“é
difícil o amor
melhor
seria arrancar um braço
fazê-lo voaaaaaar” *
Diz que será bom recordar,
e eu sinto-lhe o meio sorriso sob um batom que imagino enrugado e de cor
berrante. Propõe que nos encontremos.
Combinamos.
Desligo e fico encostada
na ombreira da porta. Fico remoendo.
Devia ter recusado. Ter
inventado uma desculpa. Uma ocupação inadiável. Dizer-lhe que estava fora da
terra onde ela viera procurar-me.
Devia ter, mesmo, dito,
indelicada: não tenho nada para recordar contigo. Mas pelo contrário,
disse-lhe, a tentar que ela julgasse em mim um sorriso afável: se queres, eu
por mim. E acentuei o som das reticências, mas ela nem terá percebido encantada
por eu concordar numa tarde de cavaqueira. Uma tarde a remexer no passado da
gente, como ela mesmo disse.
Sentada à espera que ela
chegue, noto que nem sequer coloquei perfume ou qualquer coisa bem cheirosa nos
sovacos. Brincos de prata, pendentes, sim, esses, trago, como é meu costume, tal
como estar com um vestido justo em malha vermelha e trazer sabrinas com meias
opacas, umas e outras de cor preta.
Olho o espelho que ocupa,
a toda a largura, uma das paredes do restaurante, e mordo o lábio de cima, hábito
que tenho desde há muito e me aguenta a palavra corrosiva que normalmente me
acompanha o brilho maldoso nos olhos. Quem mo disse foi um namorado, e eu sigo
à risca este morder o lábio quando quero comedir-me.
Diria, fosse o caso: estou
apetecível, e assim, calo-me, mas volto a olhar o meu reflexo, e fico presumindo
que Maria do Carmo virá arranjada a rigor para este encontro. Ela gostava de
vestidos, e de arranjos, e eu imagino-a, o cabelo platinado, ou negro azeviche num
arranjo recente, e as unhas feitas num verniz berrante. E há-de trazer um lencinho
embebido em água-de-colónia, lenço que tirará da carteira para um suor que nem
tenha mas a ela pareça que lhe escorre na dobra que o queixo lhe faça em cima
da gola da camisa, seda pura por baixo do casaquinho, conjunto completo com a
saia justa, tudo em em pied de pool branco e preto. Lã pura, corte impecável.
Será assim que a verei
daqui a nada, interrogo-me e olho o relógio. Ainda não está atrasada, e seria
inesperado, que ela dizia, ainda tão menina: devemos chegar a horas, diz a
minha mãezinha.
Maria do Carmo que foi minha
colega de carteira, trará, quase me atrevo a jurar, sapatos de salto muito alto
e meias com revesilho. Meias em tom de pele. Virá decerto bem vestida.
Sexta-feira, então, disse
ela ao telefone, e eu devia ter dito que não tínhamos fosse o que fosse que nos
unisse, nada que, recordado, desse a cada uma, e às duas em conjunto, qualquer
motivo.
Mas não disse, e aqui
estou eu a esperá-la.
Três e trinta, mais minuto
menos minuto, tinha ela dito como quem parafraseia, e eu senti que, assim, recordando
os meus atrasos, ela iniciava o seu remexer pelo passado.
Ai Carminha, Carminha,
murmuro eu sem muita vontade de ficar, face a face, com a minha antiga parceira
de carteira.
A gente partilhando o
tinteiro, cada uma vestindo a bata branca, obrigatória, e por baixo uma saia de
pregas em azul-escuro e uma camisola.
Maria do Carmo tinha uma
saia de xadrez em tons de vermelhos e cinzentos de que eu gostava muito, tanto
quanto detestava a saia de malha cor de salmão que a minha mãe teimava que eu
vestisse: por baixo da bata, filha! e é tão quentinha! insistia.
Maria do Carmo usava
vestidos com renda em redondo nos punhos e na gola.
