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segunda-feira, 25 de julho de 2022

Ponto de encontro

 

O tempo era de liberdade. O regime autoritário e conservador de décadas caíra dois anos antes. Cada um entendera os novos tempos segundo as suas aspirações. Alguns chamaram-lhe libertinagem e advogavam travagens sociais, depois das políticas.

Para Marco, acabados os fulgores da utopia revolucionária, era tempo, sobretudo, de continuar a aproveitar o relaxamento do controlo social e das regras morais apertadas de antigamente. Gostava da legitimação que lhe dava a expressão “Tirar a barriga de misérias”. Resumindo: desfrutar os prazeres da libido, tanto quanto sabia. Tanto quanto conseguia. E diversificando, sempre que possível.

Várias linhas longitudinais paralelas no interior do cinto, como mapa ferroviário, só esperavam receber nomes femininos para começar a ser marcadas com estações e apeadeiros, como as outras mais próximas da fivela.

No vigor dos seus 28 anos, o único problema era o da oportunidade, ou antes, o da capacidade de criação de novas oportunidades. Porque, mais do que acrescentar marcas, o objetivo inconfessado era gravar mais e mais novas linhas.

Certa manhã de domingo, o telefone acordou-o com um convite de saída: Etelvina ia sair com uma amiga e o namorado dela e… faltava um.

Boa! A que horas me vêm buscar?

A linha de Etelvina já contava com quatro ou cinco estações, mas, na altura, Marco estava sem carro; já era bem bom conseguir marcar mais uma estação, mesmo que não fosse numa linha nova.

O namorado da amiga tinha um grande carrão e, depois de um passeio pela serra da Arrábida, levou o grupo para uma pequena vivenda para os lados da Lagoa de Albufeira. Um gira-discos criou o ambiente propício para dançar. Apesar de se sentir a falta da potência do som e da vozearia das boites, foi-se criando boa disposição e até algum enleio de sedução que Marco terá insinuado e Marília, a amiga, terá apreciado.

A batida animava, os olhos claros e o volume de outros encantos do novo conhecimento ajudavam ao empolgamento de Marco, pela perspetiva de nova aquisição ferroviária; perdão, sensual. Ambos tentavam fingir que a interação era a normal num pequeno grupo de amigos, animado pela dança, mas se Etelvina via com razoável conformismo a possibilidade de troca, o namorado de Marília já não estava a gostar da brincadeira. Afinal, o carro era dele, a casa era dele, e fora ele que trouxera a mais apetecível sobremesa. Resolveu esclarecer que o encontro era de divertimento entre amigos e não de troca de casais. Por outras e conciliadoras palavras. Mas sem margem para evasivas.

Sem problema. Cada um dos aspirantes a promíscuo mostrou-se muito humilde e cumpridor do status instalado, mas estava só a adiar o que ali apetecera. Nessa noite tiveram de se contentar com o prato do dia, mas já com água na boca para o sabor que se esperava sofisticado das iguarias que se adivinhavam. Mas que não perdiam pela demora.

No dia seguinte, Marco combinou um almoço com Marília no “Ponto de encontro”, um restaurante em Alvalade.

Já tinha uma partida de ténis marcada para esse dia, o seu próximo dia de folga, mas não quis arriscar um adiamento do almoço. Havia que soprar na brasa enquanto estava acesa.

Ainda pensou tentar alterar o ténis, mas achou que a boa disposição que o exercício físico lhe transmitiria seria uma boa garantia para uma companhia divertida e enérgica. Além disso, duas horas e meia chegavam para as três partidas do costume. Dava mais que tempo.

No dia da possível inauguração da nova ferrovia, a primeira partida decorreu bastante disputada, mas Marco ganhou-a. A segunda foi para o colega, com alguma facilidade. A terceira, a decisiva, foi outra vez renhida. Foram a tie-break por várias vezes.

Esses prolongamentos eram bem-vindos, mas começavam a preocupar Marco, que via a hora marcada com Marília a aproximar-se perigosamente. Eram tempos muito anteriores aos telemóveis; não podia avisar que talvez chegasse atrasado. E não tinha coragem de pedir ao amigo para deixar o encontro a meio, ele que, mais uma vez, o tinha ido buscar à porta de casa. Decidiu que, se chegasse atrasado, pediria desculpa pelo atraso e tudo ficaria bem. Como era frequente no emprego.

A ganhar por 6–5 e a servir para match-point, Marco bateu potente e colocado. Se ganhasse aquele ponto, ganhava o encontro e ainda conseguiria chegar a horas ao almoço. O amigo defendeu o serviço com dificuldade e em desequilíbrio. Era o fim, felizmente. Calculou Marco e sentiu-o dolorosamente o adversário, que viu a sua bola seguir baixa a dirigir-se para a rede. Caprichosamente, talvez até por alguma ajuda da brisa, a bola bateu na parte superior da rede, subiu talvez meio metro, caiu ainda sobre a aresta da rede e… tombou para o campo de Marco, que corria desesperado.

«Azar ao jogo...», pensou, a tentar confortar-se. Na prática, aquele ponto perdido exigia prolongar o encontro por, pelo menos, mais duas bolas. Para seu maior constrangimento, o amigo empatou a partida e foram novamente a tie-break. A diferença abismal de ânimo dos jogadores ditou o resultado final. A Marco já não interessava ganhar nenhuma bola. Avançou decidido para a derrota.

Em vão. Quando chegou ao restaurante, passava meia hora do combinado. Afogueado, percorreu as salas, na expectativa, à entrada de cada uma, de encontrar Marília sozinha numa mesa, mas não estava. A boa disposição física esmoreceu até se transformar em cansaço e apatia. Abusara da sorte.

Nos dias seguintes, telefonou várias vezes para a casa de Marília, mas a mãe dizia sempre que ela não estava. Viu-a vários meses depois, num dia de folga em que, já com carro, foi passar o dia à praia do Meco. Vinha a caminhar pelo areal com um pequeno grupo de rapazes e raparigas, que seguiram, enquanto ela parou a cumprimentá-lo. Ambos nus, como quase toda a gente naquela praia de nudistas, mas sem desfaçatez para se desfrutarem, ao menos, com o olhar, deram os dois beijinhos da praxe, trocaram três trivialidades e seguiram.

«Aquele ponto...», amargurou-se Marco. Ali terminava o projeto de uma linha que, sem estações nem um mero apeadeiro, não chegara a ter movimento. Só a mudança de agulha de uma automotora que, reluzente, ainda se divisava ao longe.

Joaquim Bispo

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Imagem:

Claude Monet, Gare Saint-Lazare, Chegada de um comboio, 1877.

Museu de Arte Fogg, Universidade de Harvard, Cambridge, USA.

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