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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

VOO

VOO


Para Edweine Loureiro, em resposta ao seu poema homônimo.


A escola circense tinha sido um bom lugar... Por um instante seus devaneios conseguiram encontrar um norte, um porto, um atracamento qualquer, qualquer lugar naquele mar de vastidão e loucura mental em que estava absorto naqueles dias. As escolas geralmente são, concluiu em seguida, não pelo que aprendemos nelas, tudo muito maçante, mas pelos amigos que conhecemos e por experiências como a Maria.

Maria... Maria era um ensandecimento que ele tinha. Mulher, em todo o aspecto forte e poderoso do termo, palavra que, parece, hipnotiza. A mulher mais determinada que um dia já conheceu, cheia de si, cheia de um declarado feminismo que lhe deixava ainda mais atraente... Uma trapezista!

Engraçado como esse nome dito assim deixava a mãe dela transloucada! Nunca aceitara a profissão da filha. Trapezista... Eles já tinham rido tanto disso num pretérito mais que perfeito que tiveram..., lembrava. Na verdade, tinham sido apenas amigos – para Maria, uma felicidade só, para ele, angústia. Era esse o seu pretérito mais que perfeito: imperfeito. Mas, pensando por outro lado, ao menos eram alguma coisa um do outro...

Os saltos de Maria eram tão perfeitos e calculados que se os organizadores de olimpíadas deixassem de ser pretensiosos e reconhecessem nas coisas de circo além de arte, esporte espetáculo, fariam isso só para satisfazer um intuito pré-concebido de premiar com os louros de Maratona a diva trapezista. Maria era. O que estava fora dela não era. O que não estava em Maria não estava no mundo. O mundo só é belo quando a nossos olhos ganha cor. Maria era a cor dos olhos dele.

As lembranças dela sempre eram determinantes, encorajantes, fortes, era uma amazona, seu signo?, se isso existisse, deveria ser o mesmo de Palas Atena, a diferença entre ambas era a lança e as armaduras; a lança de Maria, na realidade sua arma de guerra, era o trapézio, suas armaduras: as carnes duras do corpo.

Houve um momento quase fatal para ele, quando Maria, após um dia de exercícios e enquanto conversavam no quarto dela, dormiu. O corpo de atleta grega, espartana muito mais firme e rija que qualquer marmanjo da Hélade, refletindo os últimos raios amarelados do sol, o pequeno short que usava, todo florido (que contradição!, que bela complementação!), a blusinha quase transparente, os seios brancos e os mamilos rosados, de aço erguido, desafiando, desafetados de qualquer mansidão e pudor... Ele quando deu por si, já estava quase por cima dela. Maria, por debaixo, acordava de seu sono subitamente, num movimento involuntário de proteção, dando-lhe um soco! 

Não mais tentou.

Eram amigos. Amizade é amor na igualdade, amor desafetado da posse e do sexo, dizem. Quando cravada na desigualdade dos sexos, das mentes e dos corpos, nada mais seria que um embuste de Eros..., uma armadilha. Ele caíra. Ela, firme e forte era Maria, isto é, ela mesma, a trapezista mais determinada e dura que já conheceu.

Por algum instante, naquela época, chegara até mesmo a duvidar do gosto de Maria, do desejo dela, de sua opção sexual, ri vagamente ao se lembrar disso. Pensou que Safo, na ilha de Lesbos, também devia ter sido muito bela e determinada... E esse era um pensamento que lhe consumia, que lhe engolia por dentro, que lhe queimava como um ácido sulfúrico cinzento, pastoso e destruidor... 
Maria era um vulcão que crepitava dentro dele com larvas tão quentes quanto infernais. Naquela fase, ele estava em plena erupção. E aquele inferno era-lhe o céu.

A natureza parece que é má. Todos os seus hormônios desejavam Maria, todos os seus tremores internos, parece que ela tinha sido escolhida para a manutenção de sua existência, para a perpetuação de seus genes, de seu corpo, de seu ser, perto dela ele se esquecia de que um dia não mais seria. Ele simplesmente era, sem o quando, por quê, onde, pra onde, sem as idiotices da vida. E Maria? Maria era a indiferença travestida em amizade.

Suas dúvidas sobre Maria persistiram até que foram trabalhar naquele circo recém-chegado, chamado Grande Circo Brasileiro. Um nome pomposo bolado por um proprietário cheio de ego. Maria tinha sido contratada tão logo chegara. Na fila ainda, em pé, tinha chamado os olhares de seu Bernardo Brasileiro, o dono. Ele, sentado em sua cadeira, na frente de um birô velho e jocoso, levantou a vista e em vez de dizer “próximo!”, disse “você!” e apontou pra Maria. Ela, sem medo nenhum, furou uma fila de dez pessoas injustiçadas e sentou-se majestosa em sua frente.

Contratada. Palavra bonita quando se precisa de dinheiro. Levantar-se e ir-se embora? Não, ela olhou para seu Bernardo com o carinho que um gato nos olha quando tem fome e pediu que também contratasse o melhor amigo dela. O velho proprietário olhou, calculou com os olhos, as pestanas trêmulas, deu um mixoxo e assentiu com a cabeça. Maria conseguia tudo o que queria, desde sempre, graças a ela é que ele também estava devidamente contratado e trabalhando naquele tal Circo Brasileiro.

