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segunda-feira, 22 de abril de 2013

Azaleia para erva de passarinho

Não, ela disse, firme. Ele não entendeu. Ou não ouviu. Ou apenas ignorou. Ele estava lá desde o início, desde os primeiros dias. Dessa vez, assim que ela saiu da barriga da mãe, ele plantou-se ao seu lado, como erva de passarinho. Acompanhou, assombrou, atormentou, odiou, feriu, vociferou, aprendeu, aprisionou, amou, chorou, rezou, doeu, debochou, perdeu os pedaços, sempre ali, colado à sombra dela.

Não, ela suspeitou, quando começou a reparar ao redor e por dentro de si vestígios do improvável. Ele teve as primeiras pistas de que aquela era a pessoa certa, de que havia encontrado quem esteve tanto tempo à procura e exultou. Planejou, calculou, cercou o tempo e insistiu em fazer-se notar. Conseguiu.

Não, ela repetiu, quando passou a sentir a presença dele, primeiro aos domingos à noite, depois com mais frequência entre momentos de ócio, até que em todas as ocasiões, especialmente durante o sono. Ele desenhava labirintos mentais com maestria e, quando sedutor a atraía, quando furioso a forçava a andar por caminhos movediços, cobertos de cinzas de passado.

Não, ela gritou, em cada vez que ele se materializou nos corredores da casa, no canto do quarto, na fresta da porta aberta. Depois de alguns anos, ele entendeu que quanto mais perto chegava, mais fácil era manipular as sensações e os humores, mais matava da própria fome, mais penetrava nas veias, nas entranhas, nas células, nas memórias, nas vontades dela. Sugava a vitalidade e enfraquecia qualquer tentativa de resistência. Era um vício esse do estar junto. Nenhum dos dois sabe exatamente quando o predomínio dele a contaminou, mas aconteceu. É provável que tenha sido assim todas as vezes em que ela perdeu: a honra, o controle, a lucidez, a dignidade, a fé.

Não, ela pensou, com voz atravessada no nó da garganta. Dessa vez, ela estava nessa vida para ficar. Ele sempre ouviu os pensamentos dela. Sacudiu o emaranhado verde de carne decomposta que ocupava o espaço da mão direita, espantando o pensamento como quem enxota moscas inoportunas. As vezes ele chorava arrependido, falava e falava e falava sobre o amor desencontrado e perdido entre nasceres e morreres, encantava com tamanho entusiasmo trechos de história divida que ela acabava assaltada por lembranças. Compadecida e imersa em uma nuvem de quase ternura ela ficava à beira da aceitação.

Não, ela o expulsou tantas vezes para quase morrer de remorso depois. Era praticamente um exorcismo por dia, além de uma série de rituais necessários adotados e abandonados ao longo dos anos. Mas ele permanecia. Houve épocas em que se afastava dois passos, outras em que se camuflava atrás das árvores, as vezes sumia por uma semana ou três. Houve um tempo em que alternava entre meses de silêncio e dias de não arredar o pé. Ele era um susto permanente. E uma companhia para sempre.

Mas, não e não, ela frisava, quando a afeição ameaçava tornar-se mais forte e maior do que o medo, a dúvida, a repulsa. Ele empurrava de um lado, ela respondia empurrando de outro. Cara e coroa, yin e yang, gangorra, vida esvaída no ralo da pia. Ela sempre indagando os porquês, ele sempre dando voltas, mostrando poderes e aparecendo, declarando motivos para todo o resto, menos para o ficar. Os agrônomos explicam que parasitas como a erva de passarinho podem até matar plantas tropicais se retirarem sua seiva por tempo prolongado e que não há remédio para exterminar essa erva daninha senão arrancá-la uma a uma dos galhos. Ela arrancava aqui e ele brotava, novamente, logo adiante.

