André de Leones
Rocco, 2013
318 p.
R$ 34,50
Assim
que acabei de ler, pousei o livro nas pernas. Olhei para a capa por
um minuto, talvez nem isso. Estava num local público, a trabalho
(mas numa situação em que podia pôr minha leitura em dia). Depois
desse intervalo de silêncio, senti-me tentado a compartilhar com
alguém. Escrevi numa mensagem de celular, para contar a uma pessoa
querida, que sabia o que estava lendo.
Terminei de ler
Terra de casas vazias. Muito bem escrito. Um rico universo
psicológico. Personagens bem construídos – que vivem numa espécie
de silêncio social difícil de romper. A narrativa acontece muito no
imaginário de cada um deles, atravessada pelo peso da solidão em
que se vive, por perdas irrecuperáveis, mas por uns fios de
esperança também: a possibilidade de existir, viver e cruzar
desertos (físicos, como Brasília, um hospital, Israel; e íntimos,
como a separação, a doença, os traumas e a morte). Ótimo romance.
Mesmo.
O
romance é dividido em cinco partes, com uma brevíssima sinopse
abrindo cada uma.
“A primeira parte deste romance é também intitulada Terra de
casas vazias e se passa em
2009. Nela, encontramos Arthur e Teresa. Eles vivem em Brasília.
Tentam lidar com uma grande perda. No final, decidem fazer uma
viagem.
“A segunda parte de Terra
de casas vazias é
intitulado Miastenia.
Continuamos em Brasília, agora na companhia de Aureliano e Camila. A
pedido de Camila, Aureliano parou de fumar.
“A terceira parte de Terra de casas vazias é intitulada
Presente contínuo. Ela se passa em meados de 1986. A
pequena cidade de Silvânia, no Centro-Oeste do Brasil, é o cenário.
Arthur vive ali com seus pais, e recebe a visita de Aureliano.
“A quarta parte de Terra de casas vazias chama-se A
inutilidade. Nela, somos apresentados à mãe e às irmãs de
Aureliano e viajamos por São Paulo e Goiânia. A mãe se chama
Isadora e as irmãs, Maria Fernanda e Marcela. Marcela é escritora
e, anos atrás, esteve internada numa clínica, onde conheceu
Nathalie.
“A quinta é última parte de Terra de casas vazias é
intitulada Mar Morto. Acompanhamos Arthur e
Teresa em sua viagem a Israel e reencontramos Marcela e Nathalie em
Jerusalém. Ao final, lemos um conto de Marcela, passamos rapidamento
pelo apartamento de Aureliano e Camila em Brasília e em seguida
descemos ao Mar Morto com Arthur e Teresa, e o romance termina.
Em algumas entrevistas sobre este e outros livros, André de Leones
diz que esta é uma “narrativa pretensiosa”, diferente de suas
outras anteriores, onde apresenta um estilo mais cinematográfico e
ágil. Desejoso de que este fosse mesmo de ação mais lenta,
mergulhou na pesquisa dos romances psicológicos, nos clássicos do
século XIX e XX. Parece-me ter sido feliz nesse ponto.
A leitura desse romance contrariou muito positivamente minhas
expectativas (de modo geral, não as crio antes do final da primeira
página). Entendi-o, se ainda é possível esse tipo de
classificação, como um romance psicológico: o tempo é
difuso, a ação em alguns pontos é anulada e a imersão da
narrativa se dá para o imaginário dos personagens. Longos trechos
passam inteiros, ou quase inteiros, na reflexão dos personagens
sobre as coisas, os sentimentos, a auto-imagem, os eventos passados,
as instituições, Deus, os lugares e as impressões que eles lhas
causam. Esse transbordamento da imagética para o espaço físico
cria uma bonita construção do ambiente: todos os lugares são
desertos. Bonita, e às vezes asséptica, livre de sentimentalismo. O
autor narra a existência desses desertos como uma constatação.
O fio condutor, a história que “acontece” no romance é a viagem
do casal Arthur e Teresa, de Brasília para Jerusalém, seu contexto
e suas implicações, para ambos os personagens. Como se pode supor,
há uma tristeza longe de ser melancólica, que perpassa suas vidas e
suas maneiras de ver e perceber o mundo. Tudo motivado pela perda
irrecuperável de um filho. Com isso, outras histórias se desdobram
para conhecermos esse contexto, e a transversalidade desse sentimento
nas vidas de outras pessoas, mais ou menos próximas, desse casal.
Assim também sabemos dos seus dramas, as suas perdas, os seus
desertos. suas viagens, e suas mudanças geográficas que representam
(será? não fiz nenhum esforço exegético nessa leitura) o
transcorrer da vida, dos fluxos da vida, e a travessia desses
desertos, e o que se encontra depois da travessia.
