– A questão não é simples, não é nada simples…
Tirou o chapéu e limpou com a mão o suor que
escorria da testa. Falava a meia voz para si próprio, ruminando prós e contras,
enquanto estudava o problema. O problema, pelo seu lado, não estava nada
preocupado; comia a erva verde e suculenta com todo o vagar, as orelhas a
variar de direcção de forma autónoma.
– Se fosse meu era simples… Mas não é meu. Se fosse
meu vendia-o juntamente com a cabra e as galinhas, acabava-se o problema e
ainda me dava uma ajuda nas despesas… Mas eu prometi ao miúdo.
Tinha prometido ao filho, quando ele fora para
terras de França em busca de futuro, que tomaria conta do Sr. Doutor e não
deixaria que nada de mal lhe acontecesse. O filho tinha pelo burro uma afeição
completamente irrazoável mas uma promessa é para cumprir e ele prometera, pelo
que o problema era mais complicado do que se o burro fosse seu. Agora não sabia
bem o que fazer.
Não podia levar o burro para Lisboa. Não podia
deixar de ir para Lisboa, no mínimo por 6 ou 7 meses, o mais certo era ser por
um ano. Não podia abandonar o Sr. Doutor e deixar o bicho ao Deus dará, tinha
prometido ao filho que nada de mal aconteceria ao animal. Não se podia desfazer
dele.
Suspirou. Tinha cerca de um mês para resolver a
questão, um mês passa-se num instantinho e havia outros assuntos para tratar.
Passou a mão pelo lombo peludo.
– Ai, Sr. Doutor, os trabalhos em que eu me meto…
Ia falar com o vizinho. Pagaria uma renda pela
existência sossegada do burro, o suficiente para pagar a despesa e um bocadito
mais que incentivasse o vizinho a tratar bem o animal. Certamente o Manuel não
diria que não, eram bons vizinhos há anos.
Foi para Lisboa triste. Nesse ano o filho não veio
de férias; a mulher, muito grávida, tinha sido fortemente aconselhada a evitar
viagens e outras canseiras.
– Ora, paciência, quando vierem já trazem o cachopo
e eu também já estarei em casa!
Tirou o chapéu e limpou com a mão o suor que
escorria da testa. Falava a meia voz para si próprio, como sempre, hábito ganho
desde que a mulher se fora, há longos anos. A sua própria voz, falando consigo
mesmo, era como um velho amigo com quem se debate amigavelmente as dificuldades
da vida... Com as vantagens de estar sempre presente, não precisar de rodeios e
nunca se maçar.
– Mas se tivessem vindo era bom, raios partam a
vida que só traz problemas. Quem deve estar bem é o Sr. Doutor, folgado a
mastigar a erva!
Riu-se.
– Ó rapaz, pareces o teu filho, não fizeste outra coisa estes meses todos senão falar no burro! O que vale é que voltas para a terra no mês que vem, não tarda fartas-te do animal.
Riu-se outra vez, feliz por voltar para casa.
Detestava Lisboa, o barulho incessante, o ritmo imparável, a pressa permanente.
Nunca gostara de cidades mas Lisboa era a pior. Não que conhecesse muitas mas
Lisboa era a pior de certeza. Raio de gente, sempre a correr de um lado para o
outro!
No comboio para casa falou consigo próprio só em
pensamento, as pessoas não compreendiam e começavam a olhar para ele de
esguelha. Fora uma lição que tinha aprendido depressa, quando viera para Lisboa
há 10 meses atrás e nem se podia dizer que era mania de cidade – os olhares
mais desconfiados e os sorrisos idiotamente superiores vinham as mais da vezes
de gente do campo como ele.
Mas o sorriso largo e o ar radiante, esses não os
conseguia disfarçar.
Chegado a casa, passou a mão devagarinho pela
porta, acariciou a parede com uma ternura insuspeitada. O Lar... Aquelas
paredes, as portas e janelas, até o telhado, tudo era parte de si, tudo trazia
memórias, alegres umas, tristes outras, mas todas suas, muito suas. Antes de
entrar olhou longamente a paisagem, enchendo o coração de tudo aquilo que tanta
falta lhe tinha feito no período de exílio.
O Manuel e a mulher fizeram grande festa quando o viram, espantados, julgavam que só voltaria dali por uns meses. Sentaram-se à mesa, a mulher trouxe uns petiscos, falaram da ida, de Lisboa, da maluqueira em que andam as gentes das cidades, do filho e da nora, do garoto que se fazia anunciar, das novidades da terra, o vizinho dali e mais o daqui, do padre, de tudo. Já só faltava falar do burro.
– