"...as
prostitutas e os cobradores de impostos
vos
precedem no reino dos céus".
Começou
a morrer no momento em que foi espirrada da barriga da mãe. Jogada
em meio ao amontoado de imundícies do leito do rio, onde catadores bêbados,
cachorros magros e ratos enfurecidos disputavam restos de comida, apodreceu em meio às
cascas por algumas horas. Mas quis a sorte ou o azar que
espremesse um choro azedo exatamente na hora em que Madalena, uma das putas da
rodovia, fazia o seu ofício. Curiosa, a mulher escavou a montanha de entulhos e
tropeçou os olhos no bebê, que se mexia muito pouco.
Kelly
Cristina vingou nas mãos daquela mãe improvisada. E tomou mais corpo do que
podiam suportar os olhos embriagados dos catadores e dos drogados que perambulavam
pelas margens do rio. Aos 14 anos, já fazia a vida. Aos 16, tinha um dos
melhores pontos no calçadão que margeava a rodovia paralela ao rio. Era a
preferida de motoristas e caminhoneiros, que a recolhiam embaixo do viaduto.
Aos 17, mais tarde que a maioria, criou barriga. Como queria ver a cara da
criança, escondeu a prenhez de Madalena, até que nenhuma das mulheres teve
coragem de lhe fazer um aborto.
Viu
a filha nascer bem cedo, em uma manhã de sexta-feira. E passou com ela pouco mais
que um dia, antes de se levantar e ir trabalhar novamente. Na noite de sábado, apesar
do cansaço, saiu para o ofício banhada e perfumada. Não sabia que, ao voltar, a
criança teria ido embora. Madalena já tinha destino combinado para a menina
e lhe deu sumiço sem avisar a ninguém. Kelly Cristina, histérica, esbofeteou-a
para que dissesse onde estava a filha, mas tudo o que recebeu foi um abraço
silencioso. Nunca mais soube da criança.
OOO
É
tarde da noite. Da vida, também. Kelly conhece o veneno que sacia o seu sangue.
Vai morrer do prazer que sente pelo sexo de todo o dia. Não lhe interessa a
saúde comprovada pelos exames pagos pela ação social da igreja, uma vez por ano.
Seu corpo morre é de vontade, não de descuido; o corpo de curvas sensuais que é
disputado sob o viaduto. Há nove anos, provou seu primeiro homem. Tinha gosto
de pressa. Nunca mais experimentou coisa melhor que os homens da estrada. Faz
com pressa o ofício até hoje. E goza.
O corpo
do traficante com quem se amasiou depois de parir a filha acaba de sair porta
afora. Ela olha o cadáver, se lembrando das surras quase diárias. Mas também das pedras de crack que ele lhe trazia. O
puto só lhe entregava o bagulho em troca de um boquete demorado. Pau
mole de merda, pensava, enquanto tentava acelerar o gozo do companheiro. O
único contratempo na morte do infeliz é que ela vai ter que arranjar as pedras
em outro lugar. Nem o filete de sangue que escorre da sua barriga a incomoda. Durante a briga, foi atingida duas vezes pela ponta da faca do traficante:
no bucho e no rosto, exatamente no mesmo lugar onde ele tinha lhe batido com o anel de ouro, na véspera, deixando-a com um olho roxo. Nada dói. E mesmo que doesse. Ela não tem tempo para
cuidar de feridas. Briga de gente é coisa de porrada. Mas a briga deles tinha
sido de bicho. No impacto do primeiro soco, cuspira a gilete que guardava
embaixo da língua. E ainda tivera tempo pra pensar se queria mesmo ficar sem o
macho e sem o crack. Para cada indecisão sentiu a ponta da faca. Não
vacilou mais. Agora, só pensa é na beleza do talho que desenhou na garganta do amante
e sorri imaginando a cara do vagabundo acordando da morte no meio do inferno.
No
fim de mundo sórdido das putas da rodovia a polícia não tem interesse em saber
de nada. As meninas mentem. Dizem que quem matou o companheiro de Kelly foi um desconhecido.
Entrou na casa, matou, fugiu. Ninguém questiona. Nem a polícia, nem os vizinhos
que nunca veem, nunca ouvem, nunca falam. Um traficante a menos distribuindo
sonhos de merda. E mais um ponto liberado para outro marginal assumir.
