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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

JOSÉ, eis a questão

A fé cegava José. A faca era amolada. Os dias uns sobre os outros, um amotinado de números de calendários inúmeros e a poeira procrastinada da vida de José. Trocava os móveis de lugar. Invertia as dietas receitadas. Olhou nos olhos do padre e recusou o ato de catequizar. Os livros de História sempre maldisseram os portugueses e seus adestramentos em nome de Deus. Renegava a passividade bíblica do nome que lhe puseram, em cartório. Era, em essência, a reação. Tinha cara de José, mas não o era. Os dias. Longos, e, o domingo, sinônimo de missa, roupa nova, homilia doméstica, pai indiferente. Os católicos se amavam demais. Pensavam de menos. Sabatinava os padres nas confissões. Tenha fé, tenha fé, lhe respondiam. Afastava a fé como afastava o pote de açúcar sobre a mesa. A faca amolada, entre os dentes, preste a penetrar as cútis dos homens nublados, que cobriam suas impurezas com vestes grossas e imponentes. Sentava-se na primeira fileira nas missas. Encarava o homem sobre o altar. As interrogações o consumiam, seguidas dos pontos finais que encerravam verdades, seguidas das reticências que dispersava tudo o que se dizia verdade, seguidas das exclamações da loucura, seguidas por vários seres, medonhos e angelicais, invasores de almas, se é que havia uma alma, ou uma mente; bigodes surreais de Nietzsche, mulheres da Babilônia sobrevivendo na esquina da sua rua, Marias aliviadas com o sangue do feto messiânico escorrendo por entre os dedos, a orgia dos jovens catequistas em festas particulares, o câncer tragando a vida de um velho cristão... José quis compreender o mundo por um instante e se sentiu incompreendido. Ninguém enxergava a sua agonia, o seu ser que habitava o entre-lugar das escolhas. Acreditava em deus, como acreditou no pai que, ao sair para comprar cigarros, nunca mais voltou para sustentar os pilares do lar. Imaginava um deus cansado de ser criado, tendo de servir de resposta a várias mentes acomodadas, viciadas com a poeira acumulada dos dias, sofrendo a alergia dessa poeira, e o corpo tentando expulsá-la, e a persistência em inala-la, como fizera seu irmão com a cocaína, numa bancada de mármore – a mesma que recebeu seu corpo inerte de narinas infladas. De longe, José amolava a sua faca, enquanto os outros se abraçavam e se desejavam felicidade em datas comemorativas, declarando seus amores publicamente, atenuando suas carências, buscando elevar a estima através de beijos e palavras fingidas. No final da missa, se desejavam a paz de Cristo, e José se isolava nos fundos, com os braços cruzados, em guerra consigo e com os outros, travada em seu universo. Expandia-se e, via de regra, resfriava-se. Abandonou a religião. Cansou-se de amar e de forçar o choro por um homem morto há mais de dois mil anos. Cansou-se de pensar. Encaixotou os filósofos. Sexta-feira de paixão. Saboreou um belo pedaço de carne vermelha. Bebeu vinho. Deglutiu o alimento e lembrou-se apenas do boi e das uvas: este era o gosto sacrificado que assentava em sua língua. Apanhou sua faca mais amolada, olhou-a com devoção. Apertou-lhe o cabo com o olhar determinado. Estava pronto.
Usou-a para passar manteiga no pão.

Foi sua maior sensação de liberdade. José singrou invisível aos olhos do mundo, assim como deus, que saiu para comprar cigarros.

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