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quinta-feira, 18 de abril de 2013

O PULO DO GATO


Otávio Martins

   Já se viu de tudo neste mundo. Mas, essa do Tininho, é de tirar o chapéu. Tratando-se do Tininho, nada demais. Porém, do jeito que aconteceu, como lhes vou contar, pode-se considerar uma inovação na atividade da gatunagem. Gatunagem, não só pela característica do silêncio do gato, mas, também, que sempre dará a impressão do seu último pulo. Nada disso. Sempre terá o próximo e, será, sempre, o pulo do gato; para ser claro, o penúltimo.
   Tininho estava desesperado, o prazo. O último, sem mais delongas, ás oito horas da noite. Sabia que, se não comparecesse, conforme o combinado, a barra iria pesar para o seu lado. Sem grandes perspectivas, comentou com os seus dois amigos – na verdade, comparsas – “... é... desta vez eu não escapo...”. E seguiram rua acima.
   Dona Carmelita, mulher de fé, amiga de anos do Tininho, nem deveria andar com aquele dinheiro todo na carteira. Dia do seu pagamento. Se bem que saiu do banco e veio direto pra casa. Nunca comentou em que dia recebia a sua aposentadoria.
   A alguns metros antes, Tininho percebeu, não só pelo traje, mas, também – objeto que fazia parte do seu universo – o esforço da Dona Carmelita para assegurar-se que, daquela maneira, estaria protegendo a pequena carteira, na qual havia acomodado todo o seu benefício, um salário mínimo. Nunca fizera empréstimos ou coisa parecida. Costumava pegar todo por inteiro. Nada de descontos consignados. Mantinha os seus gastos, pequenos fiados, algum biquinho aqui e ali. Irrelevantes, comparados com o valor total da sua aposentadoria. Enfim, uma pessoa, financeiramente, equilibrada.
   O plano surgiu assim como aquela inesperada circunstância. Nem tempo para cálculos. Foi coisa quase natural, espontânea:
   - Quando eu trombar na velha, vocês saiam correndo, à toda.
   Dito e feito.
   Dona Carmelita, sentindo certo alívio e a sensação de estar protegida, ao perceber a presença do Tininho - como quem estivesse chegando - logo a seguir, descontando os gestos lentos, por causa da idade, talvez, comunicou:
   - Tininho, aqueles dois levaram a minha carteira.
   - Deixe que eu pego eles... Não vou deixar barato. E saiu no encalço dos dois.
   Logo ao virar a esquina, deixou passar alguns minutinhos, voltou com a carteira à vista.
   - Nem precisou, acho que perceberam que eu estava no encalço e jogaram pra trás.
   Entregou a pequena carteira à Dona Carmelita – que manifestou a sua gratidão – e saiu rapidamente para o encontro das oito. Antes, passou num daqueles bares do caminho, tomou uma cerveja acompanhada de um tira-gosto. Parecia ter-se safado, mais uma vez.
    No dia seguinte, à tardinha, quando Tininho ia passando pela casa de sua amiga, a Dona Carmelita, como era de costume, convidou-o para tomar o café preto com pipocas, recém feitas, quentinhas, ainda. Dona Carmelita, quase num lamento, contou pro Tininho que ficara mais sentida, era pelo fato de que o dinheiro que aqueles dois ainda tiveram tempo de tirar de um dos compartimentos de sua carteira – 150 reais – era, justamente, o que ela havia separado e reservado para lhe dar de presente pelo seu aniversário. Prometeu que logo, logo, assim que pudesse, voltaria a separar um troco pra ele.
   Depois dessa, o que terá se passado pela cabeça do Tininho, hein?

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3 comentários:

Curiosa a associação entre gato e gatuno. Nunca me ocorreu.

Eu construí em mim o conceito de conto lendo contos americanos. Habituei-me portanto a narrativas de realidade enriquecida que construíam uma situação de tensão, e que habitualmente sofriam uma reviravolta espetacular. Quando tomei contacto com Tchékov, estranhei a narração calma, de realidades prosaicas, sem finais surpreendentes. As suas narrativas, Otávio, fazem-me lembrar Tchékov. A história desenvolve-se duma maneira natural, mais parecida com as realidades quotidianas. Muitas vezes termina sem espetacularidade, mas aprecia-se a naturalidade, como seria contada por uma testemunha.

Joaquim, talvez esse meu jeito de escrever (desculpe, eu nunca li Tchékov) venha, justamente, do quotidiano, de mero "observador".
Confesso que já testemunhei muita coisa por esse mundo afora. Lembrando, vou tentando contar. Do meu jeito.
Um grande abraço (vou lendo, devagar, os seus textos), Otávio.

Realidade passada,por Dona Carmelita passada,que certamente deixou Tininho passado,por tudo o que se passou... Maneira suave de contar uma brutalidade... Gostei! Réjo Marpa

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