Feliz? Não, não, o pobre estava era afetado com aquelas palavras terríveis: “melhor amigo”...

E agora o instante terrível! Nunca esquecia com rigor de detalhes o momento em que adentraram primeira vez a lona do Grande Circo Brasileiro... Seu rosto transfigurava-se no instante exato em que sua memória vaidosa o guiava para essa parte da história sua. Na transfiguração, nenhum rosto judaico-bíblico, mas Mefistófeles, ele próprio, rogando promessas faustas. Ficava cabisbaixo. Pensar que...

No momento exato em que entraram pela lona do circo, saía Marcos, o equilibrista. Maria e Marcos toparam-se um no outro. Não lembra se ela bateu a cabeça, se tinha tomado algum remédio com efeitos colaterais gravosos, se as pílulas anticoncepcionais que tomava desde o dia em que tinha transado com o rapaz que foi concertar o telefone na casa dela tinham lhe feito mal, ou mesmo se algum mal olhado tinha sido jogado nela, mas o fato é que Maria o surpreendeu, o desiludiu, repentinamente, sem mais nem menos, como num sopro de vento, levantando poeira, e folhas secas de árvores, num redemoinho, e o diabo no meio...

O diabo é a cara que temos quando desgostamos das coisas. Deus?, é um clamor.

Mas ainda que clamasse, não haveria retorno ao eco de sua voz. Ela estava apaixonada. Perdida. Perdidamente. Doidamente. Severamente. Transloucada. O cupido encontrou-se com ela e as chamas que brotaram de sua seta eram maiores que as de Santa Tereza em êxtase!

Mas o que era aquilo? Tinham apenas se chocado, se topado, e já era suficiente? Ele que há tanto tempo a acompanhava, era o baú de seus segredos, o amigo, o irmão, o melhor amigo... A pessoa mais indicada para receber em cheio os dotes de seu amor, e ela, dura e impassível. Senhora de si, de sua vida, de seus sentimentos, de suas paixões mais secretas, determinada, feminista... Ora, esquecera-se de seu feminismo? Porque estava, então, tão vitimada com aquele homem que não lhe dava qualquer bola? Pensava. Poderia dar-lhe o braço, um dedo, qualquer coisa baixa que demonstrasse indiferença, mas não. Ante ao amor a gente é... Não é.

Marcos era também determinado, impassível, senhor de si, de seus sentimentos e de suas paixões. Nada na beleza de Maria, na essência de Maria, nas curvas de Maria, na existência de Maria, no firme modo como saltava no trapézio, de sua firmeza, nada em absoluto afetara sequer de longe o ímpeto de Marcos. E Maria, não obstante, só falava dele, só notava ele, só queria ele, só pensava nele... 

Lembrou-se que teve um momento em que ela chegou com uma história de que tinha sonhado com ele, e naquele instante já não aguentou mais! Levantou-se, virou-lhe as costas e saiu. Maria era um colibri no trapézio, leve e firme, mas um colibri que voara para outros braços. Os seus há tanto abertos, esperando, ansiosos, enquanto dizia para si “vem, colibri”, mas ora!, o mundo dá voltas e numa dessas voltas a gente cai. Mas o que o deixava ainda mais preocupado era o fato de que os braços que a recebiam não estavam abertos. Ele a amava, pensava em seu bem-estar, se não seria com ele, ao menos que fosse com o outro, mas o outro...

Foi aí que aquilo... Ri amargamente até hoje quando se lembra disso. Assim, de supetão! Inesperadamente, de repente, num susto do qual até hoje não se recuperou, empalidece sempre que lembra: Marcos estava apaixonado também, repentinamente, imensuravelmente, intensamente, de supetão, depois de um rápido choque, na entrada da lona do circo..., só que por ele.


Poema homônimo de Edweine Loureiro: 
"Voo 
Diz o trapezista:
vem, colibri.Não te deixo cair... 
Mas, para seu terror,
a trapezista voou
rumo ao equilibrista,
que a abandonou".

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6 comentários:

Muito feliz e lisonjeado com esta homenagem a meu poema, atraves de seu belo texto, Mario. Viva a Literatura que nos une! Saudacoes poeticas do Japao. Edweine Loureiro

Feliz por ter gostado, meu caro Ed! Eu disse que seu poema tinha me dado uma catarse incrível! (rsrrs) Abraços do Recife, que nessa época arde bronzeado pelo sol.

Parabéns, Mário! Excelente conto, dos que prendem a atenção. Essa Palas Atenas... Todo esse universo mitológico retratou muito bem a situação e opçao das personagens. Delicioso!

Cris! Que bom vê-la por aqui! Pois é, das deusas helenas uma das que têm mais forte personalidade!, não resisti à comparação e, justiça seja feita, há muitas mulheres que, sozinhas, valem mais do que dois (ou mais) espartanos! rsrs Muito obrigado por seu olhar sempre aprazível, cara amiga!

Bela historia, muitíssimo bem narrada, Mario Filipe. Gostei demais e espero pela próxima. Parabéns, amigo!

Obrigado, Cecília! Que bom que gostou! A próxima virá! Abração! (estou muito exclamativo hoje srrss).

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