No final do dia, cada uma vestia
o seu abafo. O meu era um casaco liso, em tom de castanho com botões de quatro
furos, e o dela era um sobretudo verde com botões doirados. Deixávamo-los dependurados
nos cabides na entrada das salas onde tínhamos Português, Francês ou
Matemática. Em todas as salas, excepto nos laboratórios onde tínhamos cacifes.
E, se chovia, cada uma trazia um impermeável transparente como o vidro, e uma
sombrinha. E galochas. Nisso, eram igualinhas as nossas indumentárias de
meninas a frequentar o terceiro ano do liceu.
Apenas se chovia e apenas
por fora.
No tempo quente, usávamos
vestidinhos de manga curta em tecidos fininhos com bolas ou florinhas ou num
xadrezinho miúdo. Usava-os ela, que eu tinha um único vestido em azul clarinho
com risquinhas brancas, e a minha mãe lavava-o e secava-o, e eu vestia-o ao
outro dia muito passado a ferro, muito mimoso.
Como se fosse novo, dizia
a minha mãe a dar-mo ainda quente do ferro e segurando-o, com cuidado, pelos
ombros.
Tínhamos vivido, sim, eu e
Maria do Carmo emparceiradas numa mesma carteira no período da manhã, até ser o
almoço e, no período da tarde, até ser hora do lanche e sairmos da escola, e lá
ao fundo havia o rio.
Tínhamos tido, cada uma a sua, uma mala de
cartão debruado a metal fininho. Uma mala com cheiro.
Se bem que eu não sei se a
mala de Maria do Carmo também cheirava o mesmo odor. Ela nunca mo disse e eu
nunca lhe perguntei. A minha mala tinha, e mantém, que, num dia de arrumações, descobri,
amassada, mas ainda inteira, a minha mala de cartão prensado, e curiosa de
saber se tinha lá dentro algum caderno, um livro, algum lápis, abri-a com
cuidado. Estava vazia. Mas, levantando a tampa, entrou-me pelo nariz aquele
odor que era um odor intenso de eu ter tido tão pouca idade e ter vestido um
vestidinho azul com risquinhas e por cima uma bata muito branca.
Um cheiro que me trouxe a
imagem da minha colega de carteira do terceiro ano, e eu fechei a mala e deixei
que ficasse lá onde a tinha encontrado.
Não iria dizer-lhe de
malas nem de cheiros.
Maria do Carmo quase em
atraso e eu, aqui sentada na mesa do restaurante, sorriu-me e olho-me de
esguelha no espelho da outra parede.
Não irei dizer-lhe: olha,
a minha mala ainda tem cheiro, descobri um dia destes. Não pronunciarei uma
palavra acerca desse cheiro inconfessado que talvez fosse o cheiro de todas as
malas, e não só da minha, que era castanha com uma asa arredondada.
Olho o relógio.
Olho o meu que trago no
pulso, e olho aquele imenso sobre o espelho da parede em frente, mais do que um
relógio, um adereço, mas está certo: são três horas e vinte e oito minutos em ambos
os marcadores.
Maria do Carmo está quase,
quase.
Mal percebi que era ela ao
telefone, veio-me às narinas aquele odor. Um cheiro que afinal nem fosse senão
resultante do paninho de apagar a lousa misturado com restos de borracha
soltos. Ou cheiro do papel prensado e da cola de que era feita a mala. Ou seria
disso tudo e mais do sabão azul e branco com que era lavado o guardanapo que me
levava o lanche.
Não iria confidenciar isso
com Maria do Carmo.
Não iria dizer-lhe: e o
cheiro que tinha a mala da escola, lembras-te dele? mas lembraria, sensata e
cordial, quando me chamavam: anda jogar ao prego, ao Manecas, anda saltar à
corda.
Mas não irei confessar-lhe
o horror que sempre tinha sido entrar e sair na corda que rodava. A corda a
rodar de cima para baixo, e depois em sentido contrário, e eu apavorada que a
corda me batia, ou me encalhava nas pernas, e eu baralhava tudo estatelada na
terra do recreio. Como eu preferiria ficar sentada a desenhar florinhas na
borda dos cadernos. Ou uma cercadura de pássaros. Mas eu acorri sempre ao
chamamento: anda saltar à corda, anda. Acorri sempre e, apesar do medo, joguei
muitos jogos, esfolei os joelhos, rasguei bibes e o cós das saias.
