Joaquim Bispo
Um pastiche (do
italiano pasticcio) é uma imitação do estilo de um autor ou artista,
que não visa o plágio, nem
a paródia, nem a caricatura.
Pode-se encontrar em todos os domínios
literários e artísticos.
Preenche várias funções: de memória, de
humor, de homenagem (mais ou menos respeitosa), ou de puro exercício de estilo.
(Wikipédia)
Timandro:
Ora vivam, Íon e Clistes! Há tempos que vos não via. Por onde tendes andado?
Íon:
Viva! Estivemos nas festas do Epidauro, onde pusemos à prova os nossos dons.
Clistes:
Viva!
Timandro:
Ah, sim; ouvi dizer que o concurso de rapsodos é muito apreciado e concorrido.
Também há concurso de aedos?
Clistes:
Sim; e dos mais importantes. Eu concorro sempre.
Timandro:
E que tal vos saístes?
Íon:
Eu venci o concurso de rapsodos.
Clistes:
E eu só perdi para o aedo de Egina. Em onze concorrentes.
Timandro:
Então estais de laurel. Fico muito feliz, por vós. Dizei-me: o que vos fez
enveredar por essas tão belas ocupações? Qualquer um consegue ser rapsodo ou
aedo?
Íon:
Não, de modo algum. É o dom com que se nasce. A excelência que ponho nas minhas
atuações e que faz chorar os que me ouvem é um dom com que nasci.
Timandro:
Ah, sim? Dize-me: já em criança sabias recitar Homero?
Íon:
Sim, mas só pequenos trechos. Aos poucos é que fui dominando a extensa obra do
génio.
Timandro:
Então o dom com que nasceste era pequenino?
Íon:
Sim, posso dizer que sim. Felizmente que o meu tio Perilo era um apaixonado por
Homero e não descansou enquanto não me pegou o gosto. Recitava-me
frequentemente as mais emocionantes passagens da Odisseia.
Timandro:
Queres dizer que se não tivesses um tio que te estimulou o gosto pelas epopeias
homéricas talvez esse pequeno dom com que nasceste tivesse murchado?
Íon:
Nem mais. Estou muito agradecido ao meu tio.
Timandro:
De bem pouca valia é um dom que não se usa. Imagina que nasceste com o dom do
auriga e que o deixaste estiolar. Como saberias que tinhas nascido com ele?
Íon:
Provavelmente, nunca o saberia.
Timandro:
Então, é possível que nasçamos com muitos dons que não desenvolvemos e,
portanto, nem deles tomamos consciência.
Íon:
Assim deve ser, como dizes.
Timandro:
E tu, Clistes, nasceste com o dom de fazer e cantar poesia ao som da lira?
Clistes:
Depois do que disseste, creio que não; só comecei a gostar do fino vibrar das
cordas da lira quando me apaixonei por Magide, filha de Macário. Nessa altura é
que a musa se apoderou de mim.
Timandro:
Então, segundo Íon, não devias ter dom, porque não nasceste com ele.
Clistes:
Tenho, tenho. Componho com facilidade e toco e canto com gosto.
Timandro:
Desculpai, se insisto: esse dom que, de uma maneira ou de outra, tendes é que
vos levou à vitória, mas também trabalhais para conseguir tais êxitos, presumo,
ou o dom é suficiente?
Íon:
Não, eu estudo incessantemente Homero. É preciso conhecer o seu pensamento em
profundidade e não só decorar-lhe as palavras. E recito partes da Ilíada todos
os dias.
Timandro:
Queres dizer que nasceste com um dom que foi sendo aperfeiçoado com trabalho!
Íon:
Sim, pode-se dizer isso.
Timandro:
Então, o que mais contribuiu para te levar à vitória, o trabalho que puseste no
estudo ou o dom?
Íon:
Ambos. O dom com que nasci – ou que aprendi com o meu tio – forneceu-me o
interesse pela representação das epopeias; o trabalho dá-me a competência no
conhecimento de Homero. Mas nada disto seria suficiente para empolgar a
assistência se não fosse o que Clistes já referiu. Aliás, ainda ontem tive esta
mesma conversa com Sócrates que me provou que eu estou fora de mim quando faço
emocionar a audiência.
Timandro:
Sócrates é sábio.
Íon:
Sócrates estranhou que, falando Homero, Hesíodo e outros poetas dos mesmos
assuntos – guerra, relações entre os homens e destes com os deuses, e dos
deuses entre si, e da genealogia dos heróis e dos deuses – eu só saiba falar e
interpretar bem as palavras de Homero e não saiba nem goste de falar dos outros
poetas.
Timandro:
Por que achas que isso acontece?
Íon:
Eu pensava que era porque Homero fala das mesmas coisas, mas muito melhor que
os outros poetas, mas Sócrates convenceu-me de outra coisa.
