Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Via Dolorosa


"...as prostitutas e os cobradores de impostos
vos precedem no reino dos céus".  

Começou a morrer no momento em que foi espirrada da barriga da mãe. Jogada em meio ao amontoado de imundícies do leito do rio, onde catadores bêbados, cachorros magros e ratos enfurecidos disputavam restos de comida, apodreceu em meio às cascas por algumas horas. Mas quis a sorte ou o azar que espremesse um choro azedo exatamente na hora em que Madalena, uma das putas da rodovia, fazia o seu ofício. Curiosa, a mulher escavou a montanha de entulhos e tropeçou os olhos no bebê, que se mexia muito pouco.
Kelly Cristina vingou nas mãos daquela mãe improvisada. E tomou mais corpo do que podiam suportar os olhos embriagados dos catadores e dos drogados que perambulavam pelas margens do rio. Aos 14 anos, já fazia a vida. Aos 16, tinha um dos melhores pontos no calçadão que margeava a rodovia paralela ao rio.  Era a preferida de motoristas e caminhoneiros, que a recolhiam embaixo do viaduto. Aos 17, mais tarde que a maioria, criou barriga. Como queria ver a cara da criança, escondeu a prenhez de Madalena, até que nenhuma das mulheres teve coragem de lhe fazer um aborto.
Viu a filha nascer bem cedo, em uma manhã de sexta-feira. E passou com ela pouco mais que um dia, antes de se levantar e ir trabalhar novamente. Na noite de sábado, apesar do cansaço, saiu para o ofício banhada e perfumada. Não sabia que, ao voltar, a criança teria ido embora. Madalena já tinha destino combinado para a menina e lhe deu sumiço sem avisar a ninguém. Kelly Cristina, histérica, esbofeteou-a para que dissesse onde estava a filha, mas tudo o que recebeu foi um abraço silencioso. Nunca mais soube da criança.  

OOO
É tarde da noite. Da vida, também. Kelly conhece o veneno que sacia o seu sangue. Vai morrer do prazer que sente pelo sexo de todo o dia. Não lhe interessa a saúde comprovada pelos exames pagos pela ação social da igreja, uma vez por ano. Seu corpo morre é de vontade, não de descuido; o corpo de curvas sensuais que é disputado sob o viaduto. Há nove anos, provou seu primeiro homem. Tinha gosto de pressa. Nunca mais experimentou coisa melhor que os homens da estrada. Faz com pressa o ofício até hoje. E goza.
O corpo do traficante com quem se amasiou depois de parir a filha acaba de sair porta afora. Ela olha o cadáver, se lembrando das surras quase diárias. Mas também das pedras de crack que ele lhe trazia. O puto só lhe entregava o bagulho em troca de um boquete demorado. Pau mole de merda, pensava, enquanto tentava acelerar o gozo do companheiro. O único contratempo na morte do infeliz é que ela vai ter que arranjar as pedras em outro lugar. Nem o filete de sangue que escorre da sua barriga a incomoda. Durante a briga, foi atingida duas vezes pela ponta da faca do traficante: no bucho e no rosto, exatamente no mesmo lugar onde ele tinha lhe batido com o anel de ouro, na véspera, deixando-a com um olho roxo. Nada dói. E mesmo que doesse. Ela não tem tempo para cuidar de feridas. Briga de gente é coisa de porrada. Mas a briga deles tinha sido de bicho. No impacto do primeiro soco, cuspira a gilete que guardava embaixo da língua. E ainda tivera tempo pra pensar se queria mesmo ficar sem o macho e sem o crack. Para cada indecisão sentiu a ponta da faca. Não vacilou mais. Agora, só pensa é na beleza do talho que desenhou na garganta do amante e sorri imaginando a cara do vagabundo acordando da morte no meio do inferno.
No fim de mundo sórdido das putas da rodovia a polícia não tem interesse em saber de nada. As meninas mentem. Dizem que quem matou o companheiro de Kelly foi um desconhecido. Entrou na casa, matou, fugiu. Ninguém questiona. Nem a polícia, nem os vizinhos que nunca veem, nunca ouvem, nunca falam. Um traficante a menos distribuindo sonhos de merda. E mais um ponto liberado para outro marginal assumir.
Quando levanta da cama na manhã seguinte, faz três clientes de uma vez só, no mesmo quarto. Sua pressa está atrasada. Deu para se lembrar da filha; imagina cada dia um rosto diferente para a menina. Pensa na criança enquanto faz sexo com pressa na rodovia. Bebe cachaça e fuma uma pedra de crack quando acorda; bebe e fuma entre um cliente e outro; bebe e fuma na cama dura da casa de Madalena. Para poder dormir. Não dorme. Imagina o rosto da filha. Chora durante o sexo e crava as unhas nos homens. Depois, esquece de gozar ou de fingir. Já não é preferida, nem disputa o calçadão. É mulher de beco lateral.
Ontem à noite, desligou os sentidos. Seus olhos amanheceram perdidos nos entulhos do leito do rio, onde Madalena a encontrou, pela manhã, imunda e abraçada às próprias pernas. A mulher se lembra dela naquele mesmo lugar, ainda um bebê, sem forças e coberta pela sujeira do lixo. Os anos a cobriram com a sujeira da vida. Na casa das meninas, para onde Madalena a conduz, Kelly Cristina não chora mais. Faz o que mandam, faz o que pode. Sem sexo, sem filha. De vez em quando, uma das meninas lhe dá uma pedra de crack, mas nada é suficiente. Ela precisa de mais. No quarto, treme, sua, grita e se urina. E passa as noites acordada nos braços de Madalena, que tenta acalmá-la e a impede de sair sem rumo pela noite.  