Quando
levanta da cama na manhã seguinte, faz três clientes de uma vez só, no mesmo
quarto. Sua pressa está atrasada. Deu para se lembrar da filha; imagina cada
dia um rosto diferente para a menina. Pensa na criança enquanto faz sexo com
pressa na rodovia. Bebe cachaça e fuma uma pedra de crack quando
acorda; bebe e fuma entre um cliente e outro; bebe e fuma na cama dura da casa
de Madalena. Para poder dormir. Não dorme. Imagina o rosto da filha. Chora
durante o sexo e crava as unhas nos homens. Depois, esquece de gozar ou de
fingir. Já não é preferida, nem disputa o calçadão. É mulher de beco lateral.
Ontem
à noite, desligou os sentidos. Seus olhos amanheceram perdidos nos entulhos do
leito do rio, onde Madalena a encontrou, pela manhã, imunda e abraçada às
próprias pernas. A mulher se lembra dela naquele mesmo lugar, ainda um bebê, sem
forças e coberta pela sujeira do lixo. Os anos a cobriram com a sujeira da
vida. Na casa das meninas, para onde Madalena a conduz, Kelly Cristina não
chora mais. Faz o que mandam, faz o que pode. Sem sexo, sem filha. De vez em
quando, uma das meninas lhe dá uma pedra de crack, mas nada é suficiente. Ela
precisa de mais. No quarto, treme, sua, grita e se urina. E passa as noites
acordada nos braços de Madalena, que tenta acalmá-la e a impede de sair sem
rumo pela noite.
OOO
Faz
um ano que Kelly trabalha para Ceiça e José Arlindo, bem longe da rodovia. Ela,
uma mulata redonda e desbocada, que trabalha no seu próprio salão fazendo os
cabelos e as unhas da vizinhança. É irmã de Madalena. Ele, um homenzinho
mirrado que encanta a freguesia numa lojinha de frutas no centro da cidade. São
amasiados, companheiros plenos. Pertencem a um mundo que criaram só para si.
Gostam de Kelly. E fazem dela a filha que os anos não trouxeram. A internação,
os remédios, médico todo mês. Ninguém fala no dinheiro gasto, só em coisas
boas. Aos poucos, Kelly esquece a depressão. Distrai-se com as clientes de
Ceiça que a tiram da apatia com suas fofocas e gargalhadas. José Arlindo, que
se ausenta de vez em quando para uns negócios secretos, lhe pede que o
substitua na banca de frutas. E ela já é mais procurada do que ele. Há muito,
tornaram-se amigos. Um sentimento novo que ela não sabe se deseja. Ainda pensa
na filha que não conheceu além do parto; nas cicatrizes que traz no rosto e no
ventre; nas pedras de crack que deseja com todas as forças,
todos os dias. O pensamento na droga a faz suar e ter dores fortes na barriga,
apesar dos remédios que toma. E esta noite, só esta noite, ela deseja outro
remédio para a agonia que a retoma e que inferniza os seus dias alienados.
Quando entra na casa das meninas, fecha as narinas na tentativa de impedir que
as lembranças entrem pelo ar. Ela precisa de Madalena, a única mãe que conhece.
Em seus braços, sente-se forte para ir em frente. Forte para se destruir
novamente.
OOO
Nem
faz um mês que Kelly Cristina voltou. Nem faz um mês que cobre de novo o mesmo
ponto na rodovia, que bebe, que fuma as pedras de crack barganhadas
por dinheiro ou por sexo. É capaz de repetir esse caminho rasteiro quantas
vezes precisar. Não se despediu de Ceiça nem de José Arlindo. Teve medo de que
eles lhe pedissem para ficar. Gosta de imaginar que tenham esperado por ela
durante alguns dias — precisa acreditar nisso —, mas compreende que os
decepcionou como faz com todo o mundo, por hábito, por natureza. Não importa.
Ela não pensa mais na sujeira que lhe serviu de berço, na imundície pegajosa
que pegou de cada cliente, nem no lixo humano a quem deu fim pelo fio da
gilete. Nem se assusta mais com a noite eterna dos seus dias. O que ela sente
dói além da carne e dos ossos. Uma agonia que não cessa, um descontrole na
alma. É dor de cansaço.
