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segunda-feira, 15 de abril de 2013

maria(s)





Que era uma menina, disse-o a Senhora Benvinda num tom de mágoa:
– Olhe, é uma menina! – e a mulher, a cortar o cordão, quereria avisar da desgraça que sempre se iniciava no nascer de uma filha.
Maria Vasilima.
O pai insisitiu que ela fosse baptizada desse modo desusado.
Um homem de trabalho, Ernesto Demóstenes deixou-lhe esse nome estranho como única herança. Morreu na semana mesma de ela ter nascido. Terá guinado em demasia o eixo da carroça, e foi encontrado falecido debaixo dos legumes e da fruta com que ganhava a vida.
Até ter a idade de levantar-se nas perninhas, Maria Vasilima era apenas uma menina muito morena e muito rechonchuda. Mas a dar os primeiros passinhos, logo mostrou aquele andar muito mais que ser apenas bambado num corpinho sem graça.
Falaria tarde e com defeito no modo de dizer os ésses: cuspia as letras na língua carregada de saliva a espreitar disforme entre os lábios. E pronunciaria mal a maioria das palavras, ou porque as engolia, guturais e roucas, ou porque lhes trocava as consoantes. E, sobretudo, porque nem percebia como havia de empregá-las.
– A Maria é parva!
Diria assim dela o irmão Fernando, filho do Manel Serúdio, que a mãe tinha sido junta com esse homem que morreu tuberculoso. Tinha tido aquele filho, muito antes de Maria Vasilima.
E haviam de dizer que ela era poucochinha. Ou diriam: aquela moça não tem todo o tino.
E haviam de apelidá-la de demente, e ela rindo e babando-se, a segurar uns fios de lã com que gostava de enfeitar-se depois de os aldrabar com as agulhas.
– Estou a fazer malha como as senhoras! – entaramelava a rir um riso de menina tola.
E na idade de ir a uma escola, nunca a aceitariam:
– A menina não tem qualidades – diria a professora.

Maria Vasilima a quem a mãe batia por tudo e por nada, era também sovada pelo irmão.
– Maria, vai buscar vinho! – gritava-lhe ele, e gritava-lhe também a mãe.
E ela demorava-se. Ficava pelas tabernas.
Os homens ofereciam-lhe rebuçados.
– Queres chupar, Vasilima?! – diziam-lhe, e riam-se, alarves.
E ela que já adulta seria sempre uma criança, não entendia.

Se nem tinha entendido quando o irmão se escarranchou em cima dela, ainda mal tinha a idade de ter sido senhora. E nem gritou a dor que sentia, que a não deixavam as manápulas dele a taparem-lhe a boca. E se não morreu dessa vez a desfazer-se em sangue e lágrimas, também não morreria quando o velho Pascoal a recostou nas redes que remendava às tardes. A ela pareceu-lhe até que o homem lhe ia contar um conto, e Maria Vasilima tinha esse gosto de ouvir contos. Mas o velho nem disse uma palavra, e tratou-a como ela via os cães fazerem com as cadelas. E ainda lhe descoseu a saia, o que lhe valeu uma sova com o cajado como a mãe fazia quando o irmão vinha bêbado ou não lhe entregava a féria.

A mãe de Vasilima guerreava muito.
– Andas por aí a beber e a dar-te aos homens – dizia – és a minha vergonha.
Que os homens ofereciam-lhe:
– Queres um rebuçado, Vasilima?!



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8 comentários:

Eu leio você voltando nas frases para me deleitar e demorar a chegar ao fim. Que triste realidade de Maria Vasilima! Acho que essa sina universal de as criaturas puras, inocentes ou com problemas mentais serem atacadas por essas bestas (que esses não são homens) é um dos piores oesadelos da humanidade! Incesto, estupro, violência. Tristemente maravilhoso!

Adorei rever o texto e já tive oportunidade de o dizer... Merecia ter este tratamento,já que este sitio é merecedor de credebilidade.
Bem Haja... Réjo Marpa

Mais uma história dorida de gente simples, que, nem por isso, deixa de ser sórdida.

Três sugestões de afinamento, que a altura da tua fasquia já exige muito:
– «– Estou a fazer malha como as senhoras!» é uma declaração muito escorreita, nada entaramelada da "poucochinha". Talvez pudesses "entaramelar" a ortografia e a sintaxe da frase.
– A narrativa termina de forma abrupta, como um conto meio escrito. Talvez pudesses acrescentá-lo ou, pelo menos, dar-lhe uma finalização mais conclusiva.
– Vasilima é um bom nome para rebuçados, soa a fresco, mas acho que não te referias à marca, quando falas em chupar Vasilima, ou rebuçados Vasilima. :)
(Para os não escritores: deve haver uma vírgula antes do nome da pessoa que se interpela.)

Joaquim
Um dia, tiraste-ma e desde então retirei-a
Assim: Maria, vai buscar vinho.... e tu cortaste-a
Sempre a tinha colocado, e torno, e não volto a deixar de separar o nome vocativo

o término de forma abrupta é discutível...
o resto ponderarei,mas tendo a estar de acordo
muito te agradeço, como sempre

Eh, pá, não me lembro disso, mas é bem possível! A realidade, às vezes, altera-se-me... :) Em que conto foi? Se for o caso, as minhas desculpas.

Fátima e Joaquim, vocês são pândegos! rsrs Fico de cá só me divertindo!

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