– Continue – pediu
II
Na próxima terça-feira eu voltarei e terei
muito mais a revelar. Proferindo a frase de despedida, era sempre ela quem
punha fim àquelas longas sessões.
Partia,
deixando no ar um aroma indescritível que despertava nele algo além de sua
compreensão, tornando a cada dia mais difícil a sua isenção em relação a ela.
Na semana
seguinte, ele era exposto a uma verdadeira sessão de suplícios, que se tornava
mais perversa a cada vez, quando coisas inconfessáveis eram trazidas e
apresentadas como uma ferida exposta, sem que ele nada pudesse fazer para
impedir. Era parte de sua profissão.
Naquela
tarde, depois de ela ter saído, o som de seus passos ainda permaneceu por um
tempo ecoando na cabeça daquele homem. Seu relato fora particularmente horrendo
dessa vez. Ele, quase como um voyeur,
revivia a cena à medida que ela narrava. Ela, resgatando antigas práticas
narrativas, prendia-lhe a atenção de um modo quase mágico. Como num transe,
comungavam, ambos, da experiência que ela trazia, numa bandeja. Ela, livre e
impune, obtinha um perfeito ouvinte para as suas mórbidas confidências. Ele,
maldito, condenado, por mecanismos éticos e legais, a ouvir sem interferir ou
julgar. E, no caso dela, sem poder impedir que ela repetisse as atrocidades que
narrava minuciosamente a cada nova visita.
Sem o poder de
revelar a ninguém o que ouvia semana após semana, ele embarcara numa viagem sem
volta, à mercê de um louco timoneiro que o torturava de forma incessante.
–
Sabe por que eu lhe conto tudo isso? – ela acariciava o lugar onde estava
sentada, enquanto lançava a ele um olhar lascivo. – Porque você não pode fazer nada comigo.
Levantando-se
de um salto, invadiu o espaço que os separava, e falou, num tom baixo, porém
hostil: – Em você eu me vingo de todos
eles.
A respiração
dele tornara-se tensa, e gotículas de suor porejavam em sua testa quando ela
partiu.
IV
No início , o que mais lhe chamara a atenção fora
a barriga saliente da mulher . Apesar
de ela jamais
haver mencionado a gravidez ,
ela era
evidente , o que
conferia um tom
ainda mais
insólito a tudo
o que ela
narrava.
Os detalhes mórbidos ,
o prazer sádico com que se
detinha nos pormenores ,
tudo tornava seu
papel ali mais difícil . Inútil , até . Jamais a poderia
ajudar , inclusive pelo fato de ela não manifestar qualquer resquício de remorso .
Na única vez
em que
esboçou uma pergunta , ela
simplesmente se levantou e partiu, só retornando duas semanas
depois . Temendo perdê-la, decidiu que não mais faria perguntas .
Limitava-se a ouvi-la. – Acha que mereço
alguma penitência ? – brincava ela . Ele
ouvia-a, sem interferir .
Sabia que sua
posição não
lhe permitia julgar ,
e muito menos
punir . Os únicos
limites que
jamais poderia
transpor eram o do sigilo
e o da interdição . Sim ,
porque aquela criatura
lhe atiçava os desejos
mais recônditos ,
os desvãos mais
sombrios .
À noite , sonhava com
ela e sua
bela e imponente
gestação a lhe
ofertar o milagre
da vida e as delícias
da fêmea . De dia ,
mantinha-se sublimado, realizando-se nas picantes
e sangrentas narrativas com que ela o brindava compulsivamente .
Não a podia dispensar
– fizera um juramento ,
afinal – nem
desfrutar de seus
atrativos .
Precisavam,
simbioticamente, um do outro . Parasitas
mútuos . Ela ,
protagonista de um
espetáculo atualizado a cada
semana, tinha nele uma plateia atenta e fiel . Ele , inabalável
em suas
convicções , tinha
nela seu maior
termômetro . Era
testado a cada vez .
As histórias se foram sofisticando. A Sherazade-psicopata
contava-lhe agora minuciosamente
os suplícios a que
submetia os homens que
dela se aproximavam.
Num dia , a curiosidade ,
disfarçada de preocupação , falou mais alto , e ele teve a coragem de perguntar como ela conseguia parceiros
com tanta
facilidade , dada
a avançada gravidez .
Ela riu-se, divertida, e levantou o vestido , mostrando a almofada
com que
simulava a gestação . A tática , segundo
ela , desarmava
os homens , capazes
de lhe subestimar
a força , julgando-a grávida. Não eram capazes ,
contudo , de frear
seus impulsos ,
respeitando a vida que
supostamente lhe
pulsava no ventre . Ao aceitarem profanar o corpo grávido,
selavam sua sentença
de morte , irreversível ,
mesmo quando
a verdade era
revelada.
