Henry Alfred Bugalho
Os rastreadores deixaram a aldeia bem cedo, antes de o sol nascer. O antropólogo seguia-os logo atrás, câmera fotográfica nas mãos e vestido como quem vai a um safári.
Há um mês na tribo, já havia presenciado hábitos e comportamentos que não constavam em tratado algum. Um povo intocado, com costumes peculiares.
Assim como os demais daquela região, possuíam uma religião animista, reverenciavam os espíritos do sol, da lua, do vento, da terra e da água. Tinham pouquíssimas restrições alimentares; não comiam urubus, impuros, nem serpentes, sagradas. De vida semi-nomádica, percorriam vários quilômetros entre um acampamento e outro fugindo da estiagem. Sociedade patriarcal, com um sacerdote no topo da hierarquia e um chefe tribal em tempos de guerra. Uma cultura de caça e de criação de pequenos rebanhos caprinos. Nada de extraordinário até aí.
O que surpreendeu o antropólogo foram as práticas de casamento, uma complexa interrelação de famílias, um sistema que ele foi incapaz de determinar em tão pouco tempo, porém havia presenciado alguns matrimônios para poder compreender como era seu ritual.
A união não era consensual, no entanto, o acordo também não ocorria com a autorização dos pais daqueles que se casavam. A intermediação era feita pelo próprio sacerdote e dependia primordialmente de um fator: a data de nascimento dos noivos.
Os noivos sempre têm a mesma idade, com um intervalo máximo de sete dias da data de nascimento.
— É o segredo de uma relação duradoura — havia dito o sacerdote ao antropólogo.
Ainda bebês, com um mês de vida, as duas crianças são apresentadas e, utilizando trajes cerimoniais, é realizada a união. A noiva é então levada para a casa dos sogros ou dos avôs e cuidada como se fosse uma filha. Cresce ao lado do noivo todos os dias de sua vida e jogos sexuais são estimulados desde a mais tenra idade. Não raro, aos doze ou treze anos, logo após a menarca, a noiva já espera seu primeiro filho. É comum que numa mesma casa coabitem quatro ou cinco gerações de uma família.
Não existe divórcio nem viuvez, inclusive tais palavras nem existem na linguagem deles. Se um dos cônjuges morre, o viúvo é sacrificado em ritual e suas cinzas são misturadas às do esposo ou esposa. Se um dos cônjuges tenta fugir, ambos são renegados, punidos e apedrejados até a morte por toda a tribo, por terem infringido a ordem dos deuses.
Os casos de transgressão são raríssimos e adultério é um tabu terrível, com as piores punições imagináveis.
Enquanto o antropólogo estava lá, dois jovens na casa dos vinte anos haviam fugido. Adúlteros. Haviam deixado marido e esposa e dois filhos cada. Alguns diziam que eles mantinham um relacionamento secreto há vários meses. As partes traídas estavam desesperadas, pois conheciam a punição.
Organizaram um grupo de rastreio e o antropólogo convenceu o sacerdote a deixá-lo acompanhar a busca.
Durante três dias e três noites eles percorreram a inóspita região até que, enfim, encontraram os rastros dos fugitivos. Adentraram uma cadeia de cavernas e, no jogo de luz e sombra das tochas, depararam-se com o rapaz e moça encolhidos num canto escuro, abraçados, tremendo de medo.
Ataram-nos em cordas e os arrastaram, aos berros, de volta à aldeia. De longe se podia escutar os cânticos e urros do temível ritual que se preparava. Amarrados em postes, estavam o marido e a esposa traídos e, junto a eles, as quatro crianças.
As pessoas escarravam nos adúlteros, que se debatiam e lutavam para fugir, mas que também terminaram presos aos postes.
— Mas os que foram traídos também serão punidos? — perguntou o antropólogo ao sacerdote.
— Evidente! Eles também são culpados pelo fim do casamento. Se fossem felizes, isto não teria ocorrido.
— E as crianças? O que fizeram de errado?
— Filhos de adúlteros serão adúlteros.
Os oito — adúltero, adúltera, traído, traída e as crianças — foram besuntados com um líquido viscoso e, depois, atearam fogo neles.
Em meio às chamas que a consumia, a adúltera esbravejava.
— O que ela está gritando? — perguntou o antropólogo ao intérprete.
— Não escolhemos a quem amar! Não escolhemos a quem amar! — ele respondeu.
No final daquele dia, o antropólogo se recolheu à sua tenda e fez suas anotações:
"Que sentimento incrível é este, o amor. Mesmo sabendo que receberiam a maior punição possível, que toda sua família também seria executada, dois jovens arriscaram tudo para ficar juntos e ser felizes. Inacreditável!"
E depois chorou, sozinho, encolhido. Pensava na ex-mulher e na filha que não via há mais de ano. Havia sido feliz com ela, tiveram grandes momentos juntos: o que havia dado errado? Quando? Talvez não houvessem dado valor à liberdade de poder viver o amor, os detalhes falaram mais alto e ofuscaram o importante.
“Eu deveria ligar para você quando retornar”, pensou o antropólogo acariciando os cabelos da ex-mulher na foto que escondia no bloco de notas.
Afora, os urros e cânticos prosseguiram por toda a noite.
2 comentários:
Muito interessante. A história até pareceu real (seria?). Costumes arcaicos e bárbaros, E uma triste punição para o amor.
Essa história me arrepiou. Tremenda punição para quem ousou amar. E o amor, afinal? Ofusca-se o mais importante diante de detalhes bobos que sobressaem. Extrai-se do texto ilações interessantíssimas. Parabéns, Henry!
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