Não
sente o chão quando cai, entorpecida pelo crack e pela cachaça
barata. Vai se levantar; sempre se levanta. Precisa apenas esperar que o corpo
elimine os excessos. Mas, hoje, a rotina falha. Ouve vozes ao redor e sente que
alguém derruba em sua boca, lentamente, uma sopa cheirosa. Quando o agasalho de
lã envolve seu corpo enrijecido, a dor se distrai por uns momentos. Ela agora
tem muitas mães. Aperta a mão de quem a aqueceu e, fortalecida pelo caldo,
consegue sentar-se, exalando um cheiro de vômito. As mulheres recuam. Nada
mudou. Aquelas senhoras educadas, que exercitam apenas por dever o honroso
ofício da caridade cristã, acusam-na sem palavras. Ela é novamente uma
prostituta drogada. Cambaleando, levanta-se e foge do risco de se sentir
humana. Ela precisa prosseguir com a noite, fazer sexo gostoso, gozar, beber,
fumar para que a luz da manhã aconteça sem dor. Ou não aconteça.
OOO
Cinco
da manhã. A madrugada não trouxe clientes. Ela prefere pensar que está se
preocupando à toa e que a escassez é para todo o mundo. Mas, sem homens, sem
droga. E ninguém lhe dá mais nada. Enquanto pensa no que ainda poderia roubar da
casa de Madalena, não percebe os rapazes que se aproximam. Nem suas vozes
histéricas, nem os risos alterados. A curra não a viola pelo sexo multiplicado
naquelas seis ou sete posses brutais. O que a enche de fúria é a impotência. É
o consentimento que não deu. Debate-se como um bicho até que sente a lâmina
gelada entrando no seu ventre, no mesmo lugar do corte da outra, mais antiga. A
carne fina explode com facilidade e o sangue esguicha sobre os agressores,
fazendo com que recuem momentaneamente. Mas voltam, logo em seguida, e a chutam
até os entulhos na beira do rio, onde ela se mistura aos restos de comida. Às
gargalhadas, perseguem e apanham pelo rabo algumas ratazanas, jogando-as sobre
Kelly. Mas ela não sente mais nada. Inspira o fedor da comida podre e aninha-se
sob as cascas. Conhece aquele berço. Agoniza em meio ao lixo, aliviada.
Finalmente, é hora de seguir o caminho adiado no parto. Madalena não está por
perto. Não pode condená-la, mais uma vez, a viver.
Ceiça
acorda Pedro Arlindo antes que o despertador soe o alarme. Ela não sonha nunca,
mas esta noite sonhou com Kelly lhe pedindo um abraço. Sem esperar pelo marido,
apressa-se em direção à casa das meninas. Madalena está à porta, esperando.
Tiveram o mesmo sonho. Juntas, percorrem a pé a trilha das meninas, que pela
manhã é apenas o caminho do leito do rio. As marcas da noite estão nas paredes
com cheiro de sexo e nos preservativos que apontam rastros. Kelly Cristina
espera por elas com os olhos sem viço e a boca entreaberta, por onde entrou o
último ar da noite.
OOO
A
tarde não tem pressa de acabar. No cemitério, Madalena e Ceiça, rosto seco, gestos
calmos, consolam as putas da rodovia. Quando estiverem exaustas, consolarão uma
à outra. José Arlindo olha de longe a comunhão das mulheres e pensa em suas
frutas para se distrair da falta de ar, da falta de tudo. É de tempestade o céu
que testemunha o caixão barato ser engolido pela terra. Mas no outro céu deve
ter sol. Lá, deve ter.
4 comentários:
quer sinceridade? eu enxugava ele...tem ali qualquer coisa demais que a partir de certo ponto me deixou desconsolo
adorei, claro :)
Preciso de ar, preciso de ar... Chego ao fim dessa via dolorosa sem ar e penso: e se não houver sol no outro céu? e se não houver outro? Mas que outro?... Foi uma overdose de realidade e crueza. Parabéns?! É pouco, muito pouco para a imensidão desse texto.
Cecilia, obrigada! essas dúvidas são eternas dentro da gente, não? Também as tenho! Embora prefira acreditar que existe, sim! Senão eu não entenderia tantas Kelly Cristinas por aí!
Que belo texto! A realidade nua e crua de suas imagens está diretamente relacionada à dificuldade que estas mulheres enfrentam durante o árduo curso de suas vidas. Discriminadas pela sociedade e pelo estado (e suas leis ultrapassadas) que não reconhece a sua profissão. Parabéns Cinthia! Foi no ponto!!!
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