Menino Jesus, está chegando a data em que, simbolicamente, comemoramos o seu nascimento, e se tem uma coisa que gosto nesta época é de montar o presépio. Adoro fazer isto. Desde criança. E é com aquele mesmo prazer infantil que faço o meu presépio. Ponho você deitado na sua caminha de palha, com José e Maria, um de cada lado. Com a minha fértil imaginação, transformo o terreno árido onde você nasceu em campinas verdes e montanhas e vou colocando os pastores, os carneirinhos, a fazendeira que joga milho para as galinhas. Até rio tem no meu presépio, Menino Jesus. No meu tempo de infância, imitávamos a água com espelho. Hoje, veja, faço um riacho de verdade com água corrente passando por debaixo da ponte, com aquele barulhinho que adoro até a primeira meia hora, mas só até a primeira meia hora. Às margens do rio ficam os patinhos e sapinhos. Ponho os três Reis Magos com seus camelos vindo lá de longe, do leste, e a cada dia vou aproximando-os do estábulo. Ah, o estábulo! É aí que eu capricho mesmo. Meu estábulo fica lindo com suas vaquinhas, burrinhos, o pastor que carrega um carneiro em seus ombros, outro que toca uma flauta e lá na cumeeira o anjo, o maravilhoso anjo que estende uma faixa anunciando sua chegada. E faço o céu também, pois não faço? Um céu noturno cheio de estrelinhas e, claro, a estrela maior de todas que uns chamam d’Alva, outros de Vênus, outros ainda de Sirius. A brilhante estrela que os Reis seguiram para presenciar o seu nascimento, levando ouro, incenso e mirra. E fica lindo o meu presépio, principalmente no escuro, quando acendo as luzinhas e ele fica todo iluminado.
Bem, Menino Jesus, você deve estar se perguntando como é que eu consigo conciliar o dia e a noite ao mesmo tempo. O fato é que consigo e não é tão difícil assim, já que esta incoerência é fruto da própria incoerência de que sou feita. Sim, porque sou feita de luzes e de sombras. Agora, por exemplo, enquanto olho para sua figurinha fofa, linda, sou toda amor e adoração, cheia de boas intenções. Mas se meu vizinho jogar novamente cigarro aceso no meu jardim, sei que vou mandá-lo à merda, não sei antes levantar o dedo médio para ele. Sou capaz de morrer pelos que amo da mesma forma que seria capaz de fuzilar sem piedade, se a lei o permitisse, todo político corrupto. Choro quando vejo imagens de crianças deformadas pela fome, mas tenho vontade de surrar os pivetes descalços que andam pelas ruas do meu bairro assustando as pessoas. Menino Jesus, sou capaz de desfiar milhares de exemplos da minha dualidade, dualidade de que não só eu sou feita, mas de que é feita toda a humanidade, toda a natureza, seja ela viva ou morta. Aliás, dualidade existente até em você, Menino Jesus. Veja se não tenho razão. Você nos ensina a amar nossos inimigos, mas roga praga numa pobre figueira, fazendo-a secar, só porque a coitada não deu frutos. Você nos ensina a perdoar, mas se transgredimos você nos ameaça com a tortura do inferno, castigo tão cruel quanto inútil já que eterno e, se eterno, qual a sua finalidade?
Menino Jesus, não fique ressabiado comigo, mas preciso confessar que não é sempre que acredito na sua história. Às vezes, assim como este meu presépio, acho tudo meio fantasioso e incoerente. Mas, fantasioso ou não, incoerente ou não, o que interessa de verdade é a simbologia disso tudo, o que você, Menino Jesus, representa. Aliás, não só você, mas tantos outros que tantas outras religiões dizem existir. Para mim, vocês representam a força espiritual que nos criou, que nos sustenta e que nos leva quando chega a hora. E nesta força, que por falta de outra palavra chamo de Deus, eu acredito, como acredito! Acredito neste Deus todo poderoso tanto para o bem como para o mal. Acredito neste Deus, também Ele feito de luzes e sombras, afinal não fomos feitos à sua imagem e semelhança?