Timandro:
E o que disse ele?
Íon:
Que se eu sei reconhecer que Homero fala melhor que os outros, mas das mesmas
coisas, eu também deveria saber falar bem dos outros poetas.
Timandro:
Aparentemente...
Íon:
Acontece que não sei falar dos outros e aborrece-me mesmo ouvir falar deles.
Ora, Sócrates diz que isso significa que o que eu digo de Homero não advém de
conhecimento, mas de outra causa.
Timandro:
Sócrates é sábio. Não ignora, certamente, que é possível falar das mesmas
coisas mas de modos totalmente distintos, assim como é possível representar
Zeus como Fídias o fez, ou como o fazem outros escultores menores.
Íon:
E, na verdade, Homero é inexcedível.
Timandro:
Não considerou Sócrates que sempre viveste “rodeado de Homero” e que estudas
Homero afincadamente e não os outros poetas, e que, por isso, é lógico que o
conheças melhor e o prefiras?
Íon:
Não. A interpretação dele é a de que estou possuído por uma força divina,
quando o recito.
Timandro:
Curioso! O caso é tal que seja necessário recorrer a explicações tão potentes?
Íon:
Sócrates diz que a mesma musa que inspirou Homero, quando ele compôs a sua obra,
transmite a sua influência para mim e de mim para a audiência.
Timandro:
A musa! Sócrates é sábio, mas, como ele próprio está sempre a dizer que nada
sabe, é natural que muitas vezes se tenha reconhecido em erro e se precate de
equívocos futuros. De cada vez que oiço invocar as musas como explicação de
alguma coisa humana, lembro-me sempre do mau teatro.
Íon:
Como assim?
Timandro:
As ações de uma peça devem estar encadeadas numa relação de causa e efeito, de
modo que cada uma seja a resultante lógica e necessária dos acontecimentos
anteriores. Uma peça assim encadeada tem verosimilhança – os espectadores reveem-se
nela, como na vida. Uma má peça, pelo contrário, quando não consegue criar
desenlaces consequentes com o nó que a trama enredou, recorre ao deus ex machina, dando um fim abrupto à
história, não congruente com o fio da narrativa, o que desagrada sobremaneira
aos espectadores.
Íon:
A mim agrada-me que, pelo menos em certos momentos, eu seja instrumento do
divino.
Timandro:
Isso evita-te, certamente, seres desafiado por aqueles que são da mesma opinião
que Sócrates. Os que te consideram instrumento do divino poderão travar a
inveja com a desculpa de que não se consegue competir com o divino. Por um
momento, vislumbrei a possibilidade de Sócrates te invejar.
Íon:
Não creio. Mas os teus remoques a Sócrates é que me parece indiciarem alguma
dor de cotovelo…
Timandro:
Sem dúvida! Quem me dera que o meu filosofar tivesse a acutilância e a profundidade
do jeito de filosofar do feioso. Mas, voltando ao nosso tema: e tu, Clistes,
também sentes a possessão da musa?
Clistes:
Compor poesia é deveras misterioso. Não sei onde vou buscar as palavras e as
personagens que me surgem. Acredito que é a musa que mas insufla, como num
sopro.
Timandro:
Dize-me!: surgem-te palavras e personagens desconhecidas?
Clistes:
Não; todas as palavras são por mim conhecidas, mas aparecem-me organizadas de
uma maneira tão sensata e harmoniosa que me surpreendo que tenha sido eu a
gerá-las, naquele encadeamento. Já as personagens são mais difíceis de caraterizar.
Todas elas me são desconhecidas naquela forma.
Timandro:
Naquela forma? Já as conheces sob outra máscara?
Clistes:
Cada personagem parece-me uma mistura de outras, que conheço das epopeias; de
heróis, de deuses, de homens.
Timandro:
Então dirias que elas já existiam em ti, como as palavras que referiste? Isso
significaria que não houve qualquer “sopro” exterior e que tudo é criado no teu
espírito.
Clistes:
Sim, mas, nas formas e atributos com que me surgem, são-me totalmente
inesperadas.
Íon:
Também me surpreendo com as palavras que saem da minha boca, quando estou no
estrado. Sócrates disse que os belos louvores que teço a Homero não são devidos
a uma techné que pudesse ser atribuída ao meu mérito, mas ao privilégio
exterior concedido pela musa; que eu falo sem nada compreender. Senti-me
humilhado.
Timandro:
Sócrates é o mais sábio filósofo da Grécia, o que não quer dizer que não possa
vir a mudar de opinião em relação a algumas das convicções que agora mantém. Há
quem diga que a imaginação é “uma amálgama de perceção e julgamento” e que implica
sempre a presença da perceção. Não aceitas que
a inspiração seja um estado de exaltação emotiva que atinge a alma do poeta que,
qual tecedeira a escolher os fios coloridos de lã para compor tapetes sempre
diferentes, usa um caráter deste, uma fisionomia daquele, um atributo de outro,
para compor uma personagem inesperada?