Irei dizer-lhe: lembras-te
Maria do Carmo? a falar dos jogos, mas não lhe confessarei esses meus temores, que
se Maria do Carmo os soubesse colocaria sobre a boca, os dedos de unhas
envernizadas que ela decerto terá daqui a nada sentada à minha frente nesta
mesa, e ficaria a sonegar-me o total do seu imenso espanto. E mais se
espantaria, se eu lhe dissesse que tremia de vergonha, a minha timidez ao
rubro, quando a professora de Francês ou de Língua Portuguesa me convidava para
ler em voz alta para a classe a redacção impecável que tinha escrito na prova.
Não. Não seria por termos
agora netos que eu iria confessar-lhe que dizer um poema em frente ao quadro
negro, eu ali pespegada sob o crucifixo e aquele senhor sisudo e mais o outro
com o casaco repleto de medalhas, era tão odioso como ficar perdida de todas no
jogo das escondidas e ninguém vir ver que aquele esconderijo era o melhor de
todos: nunca te encontramos, refilavam, cansadas de buscar-me o intervalo
inteiro, e a sineta tocava ou a contínua batia palmas a chamar-nos: meninas, e
elas sem me encontrarem.
E a jogar ao Manecas ou a jogar
às cinco pedrinhas ou no jogo da malha, eu morria de medo de trocar os pés, de
trocar as mãos e estragar o jogo. Mas ganhava.
Ganhas sempre, dizias,
irritada. Lembras-te, Maria do Carmo?
Não irei perguntar-lhe.
Olho a porta e os dois
mostradores. São três e trinta. Em ponto.
Não és decerto aquela
mulher que ali entra, calças de ganga e o cabelo a dar para o grisalho, uma
parca usada e nem verniz nas unhas nem batom nos lábios. Nem és tu aquela
senhora de saia- casaco cinza-rato e chapéu com duas flores. Não. Nenhuma das
mulheres tem o ar de quem marcou encontro, nenhuma se aproxima da mesa em que
estou sentada à tua espera.
Disseste: colocas uma flor
vermelha em cima dum livro, e eu coloquei uma flor de papel, uma flor enorme,
muito visível e muito igual à cor do meu vestido.
Se Maria do Carmo entrar agora e
sorrir, eu vou perceber que é ela. Não terei esquecido o sorriso que tinha
quando, numa outra tarde, abalámos pelo rio.
Isso, então, não poderei dizer-lhe:
Maria do Carmo, lembras-te que nem uma palavra quando a tua mãe disse: quem te
manda andares com ela?!
Que se eu dissesse, seria
insidiosa, debruçar-me-ia, até, sobre a mesa e falaria em voz cava: lembras-te,
Maria do Carmo?
Não, não iriei dizer-lhe.
Ainda menos deixarei que
contemos, cada uma seu pedaço.
Deixámos a margem quase a
pique e fomos pelo açude, diria ela.
Tu na frente. Tu a
dares-me a mão, pespontaria eu.
Não. Não iremos dizer nada
disto. Nem falaremos do cheiro que tinha a mala dos livros e cadernos e lápis e
borrachas.
Maria do Carmo vem com
atraso e eu imagino como seria eu e ela recordando.
Os sapatos escorregavam
nos limos e tu gritavas-me: anda, anda, não sejas medrosa, e eu apavorada.
Assim, diria eu.
A água corria em cascata e
os pés poisavam sem tino na estreiteza da pedra mais limo que outra coisa,
dirias tu fugindo a recordar que tinha sido trágico se não fosse o destino
estar escrito de outro modo.
Ou tu dirias, a medo: o
pior foram as mães.
Ou nem dirias. Não te
atreverias a dizer, que se o fizesses, eu poderia ser cruel imitando o sotaque
espanholado, que a tua mãe viera da raia, diziam as outras mães maldosas de nem
terem sido elas as casadas com um homem tão rico como era o teu padrasto.