Acredito na face iluminada de Deus quando percebo o milagre da vida e a perfeição do universo. Quando ouço uma sinfonia de Beethoven. Quando ouço a voz de Callas interpretando Verdi, ou mesmo quando ouço um samba de Noel. Quando leio um poema de Fernando Pessoa ou um texto de Clarice. Quando ouço a chuva cair alimentando a terra seca. Quando vejo um jardim cheio de flores das mais variadas formas e cores ou o sol se por num belo horizonte, iluminando as montanhas que o confrontam. Quando ouço o canto dos diversos tipos de pássaros que voltam em bando na primavera e vejo a perfeição dos ninhos que constroem. Acredito na face iluminada de Deus quando percebo a solidariedade do ser humano nas tragédias, a sua generosidade quando ajuda um amigo ou mesmo um desconhecido. Quando vejo o suor no rosto do homem que ergue a obra de um artista. Quando vejo o sorriso de uma criança ou quando me derreto ao ouvir os netos me chamando de vovó. Vejo a face iluminada de Deus na risada de um amigo, na emoção de uma torcida quando seu time é campeão, no balanço do meu peito quando recebo mensagens do homem que amo, na felicidade estampada no rosto de quem realiza um sonho. São muitas as manifestações da face iluminada de Deus, assim como são muitas as manifestações da sua face sombria. A miséria, a fome de milhões de crianças, a fúria da natureza quando destrói e mata, a carnificina das guerras por motivos tão fúteis e tão estúpidos, o sofrimento de um amigo querido destroçado pela doença, o preconceito, a corrupção dos governantes, a inveja, a cobiça, o egoísmo e aqueles tantos outros pecados capitais dos quais somos vítimas. Sim, Menino Jesus, somos vítimas já que os pecados fazem parte da nossa natureza. Fomos criados assim e não temos culpa se Deus, nesta parte, errou o alvo. Errar o alvo é a origem da palavra pecado, né não? Soube que vem lá do grego (hamartia).
Se culpa temos é a de não fazer prevalecer o bem nessa eterna luta contra o mal. É o que deveríamos tentar diariamente.
Então, eu vou me ajoelhar diante de você, Menino Jesus, representante de Deus escolhido por mim, e que repousa tão lindo, tão terno no meu presépio. Não para lhe pedir paz, saúde, prosperidade e abundância como é costume nesta época. Tudo isso eu já peço e desejo para os meus amigos e parentes adorados, sempre e todos os dias. Este ano, nesta época, o meu pedido é outro: que saibamos entender esta dualidade, com ela conviver e dela fazer uso. Assim, nos tempos sombrios, quando as trevas dominam, saibamos olhar para o céu e apreciar as estrelas. Já, quando o tempo é de claridade, tanta que nos cega, saibamos meditar às sombras das árvores. Peço, ainda, Menino Jesus, que, no combate contínuo travado entre o bem e o mal, seja sempre a nossa face luminosa, a luz que existe em nós, a se sobrepor, triunfante e soberana, às trevas que nos habitam.
É o que desejo, do fundo do meu coração, para mim e para todos vocês.
Cecília Maria De Luca
30 comentários:
Foi o melhor texto de Natal que já li!!! Sensacional!!!
Cecília Maria De Luca, simplesmente amei. Parabéns!!!
Perfeição, palavra para definir essa reflexão! Verdadeira, palavra para definir essa crônica! Emoção, palavra para explicar o que senti ao ler!!! Obrigada, Cecilia Maria De Luca, por proporcionar essa leitura!
Cecilia orai por nós! Que antes do natal as campanhas publicitárias já nos destituíram da simplicidade. Ler sua crônica é caminhar acompanhado, um passeio. A tradição dos nossos pais está ali, e o que eles não nos disseram também. O menino Jesus - não aquele, mas o desse tempo frenético - nasce esperando a quarta feira de cinzas... Hoje não! Estou no seu texto, e grato ainda espero pelo natal. Parabéns por sua publicação.
Adorei!
Parabéns amiga Cecilia Maria De Luca! Fantástica reflexão "NATALINA..." É mais ou menos assim que me sinto..., Diante das dores do mundo e da minha própria... Diante da fé que cultuamos fervorosamente!Talvez por ser mesmo esta fé a nossa única saída e tábua de salvação em momentos cruciais de nossa própria "DUALIDADE DE SER".