Clistes:
Assim poderá acontecer.
Timandro:
Esclarece-me uma dúvida que me assaltou agora. Se estivermos atentos e formos
honestos connosco, reparamos que a genealogia dos deuses varia conforme as
regiões, como Afrodite, que para uns nasceu de Zeus e Díone, e para outros é
filha exclusiva de Urano. A questão é a seguinte: nesses teus momentos de
criação, já criaste algum deus ou, ao menos, modificaste os atributos de deuses
ou heróis?
Clistes:
Envergonho-me de o dizer, mas já. Quando não me lembro bem da história de
algum, componho-a com o que me parece melhor. Uma peripécia em que Dioniso é
raptado por centauros foi criada por mim. E já criei um deus – Metaro – que é
filho de Hefesto e que quando quer vigiar os homens incorpora nas estátuas de
bronze.
Timandro:
Era o que eu pensava. Não me custa admitir que Hesíodo é que criou a maior
parte dos nossos deuses. Há um filósofo em Abdera – Demócrito – que diz que não
há deuses nenhuns. No fundo, a nossa vida não se alteraria muito sem a sua
existência. Não há dúvida, no entanto, que tornam a nossa vida menos monótona e
sempre nos sentimos mais acompanhados, que a solidão é funesta.
Íon:
Na verdade; mas cá estamos nós, rapsodos, aedos, poetas, dramaturgos e atores
para tornar a vida mais empolgante.
Timandro:
Por outro lado, há um abismo entre a situação do artista que considera a sua
obra manifestação de uma entidade exterior – e, portanto, nenhuma
responsabilidade e mérito tem nela –, e a situação de outro artista que, atuando
sem o pressuposto de influências metafísicas, considera a obra sua, com tudo o
que isso implica: batalhar por ela, pôr nela todo o seu esforço, não se entregar
à preguiça, sabendo que só o seu trabalho a fará emergir. Agora, dize-me, Íon:
preferes ser o títere manipulado por uma improvável divindade, ou o autor da
admirável arte que move a alma das multidões?
Íon:
Se pões as coisas nesse pé…
*
Fonte (emulada na forma e contestada nas
teses): PLATÃO, Victor Jabouille (tradução), Íon, Lisboa, Editorial Inquérito, Lda., 1988.
* * *
“Íon”, de
Platão
“Íon” é um pequeno livro de Platão (427 a.C.
– 347 a.C.), sob a forma de diálogo. Os personagens são Íon, um rapsodo, isto
é, um artista que vai às festividades de cada cidade, recitando poemas épicos à
população, e Sócrates, o celebrado filósofo da Grécia antiga, especialista em
diálogos argutos nos quais, através de perguntas bem dirigidas, leva o
interlocutor a refletir, a admitir a fragilidade das próprias opiniões, e a
chegar a conclusões corretas, supostamente as teses do próprio Sócrates.
«Nos diálogos ditos socráticos ou da
juventude, de que “Íon” faz parte, Platão transmite as ideias e os métodos
do Sócrates histórico.» «Do ponto de vista literário e filosófico,
são discussões filosóficas com estrutura dramática. Com Platão, adquiriram
o estatuto de género literário independente.»
O tema da obra “Íon” gira à volta da origem
do talento na interpretação, e da inspiração na génese da poesia. Após a
habitual barragem de perguntas, o próprio Íon reconhece que a excelência da sua
atuação se dá por inspiração sobrenatural e não por qualquer arte ou ciência
próprias, aceitando que também a obra do bom poeta tem a mesma origem, o que
menoriza o respetivo trabalho.
Rejeitando a tese do gozo que Platão, em muitos diálogos de juventude, parece ter em «contradizer e ridiculizar as opiniões dos seus
adversários», que explicação haverá para que defenda uma ideia
ultrapassada pela sua época, e que validade terá a questão no nosso tempo?
Segundo Krishnamurti Jareski:
A inspiração do poeta pelas Musas é admitida
sem reservas pela conceção grega da poesia, mas, a partir do «século V a.C.,
podem ser encontradas referências explícitas ao poeta como poietés
(fabricante/poeta), ou seja, possuidor de uma téchne.» «No tempo de Sócrates,
os poetas eram denominados como sophoí (sábios), assim como os médicos,
engenheiros, entre outros, e a habilidade desses poetas era compreendida como
resultante de uma téchne (arte/saber fazer).» «A poesia, assemelhada ao
artesanato, seria o produto final de uma ação consciente daquele que logra o
adequado ajuste de palavras e sons musicais, à maneira de um arquiteto, sendo o
poeta digno de honra e respeito, por conferir imortalidade à glória dos
mortais.»