Provavelmente,
aquilo tudo era resultado de algum estupro . Apenas algo tão
aterrador seria capaz de fundir
vida e morte ,
fazendo-a passar por uma mulher grávida para , impiedosamente ,
tirar a vida .
Sou uma ceifadora, dizia. A cada
miserável que
mato , limpo
o mundo para
os filhos que terei um dia . Você me acha louca , não é? – ele nada
respondia, e, unindo os dedos das mãos , pensava em
um modo
de pôr fim àquele suplício .
Era quase
omissão . Não
havia projeções ou
sublimações que
dessem conta do que
se passava ali . Ela
torturava-o cruelmente , inoculando nele um veneno e
sabendo-o proibido de provar
do antídoto .
V
MISTERIOSO
CRIME INTRIGA POLÍCIA CARIOCA. Uma mulher, de aproximadamente trinta anos, foi
encontrada morta na madrugada de hoje em um hotel de luxo da orla carioca. As
circunstâncias da misteriosa morte ainda não foram divulgadas. A polícia já
descobriu que os documentos da vítima eram falsos, além de uma barriga postiça
encontrada no local, o que gerou a abertura de inquérito.
Alguns
funcionários do hotel já prestaram depoimento. O recepcionista informou à
polícia que ela às vezes se hospedava no local, sempre com o mesmo nome. Como
ela parecia estar grávida, não levantava suspeitas por parte dos funcionários.
Dizia que morava em outra cidade mas que estava sempre no Rio a trabalho.
Ela sempre me pareceu muito distinta.
Chegava no meio da madrugada, mas era porque tinha reunião de manhã cedo. Como
eu ia saber que ela não estava grávida? – alegou o gerente, que disse ainda
temer uma repercussão negativa para o hotel, conhecido pelo alto nível de sua
clientela.
O delegado
responsável pela investigação tenta agora estabelecer possíveis relações entre
o assassinato da mulher e alguns crimes ocorridos nos últimos meses, cuja
principal suspeita era uma mulher grávida, de identidade desconhecida, de
acordo com denúncias anônimas recebidas pela polícia.
VI
De manhã,
tomava calmamente seu café quando se deparou nos jornais com a notícia da morte
da enigmática mulher. A prostituta que fingia estar grávida para assassinar
seus clientes havia sido silenciada num hotel. Aliviado, sorriu. Jamais traíra
seu juramento, mas ainda assim a saga de crimes chegara ao fim.
Olhando o
diploma pendurado na parede, percebeu que isso também significava o fim de suas
sessões mais interessantes, do ponto de vista científico. Sua pesquisa sobre
psicopatas teria de esperar. Deitou-se no divã, buscando vestígios do perfume
dela. O rastro deixado por ela não se apagaria tão facilmente.
Desmarcou as
consultas do dia, e trancou o consultório, não sem antes examinar a bela
coleção de facas recém-adquirida. Hoje era terça-feira.
8 comentários:
Nossa, Tatiana!
Um conto denso, misterioso. Durante a leitura pude imaginar mil interpretações, inúmeros caminhos. E o final ainda me surpreendeu. Imaginei o tempo todo ser um prisioneiro, rs!
Muito bom.
Beijos,
Lohan
Obrigada, Lohan!
Até o último minuto não sabia se seria um padre ou um psiquiatra. Mas optei pelo último, por causa do final aberto...
Que desespero deve dar num psiquiatra de ouvir coisas horrorosas e não poder fazer nada, viu! Uma psicopata sensual. Gostei. Final que permite pensar tudo. Posso imaginar que foi ele quem a matou? Falar ele não podia... Mas e matar? Possibilidades! Amo isso de imaginar finais!
Grande conto! O final aberto coloca o leitor para trabalhar. Pra mim, foi o psiquiatra mesmo. Parabéns por mais um conto instigante, Tatiana!
Desta vez, um texto de ficção elaborado. Com sangue. De que não necessitava para prender o leitor.
Calculo que as denúncias anónimas à polícia foram feitas pelo psiquiatra, mas a coleção de facas parece-me um corpo estranho que não se liga com nenhuma pista anterior. É improvável, pelo texto, que tenha sido ele o executor. Talvez tencionasse sê-lo, em breve, talvez se vá suicidar. Jamais saberemos.
Ok!
Caramba, um padre!
Eu imaginei o tempo todo que fosse um presidiário. Imaginei as visitas, o ''não poder tocar'', aquela coisa toda... E a mulher instigando o presidiário, a cada visita; ele se reconhecendo nela, ao mesmo tempo, e tudo mais... Show!
E quem garante que ele não enlouqueceu e não tomou o lugar dela, para preencher as terças, agora sem ela?
Obrigada pela leitura e pelos comentários.
Postar um comentário