproxima da mesa em que estou sentada à tua espera.
Disseste: colocas uma flor vermelha em cima dum livro, e eu coloquei uma flor de papel, uma flor enorme, muito visível e muito igual à cor do meu vestido.
Passam dois minutos da hora marcada. Olho a porta e olho o relógio.
Se Maria do Carmo entrar agora e sorrir, eu vou perceber que é ela. Não terei esquecido o sorriso que tinha quando, numa outra tarde, abalámos pelo rio.
Isso, então, não poderei dizer-lhe: Maria do Carmo, lembras-te que nem uma palavra quando a tua mãe disse: quem te manda andares com ela?!
Que se eu dissesse, seria insidiosa, debruçar-me-ia, até, sobre a mesa e falaria em voz cava: lembras-te, Maria do Carmo?
Não, não iriei dizer-lhe.
Ainda menos deixarei que contemos, cada uma seu pedaço.
Deixámos a margem quase a pique e fomos pelo açude, diria ela.
Tu na frente. Tu a dares-me a mão, pespontaria eu.
Não. Não iremos dizer nada disto. Nem falaremos do cheiro que tinha a mala dos livros e cadernos e lápis e borrachas.
Maria do Carmo vem com atraso e eu imagino como seria eu e ela recordando.
Os sapatos escorregavam nos limos e tu gritavas-me: anda, anda, não sejas medrosa, e eu apavorada.
Assim, diria eu.
A água corria em cascata e os pés poisavam sem tino na estreiteza da pedra mais limo que outra coisa, dirias tu fugindo a recordar que tinha sido trágico se não fosse o destino estar escrito de outro modo.
Ou tu dirias, a medo: o pior foram as mães.
Ou nem dirias. Não te atreverias a dizer, que se o fizesses, eu poderia ser cruel imitando o sotaque espanholado, que a tua mãe viera da raia, diziam as outras mães maldosas de nem terem sido elas as casadas com um homem tão rico como era o teu padrasto. Amantizada, diria a minha mãe e tu chorando e eu chorando. Está vendo o que fez a sua filha? Era a tua mãe e eu aqui, imitando-a.
Não. Não iriamos recordar, ou tu dirias: lembras-te?! Tu lembras-te de tudo?!  como se preferisses que tivesse esquecido.
Como se fosse possível ter esquecido.
A tua mãe pressurosa de que fosses uma menina da senhora professora, uma menina que nunca iria atravessar o rio senão levada por colega de poucos princípios.
Lembras-te, tu ainda te lembras! dirias, tu pasmada.
A tua mãe repetia naquele tom de senhora que não parte loiça pois nem nela toca que para isso tem criadas: a sua filha levou a minha menina por maus caminhos.
E tu, sonsa, a fingir que nem era contigo, choramingavas. Lembras-te, Maria do Carmo?!
Eu tinha o braço partido, dirias a enxugar a dobra do queixo com o tal lencinho, e eu a dizer-te: nem foste capaz de contar que eu te salvara de ires na correnteza. Partiste o pulso e fendeste a pele do braço esquerdo, mas não foste rio abaixo como eu temi e tu tanto gritaste: socorro, salva-me ou digo que foste tu que me trouxeste.
Ainda me recordo da tua roupa colada ao corpo e de ter notado que usavas calcinhas pelo joelho debaixo do vestido.
Se de aqui a nada recordássemos deste modo, havias de pedir-me: cala-te, não foi para isto que vim ver-te.
Mas já eu estaria de freio nos dentes.
Vamos passar o rio, tinhas-me dito. E eu sempre medrosa, mas sem querer desmerecer, ainda disse: é perigoso. E tu riste. E fomos. Para onde vamos, Maria do Carmo? e tu sabias para onde nos levavas.
Mas o limo escorregou demais nas tuas sandálias que eram novas.
Não, não irei dizer-lhe: lembras-te? 
Maria do Carmo.
Rirá de boca escancarada de estarmos lembrando aquela coisa ignara de que nunca entendemos o préstimo: óleo de fígado de bacalhau tomado em obrigatórias colheradas.
Quando ela chegar, será disso que falaremos.
Olho o relógio e olho a porta. 
Acaba de entrar uma senhora de cabelo branco com uma echarpe colorida a rodear-lhe o pescoço. Tem óculos muito negros que tira para olhar em roda.
É ela. Tenho a certeza que é Maria do Carmo.
A mulher sorri-se e eu juro que é de ter visto a flor vermelha sobre o livro que coloquei aqui na mesa.
No relógio que está por cima do espelho, os ponteiros ficaram parados nas três horas e trinta minutos, e eu estremeço, e já a mulher se debruça sobre a mesa e nem pergunta. Sorri-se, apenas, e nem fala, Maria do Carmo murmura: és tu a minha parceira de carteira. E eu não lhe sinto odor de perfume, e ela não tem batom, nem verniz nas unhas, e traz sapatos rasos e uma blusa simples de algodão rosado.
Enquanto se senta, noto que não tem sinal de calcinhas por baixo da saia muito justa em xadrez cinzento.
Maria do Carmo, que nem pergunta. Mal se senta, ela diz-me, debruçada sobre a mesa, um sorriso radioso a inundá-la: queria tanto saber se ainda cheiras aquele cheiro. O teu corpo cheirava todo  a esse cheiro que ainda hoje guardo, naquela tarde em que parti o pulso.

Maria do Carmo.




* verso do poema "Não é fácil o amor"de Luís de Andrade, musica e voz de Janita Salomé no álbum "Cantar ao sol "   por sugestão amável do Joaquim 

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1 comentários:

Se não é isto "corrente de consciência"... Muita coisa conjeturamos quando tentamos saber sem dados. Neste caso, entremeando com uma viagem à juventude ficcionada. Maria inconfundível.

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