«A tendência da crescente identificação do
poeta como um technítes não foi capaz de erradicar o antigo retrato da poesia
como uma dádiva divina, e o “Íon” de Platão deve ser visto como uma tomada de
posição do filósofo perante essas duas conceções da poesia, que aparentam ser
antitéticas.» «Platão rompe parcialmente com as tradicionais conceções de
poesia da época» «sustentando a possibilidade de uma ligação direta com as
Musas, capaz de anular temporariamente as faculdades intelectivas do homem.»
A pretensa sapiência dos poetas fora
examinada por Sócrates, confrontando-a com a de políticos e artesãos, que
também tinham reputação de sábios. Verificou, dececionado, que «os poetas eram
capazes de dizer muitas coisas belas, mas eram incapazes de prestar contas do
que diziam, pois nada sabiam a respeito dos assuntos de seus poemas. Falhavam
em interpretar o pensamento (diánoia), que forma a essência da mensagem
poética, o que indicava não ser oriunda de um pensamento inteligente. Sócrates
concluiu que, assemelhados aos adivinhos e aos profetas, os poetas pronunciavam
muitas coisas verdadeiras e belas em suas obras, mas não por sabedoria, e sim
por uma espécie de disposição natural (phýsei), um estado de inspiração.»
O “Íon”, de Platão, põe em relevo a oposição
entre a pretensa sabedoria do poeta e a então nascente sapiência do filósofo.
A sua autenticidade foi posta em dúvida no
séc. XIX. Goethe, em particular, repele a incongruência dos traços dos
personagens: Íon, por um lado, de uma tacanhez inefável e, por outro, um
Sócrates de uma malevolência pouco habitual.
Vincando a atualidade da questão, «a história
da literatura ocidental testemunha o abismo que separa os verdadeiros poetas –
capazes de, eventualmente, aliarem força de expressão a uma imensa facilidade
descritiva –, daqueles cujas criações deixam transparecer o esforço para lograr
fins artísticos preconcebidos.»
*
Principal
sítio citado:
http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/20_KrishnamurtiJareski.pdf
3 comentários:
Joaquim ainda bem que não nasci nem para as artes, nem para a literatura, e que assim posso (?!) diletantar-me de não ter formação de base e nem pachorra hoje em dia para coisas assim maçudas e profundas como são, no meu fraco ver ignorante, os ditos clássicos
bem hajas por seres de outra massa e os trazeres à colacção de espíritos pobres como o meu
Eu fiquei pensando, durante toda a leitura, sobre a razão que levaria você a tanto. Sim, tanto! Um exercício de filosofia que quase — eu disse quase — engana como sendo de lógica linear. Mas então não seria Joaquim! Quando li o último parágrafo, "Vincando a atualidade da questão, a história da literatura ocidental testemunha o abismo que separa os verdadeiros poetas – capazes de, eventualmente, aliarem força de expressão a uma imensa facilidade descritiva –, daqueles cujas criações deixam transparecer o esforço para lograr fins artísticos preconcebidos.", aí sim, voltei à leitura do diálogo (em especial em sua última fala) para ter a certeza de que se tratava mesmo era de um belo sofisma. Bem "a la" Joaquim! Capciosas falas que induzem o leitor a um veredicto cruel: não adianta se escritor popular ou de épicos, não adiantam estratégias de marketing, contam mesmo trabalho, esforço/suor, talento obtido por meio dessa soma (pesquisa, cultura acumulada, trocas, leituras de pontos e contrapontos...). Pelo menos para os que desejam ser para sempre e não apenas durante modismos frenéticos.
Foi o que me passou essa sua realização de primeira! Sou como Fátima, um espírito pobre que se senta para sorver, absorver. Sempre.
Obrigado pelos comentários, Fátima e Cinthia. Um esclarecimento:
O diálogo é um trabalho académico rebelde, resultante de um mestrado de Filosofia – Estética que frequentei em 2010.
Devido às minhas lides literárias, quis fazer um dos trabalhos sobre esse fenómeno tão escorregadio – a inspiração – mas não conseguia encontrar bibliografia. Então a docente indicou-me o “Íon”, mas revoltei-me com as conclusões de Platão, como me revolto de cada vez que encontro quem recorre às fáceis explicações sobrenaturais antes de fazer um esforço de entendimento racional. Então, elaborei um pastiche com conclusões opostas às do original.
Publico-o aqui porque me parece que interessa a todos os que lidam com o fazer literário e junto-lhe um texto informativo sobre o “Íon”, cuja pesquisa, curiosamente, me suscitou o “no entanto” que a Cinthia tão perspicazmente detetou.
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