"Vejo a face iluminada de Deus na risada de um amigo", assim como vejo o toque divino nesta cronica tao cativante. Parabens, Cecilia. Adorei.
Texto inspirador! Importantes reflexões para o resgate do significado mais profundo do natal!
Amém! Eu não sei se o mais bonito neste texto é a sua capacidade de revelar a dualidade do ser humano, a sua humildade de se confessar falível, o amor pelos seres que estão ao seu redor ou esse jeito todo seu de nos fazer refletir sobre coisas que a gente teima em não ver. É uma oração, Cecilia. E um presente de Natal. Você se expõe e nos obriga a nexpormos a nós mesmos e às nossas pequenas questões, mas também às nossas possibilidades infinitas como pessoas de amor. Obrigada pela beleza dessas verdades.
Qdo inciei a leitura, pensei que leria mais um texto clichê sobre esse tema tão batido... Mas é incrível como vc conseguiu ser original e proporcionar reflexões tão profundas e necessárias, e não apenas pontuais, mas reflexões que devem ser perenes. Reitero o que a Cinthia disse sobre a abordagem precisa da dualidade e de sua capacidade invejável de - em escrita absolutamente refinada - nos mostrar coisas óbvias que insistimos em não ver. Me fez lembrar o poeta Caetano: "E aquilo que, nesse momento, se revelará aos povos / surpreenderá a todos, não por ser exótico / mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / quando terá sido óbvio". Parabéns pelo belíssimo texto, amiga!
"Peço, ainda, Menino Jesus, que, no combate contínuo travado entre o bem e o mal, seja sempre a nossa face luminosa, a luz que existe em nós, a se sobrepor, triunfante e soberana, às trevas que nos habitam." Amei esse final, sim somos a luz e sombra que ainda habita todos nós. Deus nos permite o livre arbítrio, para que vivenciando a luz e as trevas, e em fazendo a escolha, saibamos com clareza qual dos caminhos nos leva à felicidade! Parabéns, amiga querida, adorei o texto!! Bjosss
Cecilia, posso garantir a você que o Menino Jesus adorou sua crônica. Pude ver nos olhos dele. Pude ler no sorriso. Pude sentir o carinho que ele jogou para você. Pediu-me que agradecesse tudo o que você falou dele. Acho que ele pensa igual. Bem igual. Que lindo texto. Parabéns.
Ter e ser...
eis aí uma grande diferença da mente e de nosso coração:
falar e fazer,ter e desfrutar,entender e sentir!
Parabéns pelo texto,ensinamento de vida!
Minha distancia de Deus é longa. Mas, resolvi dar um crédito pela beleza dos seus textos e modo de encarar a vida,Lí sua crônica e não me arrependi. e enalteço a sua inteligencia e sensibilidade Parabéns..
Narcilio Noronha
Agradeço a todos vocês, amigos, conhecidos e anônimos pela leitura e comentários elogiosos que teceram por aqui e pelo facebook. Para quem escreve, não existe prazer maior do que saber que seu texto foi lido e apreciado. Então, vocês podem imaginar o tamanho da minha alegria ao ver que essa publicação já recebeu mais de cento e vinte visualizações. Sinto-me emocionada e estimulada a escrever sempre e cada vez melhor. Sem saber ao certo se mereço tanto carinho, só posso deixar registrado aqui o meu muito obrigada e desejar a todos, além do que já desejei nessa reflexão, um Feliz Natal e um esplêndido Ano Novo!
"Um céu noturno cheio de estrelinhas e, claro, a estrela maior de todas que uns chamam d’Alva, outros de Vênus, outros ainda de Sirius. A brilhante estrela que os Reis seguiram para presenciar o seu nascimento, levando ouro, incenso e mirra. E fica lindo o meu presépio, principalmente no escuro, quando acendo as luzinhas e ele fica todo iluminado."
Adorei seu texto Cecilia, tão reflexivo que tornou-se sonoro aos olhos
Como pode haver tanta maldade no mundo se Deus, que tudo criou, é o sumo bem ? Eis a velha aporia com a qual diversos pensadores vêm se ocupando ao longo dos anos...O texto da Cecília repõe essa questão, mas o faz com uma ingenuidade tão intencional que ao leitor mais atento resta a sensação, talvez desconcertante, de se tratar de uma ironia bem refinada. Parabéns !