Não, ela cantarolou ao som de um rock maluco-beleza, que a fazia recordar os espaços de trégua que ele lhe deu na adolescência e na maturidade, quando pôde vibrar e gargalhar e agradecer e amar madrugadas a fio. Quando esteve felizmente só e única. Quando esteve raramente em si. Quando esteve em outra, com outro. Não, aqui não, ela escreveu pelas paredes da casa nova, tentando demarcar fronteiras. Em vão, percebeu em seguida. Não, através de mim, não, rugiu mostrando unhas afiadas quando ele insinuou uma provável continuidade. Ela estava tão ferida e confusa e ferida e confusa, que nem assim seria capaz de amá-lo, de desejar aquela presença sem olhos, de fraldas sujas correndo pela sala. Ela saberia e o recusaria terminantemente. Deixaria de morrer de medo, mas morreria de desgosto. E ela só lhe importava viva. Mesmo que vazia de vida.

Não, ela suplicou, exausta. A pele do corpo inteiro enrugada e frouxa sob um pijama azul. Andava pelas peças da casa, pintava a boca murcha com batom vermelho para sair, mas não cruzava a linha do primeiro degrau, a porta da rua. Enquanto ele esteve ali, e ele esteve sempre, ela andou ao redor de si como os cães fazem atrás do próprio rabo. Não foi longe, não foi a lugar algum. Tomada por medos que ninguém compreendia e forrada de certezas de papel de seda, nem por dentro teve condições de avançar. Ele não tinha olhos e deu-lhe a cegueira de herança. Ela investia, ensaiava corridas para rua, mas paralisava e perdia o rumo. Ela passou a esquecer os desejos que tinha, os telefones dos amigos, os programas de tevê que gostava de assistir, a quantidade de vestidos que havia acumulado, o lugar onde havia guardado as fotos dos seus melhores dias, a cor da tintura dos cabelos, onde teria guardado dinheiro.

Não. Não mesmo, ela sussurrou, sentada na cadeira de balanço deixada por algum parente no alpendre à entrada da casa, distante três passos do primeiro degrau da escada para a rua. Do lado esquerdo, sentado na pedra fria, estava ele bem quieto. Fazia um chuvisco sobre a grama não aparada e ele decidiu tocar no assunto. Porque ela já não tinha mais uma expressão de pavor estampada na testa, porque ela estava sentada ali, serena, embalando a cadeira para frente e para trás, porque ela tinha cabelos grisalhos longos amarrados em trança, porque ela era a mesma, ele resolveu finalmente abrir o jogo. Compreender a razão da presença dele tinha sido a batalha de uma vida inteira para ela, talvez o sentido, mesmo, de manter-se viva apesar dele sobre suas pegadas. Assim como negar foi espada, lança, foice, revólver, cuspe, lágrima, oração, perdão. Estar sempre armada roubou-lhe um punhado de sorrisos e a leveza. Então, ela que sempre foi Azaleia rosada, desistiu.

Não, iniciou aquele ser disforme, translúcido e cansado de insistir, eu não quis te machucar. Eu sempre estive aqui, contigo, porque. Um sorriso de gengivas gastas e o balanço mais forte da cadeira interromperam aquela confissão. Sim, balbuciou ela, eu sei. A cadeira balançou pela última vez. Ele ficou ao lado do corpo frio e inerte até a noite descer. Ele se perdeu.

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
todo dia 22


3 comentários:

Texto inquietante, denso e suspeitadamente profundo. As conjeturas sobre a natureza da presença indesejada serão diferentes de leitor para leitor. Um conto psicológico.

Confesso que li seu texto mais de uma vez. Uma delas, do fim para o começo. Tenho essa mania de tentar entender pela ótica do autor. Mas não acho possível fazer isso aqui. Como disse o Joaquim, a percepção será diferente de leitor para leitor. O texto angustia, depois dá tristeza, em seguida sufoca e, finalmente liberta. Sensações. "Ele" para mim é o Destino. Mas pode não ser. De um jeito ou de outro, uma construção forte, difícil e inteligente.

Obrigada, Joaquim e Cínthia, pela leitura e pelas impressões. Abração! ;)

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