OOO 

Faz um ano que Kelly trabalha para Ceiça e José Arlindo, bem longe da rodovia. Ela, uma mulata redonda e desbocada, que trabalha no seu próprio salão fazendo os cabelos e as unhas da vizinhança. É irmã de Madalena. Ele, um homenzinho mirrado que encanta a freguesia numa lojinha de frutas no centro da cidade. São amasiados, companheiros plenos. Pertencem a um mundo que criaram só para si. Gostam de Kelly. E fazem dela a filha que os anos não trouxeram. A internação, os remédios, médico todo mês. Ninguém fala no dinheiro gasto, só em coisas boas. Aos poucos, Kelly esquece a depressão. Distrai-se com as clientes de Ceiça que a tiram da apatia com suas fofocas e gargalhadas. José Arlindo, que se ausenta de vez em quando para uns negócios secretos, lhe pede que o substitua na banca de frutas. E ela já é mais procurada do que ele. Há muito, tornaram-se amigos. Um sentimento novo que ela não sabe se deseja. Ainda pensa na filha que não conheceu além do parto; nas cicatrizes que traz no rosto e no ventre; nas pedras de crack que deseja com todas as forças, todos os dias. O pensamento na droga a faz suar e ter dores fortes na barriga, apesar dos remédios que toma. E esta noite, só esta noite, ela deseja outro remédio para a agonia que a retoma e que inferniza os seus dias alienados. Quando entra na casa das meninas, fecha as narinas na tentativa de impedir que as lembranças entrem pelo ar. Ela precisa de Madalena, a única mãe que conhece. Em seus braços, sente-se forte para ir em frente. Forte para se destruir novamente.  

OOO 

Nem faz um mês que Kelly Cristina voltou. Nem faz um mês que cobre de novo o mesmo ponto na rodovia, que bebe, que fuma as pedras de crack barganhadas por dinheiro ou por sexo. É capaz de repetir esse caminho rasteiro quantas vezes precisar. Não se despediu de Ceiça nem de José Arlindo. Teve medo de que eles lhe pedissem para ficar. Gosta de imaginar que tenham esperado por ela durante alguns dias — precisa acreditar nisso —, mas compreende que os decepcionou como faz com todo o mundo, por hábito, por natureza. Não importa. Ela não pensa mais na sujeira que lhe serviu de berço, na imundície pegajosa que pegou de cada cliente, nem no lixo humano a quem deu fim pelo fio da gilete. Nem se assusta mais com a noite eterna dos seus dias. O que ela sente dói além da carne e dos ossos. Uma agonia que não cessa, um descontrole na alma. É dor de cansaço.
Não sente o chão quando cai, entorpecida pelo crack e pela cachaça barata. Vai se levantar; sempre se levanta. Precisa apenas esperar que o corpo elimine os excessos. Mas, hoje, a rotina falha. Ouve vozes ao redor e sente que alguém derruba em sua boca, lentamente, uma sopa cheirosa. Quando o agasalho de lã envolve seu corpo enrijecido, a dor se distrai por uns momentos. Ela agora tem muitas mães. Aperta a mão de quem a aqueceu e, fortalecida pelo caldo, consegue sentar-se, exalando um cheiro de vômito. As mulheres recuam. Nada mudou. Aquelas senhoras educadas, que exercitam apenas por dever o honroso ofício da caridade cristã, acusam-na sem palavras. Ela é novamente uma prostituta drogada. Cambaleando, levanta-se e foge do risco de se sentir humana. Ela precisa prosseguir com a noite, fazer sexo gostoso, gozar, beber, fumar para que a luz da manhã aconteça sem dor. Ou não aconteça.  