Amantizada, diria a minha mãe e tu chorando e eu chorando. Está vendo o que fez
a sua filha? Era a tua mãe e eu aqui, imitando-a.
Não. Não iriamos recordar,
ou tu dirias: lembras-te?! Tu lembras-te de tudo?! como se preferisses que tivesse esquecido.
Como se fosse possível ter
esquecido.
A tua mãe pressurosa de
que fosses uma menina da senhora professora, uma menina que nunca iria
atravessar o rio senão levada por colega de poucos princípios.
Lembras-te, tu ainda te
lembras! dirias, tu pasmada.
A tua mãe repetia naquele
tom de senhora que não parte loiça pois nem nela toca que para isso tem
criadas: a sua filha levou a minha menina por maus caminhos.
E tu, sonsa, a fingir que
nem era contigo, choramingavas. Lembras-te, Maria do Carmo?!
Eu tinha o braço partido,
dirias a enxugar a dobra do queixo com o tal lencinho, e eu a dizer-te: nem
foste capaz de contar que eu te salvara de ires na correnteza.
Partiste o pulso e fendeste a pele do braço esquerdo, mas não foste rio abaixo
como eu temi e tu tanto gritaste: socorro, salva-me ou digo que foste tu que me
trouxeste.
Ainda me recordo da tua
roupa colada ao corpo e de ter notado que usavas calcinhas pelo joelho debaixo
do vestido.
Se de aqui a nada
recordássemos deste modo, havias de pedir-me: cala-te, não foi para isto que
vim ver-te.
Mas já eu estaria de freio
nos dentes.
Vamos passar o rio,
tinhas-me dito. E eu sempre medrosa, mas sem querer desmerecer, ainda disse: é
perigoso. E tu riste. E fomos. Para onde vamos, Maria do Carmo? e tu sabias
para onde nos levavas.
Mas o limo
escorregou demais nas tuas sandálias que eram novas.
Não, não irei dizer-lhe:
lembras-te?
Maria do Carmo.
Rirá de boca escancarada de estarmos lembrando aquela coisa ignara de que nunca entendemos o préstimo: óleo
de fígado de bacalhau tomado em obrigatórias colheradas.
Quando ela chegar, será
disso que falaremos.
Olho o relógio e olho a porta.
Acaba de entrar uma senhora de cabelo branco com uma echarpe colorida a rodear-lhe o pescoço. Tem óculos muito negros que tira para olhar em roda.
Acaba de entrar uma senhora de cabelo branco com uma echarpe colorida a rodear-lhe o pescoço. Tem óculos muito negros que tira para olhar em roda.
É ela. Tenho a certeza que
é Maria do Carmo.
A mulher sorri-se e eu
juro que é de ter visto a flor vermelha sobre o livro que coloquei aqui na
mesa.
No relógio que está por
cima do espelho, os ponteiros ficaram parados nas três horas e trinta
minutos, e eu estremeço, e já a mulher se debruça sobre a mesa e nem pergunta. Sorri-se, apenas, e nem fala, Maria do Carmo murmura: és tu a
minha parceira de carteira. E eu não lhe sinto odor de perfume,
e ela não tem batom, nem verniz nas unhas, e traz sapatos
rasos e uma blusa simples de algodão rosado.
Enquanto se senta, noto que
não tem sinal de calcinhas por baixo da saia muito justa em xadrez cinzento.
Maria do Carmo, que nem
pergunta. Mal se senta, ela diz-me, debruçada sobre a mesa, um sorriso radioso a inundá-la:
queria tanto saber se ainda cheiras aquele cheiro. O teu corpo cheirava todo a esse cheiro que ainda hoje guardo, naquela tarde em que parti o pulso.
Maria do Carmo.
* verso do poema "Não é fácil o amor"de Luís de Andrade, musica e voz de Janita Salomé no álbum "Cantar ao sol " por sugestão amável do Joaquim
1 comentários:
Se não é isto "corrente de consciência"... Muita coisa conjeturamos quando tentamos saber sem dados. Neste caso, entremeando com uma viagem à juventude ficcionada. Maria inconfundível.
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