Mauro Pinheiro de Matos
Minha tão querida Cecilia... amei esta sua reflexão sobre o Natal... sobre o Cristo Menino. Pude senti-la menina... esta tua alma linda de criança.
Que perpetue-se entre os teus sonhos e brincadeiras de sonhar sonhos bons.
Na tua atitude de espalhar ao mundo a Paz e o Bem... como assim o fazes.
Receba o meu abraço carinhoso hoje... e todos os dias.
Porque de amigo... a gente cuida.
Obrigada, Eduardo Marinho. Seu comentário me encantou! Só um músico como você para entender a sonoridade do texto.
Ottima riflessione il tuo testo Cecilia. Quando in questi giorni, con i miei nipotini, realizzeremo il presepio, esorterò Gesù Bambino perché mi insegni a perdonare il vicino che butta la sigaretta ……... Inoltre pregherò perché le sofferenze di questa nostra società abbiano a finire.
Karla, Bruno, é com muita alegria que percebo o olhar carinhoso sobre pelo meu texto. Mauro Pinheiro de Matos, seu olhar certeiro também me encantou. A todos vocês, meu muito obrigada.
Cecilia... vi a ternura da menina carinhosamente a armar o presépio, cuidadosamente detalhando para que ficasse cada vez mais belo... Ao mesmo tempo que, a adulta questionadora, buscava respostas já sabidas. Pois o coração, cheio de sentimentos cuidados, caminha na vida sempre com observações inteligentes. Linda crônica Querida Amiga. Obrigada sempre por mais um aprendizado. Donna Boris
Excelente reflexão, Cecília! Quanto ao texto, é um desses sobre os quais a gente reclama 'porque num fui eu que escrevi?'
Crônica que apaixona. Te leva aos campos da infância onde tudo é belo e inocente! Mas te conduz ao presente, tão destrutivo, que nos faz duvidar da existência de Deus. Mas, lá está Ele, soberano, grande e majestoso a nos dar novas forças e a reviver os sentimentos de que teremos paz e amor a nos conduzir a um mundo mais tranquilo e melhor
Donna Boris, você é encantadora, obrigada minha amiga! Gina Eugênia, seu elogio me gratifica, grande cronista que é você. Aristóteles, sua leitura e apreciação me deixam extremamente feliz. Obrigada, meus amigos, mesmo!
Gostei muito Cecília, principalmente quando fazes a mea culpa de nossas imperfeições, pois somente exteriorizamos o melhor de nós, escondemos "o resto".
Os melhores votos para você nestes estertores de 2013.
Maravilhoso!!! Parabéns Cecilia Maria!
"Peço ainda, Menino Jesus, que no combate contínuo entre o bem e o mal, seja sempre nossa face luminosa, a luz que existe em nós, a se sobrepor, triunfante e soberana, às trevas que nos habitam".... AMÉM!!!!!
Parabéns minha querida Escritora que sempre toca o meu interno. Fiquei encantada com a dança das palavras, luzes, sombra, dualidade. Parabéns pelo belo texto que me fez refletir bastante.
Elizabeth, que bom você! Obrigada pela leitura e palavras tão carinhosas, minha amiga!
Como é bom ver que ainda há pessoas com senso crítico, que pensam, que se recusam, como eu, a serem tratadas como ovelhas que se limitam a seguir um pastor. E que, apesar de possuírem uma visão tão clara das coisas, tanto discernimento e tamanho grau de percepção do lado ruim do ser humano, das atrocidades do mundo que ele mesmo criou (e não Deus), conseguiram preservar a bondade da alma, a poesia, a esperança, o amor pela vida, a lucidez e até mesmo algo de pureza e da ingenuidade infantil. É o que vejo como pano de fundo, como verdadeira mensagem desse texto maravilhoso. Vamos refletir em cima disso e continuar a fazermos o nosso próprio presépio nos outros 364 dias de cada ano. Marcelo.
Marcelo, bom saber que você passou seus olhos generosos sobre o texto e, melhor, entendeu a mensagem. Muito, muito obrigada, pela leitura e compreensão. Feliz 2014!
Postar um comentário