OOO 

Cinco da manhã. A madrugada não trouxe clientes. Ela prefere pensar que está se preocupando à toa e que a escassez é para todo o mundo. Mas, sem homens, sem droga. E ninguém lhe dá mais nada. Enquanto pensa no que ainda poderia roubar da casa de Madalena, não percebe os rapazes que se aproximam. Nem suas vozes histéricas, nem os risos alterados. A curra não a viola pelo sexo multiplicado naquelas seis ou sete posses brutais. O que a enche de fúria é a impotência. É o consentimento que não deu. Debate-se como um bicho até que sente a lâmina gelada entrando no seu ventre, no mesmo lugar do corte da outra, mais antiga. A carne fina explode com facilidade e o sangue esguicha sobre os agressores, fazendo com que recuem momentaneamente. Mas voltam, logo em seguida, e a chutam até os entulhos na beira do rio, onde ela se mistura aos restos de comida. Às gargalhadas, perseguem e apanham pelo rabo algumas ratazanas, jogando-as sobre Kelly. Mas ela não sente mais nada. Inspira o fedor da comida podre e aninha-se sob as cascas. Conhece aquele berço. Agoniza em meio ao lixo, aliviada. Finalmente, é hora de seguir o caminho adiado no parto. Madalena não está por perto. Não pode condená-la, mais uma vez, a viver.
Ceiça acorda Pedro Arlindo antes que o despertador soe o alarme. Ela não sonha nunca, mas esta noite sonhou com Kelly lhe pedindo um abraço. Sem esperar pelo marido, apressa-se em direção à casa das meninas. Madalena está à porta, esperando. Tiveram o mesmo sonho. Juntas, percorrem a pé a trilha das meninas, que pela manhã é apenas o caminho do leito do rio. As marcas da noite estão nas paredes com cheiro de sexo e nos preservativos que apontam rastros. Kelly Cristina espera por elas com os olhos sem viço e a boca entreaberta, por onde entrou o último ar da noite.  

OOO 

A tarde não tem pressa de acabar. No cemitério, Madalena e Ceiça, rosto seco, gestos calmos, consolam as putas da rodovia. Quando estiverem exaustas, consolarão uma à outra. José Arlindo olha de longe a comunhão das mulheres e pensa em suas frutas para se distrair da falta de ar, da falta de tudo. É de tempestade o céu que testemunha o caixão barato ser engolido pela terra. Mas no outro céu deve ter sol. Lá, deve ter.

Share


Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


4 comentários:

quer sinceridade? eu enxugava ele...tem ali qualquer coisa demais que a partir de certo ponto me deixou desconsolo
adorei, claro :)

Preciso de ar, preciso de ar... Chego ao fim dessa via dolorosa sem ar e penso: e se não houver sol no outro céu? e se não houver outro? Mas que outro?... Foi uma overdose de realidade e crueza. Parabéns?! É pouco, muito pouco para a imensidão desse texto.

Cecilia, obrigada! essas dúvidas são eternas dentro da gente, não? Também as tenho! Embora prefira acreditar que existe, sim! Senão eu não entenderia tantas Kelly Cristinas por aí!

Que belo texto! A realidade nua e crua de suas imagens está diretamente relacionada à dificuldade que estas mulheres enfrentam durante o árduo curso de suas vidas. Discriminadas pela sociedade e pelo estado (e suas leis ultrapassadas) que não reconhece a sua profissão. Parabéns Cinthia! Foi no ponto!!!

Postar um comentário