Terra de casas vazias é uma leitura mais que interessante
para quem pretende começar por algum lugar na literatura em prosa
brasileira contemporânea. Segue um excerto da primeira parte – não é para exemplo, mas
pode-se perceber muito claramente o tom e a forma empregadas por
André de Leones.
__________
Garoava quando Teresa deixou o
prédio. A visão através das lentes dos óculos escuros
impossibilitada em questão de segundos, o mundo mais e mais embaçado
e disforme. Esperou até que tudo se transformasse em um borrão para
tirar os óculos e encaixá-los na blusa, junto ao pescoço. Não
precisava deles, na verdade. O dia tão escuro. Em seguida, cobriu a
cabeça com o capuz, colocou as mãos nos bolsos da blusa de moletom
e saiu pela calçada. Uma adolescente cabulando aula. Dia útil para
os outros, não para mim. Seus passos eram incertos, como se tivesse
bebido um pouco, e caminhava olhando para o chão, com medo de
tropeçar no pavimento cheio de buracos, rachaduras, poças d'água,
entulhos. Estava agora a favor do vento, o que não era ruim. O vento
investia contra as suas costas e era como se a empurrasse. (Veja: sem
raizes aqui.) À esquerda, do outro lado da rua, as árvores do
parque ainda se dobravam. Lembravam pessoas se alongando antes de
correr num domingo ensolarado. Evitou olhar para as árvores. A mesma
sensação desoladora que tivera ao observá-las pela janela da sala,
de que elas migrariam a qualquer momento. Não queria vê-las ir
embora. Ou talvez elas apenas se dobrassem até quebrar. (Tudo se
dobra e vai ao chão num estrondo, de um jeito ou de outro, mais cedo
ou mais tarde.) Não queria vê-las se dobrando até quebrar. Não
queria ver nada, mas um trecho menos acidentado da calçada permitiu
que levantasse a cabeça. A cidade ao redor com que interditada,
ninguém à vista. O cenário desolado de um filme apocalíptico. O
mundo acabou: agora, podemos viver. Mas não havia ruínas. Os
prédios, inteiros, se repetindo a distâncias regulares. Brasília,
ora essa. Tudo em Brasília se repete a distâncias regulares. Fim do
mundo, mas um apocalipse higiênico que extinguisse a vida humana,
não as edificações. Todos os apartamentos vazios, como os de um
prédio terminado e nunca inaugurado. Silenciosa e tranquila terra de
casas vazias. Por alguma razão, isso lhe pareceu justo. Deus estala
os dedos e desaparecem os seres, deixando os prédios intactos:
concreto deiforme. Justo e agradável, sim. Glória a Deus nas
alturas. Ao Senhor, que matou o próprio filho e também o meu.
Também o meu. Respirou fundo. Não se sentiu melhor. Qual é a porra
do Seu problema? Arrancando os filhos de suas mães. Disseram a ela
que não pensasse nisso. Não pensasse nessas coisas. Não pensasse.
Todos, sem exceção. Mas como não? Quando a falta é o que há.
Quando tudo se reduz à ausência. Creio Em Deus Pai Todo-Poderos
Criador Do Céu E Da Terra E Em Jesus Cristo Seu Filho Ungênito
Nosso Senhor etc. Seu
Filho Ungênito.
Tenta não pensar nisso, disseram. É difícil, quase impossível.
Mas tenta. Para não enlouquecer. Para se recompor. Para seguir em
frente. Você e Arthur. Ele precisa de você. Que infantil, ela
penso. Tudo, tudo isso. Do começo ao fim, afora e adentro. Pensar ou
não pensar, seguir em frente ou não. Que besteira, que.
Tropeçou.
Uma rachadura na calçada, o tropeço e ela caindo de joelhos, as
duas mãos ainda nos bolsos. Soltou um gemido, a boca mal se abriu.
Não doeu com a testa no chão por muito pouco. Levantou-se com
dificuldade. Dois pequenos rasgos na calça. Os joelhos agora
poderiam enxergar o que estivesse à frente. Dois olhos vermelhos bem
no meio das pernas. O moletom preto, quase não se percebia. Algumas
lágrimas rolaram, poucas. Mais pelo susto. Esperou que o tremor das
pernas passasse. Então, seguiu viagem, mais do que nunca concentrada
no chão.
(Qual é a porra do Seu problema?)
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3 comentários:
Estreou com maestria as resenhas! Uma descrição honesta e apetitosa do livro de Leones. E, coincidência ou não, ambientado, em parte, na cidade onde moro, Brasília. Título e capa são impecáveis. E o conteúdo chama para a leitura. Muito bom, Volmar!
o grande Volmar da palavra! aqui a dizer da palavra de outro de modo apetecível, e eu apenas agradeço.
Excelente resenha! Já havia me deparado com esse livro nas livrarias, mas acabei adiando a compra. Agora tenho um motivo mais para fazê-la logo. Parabéns, Volmar!
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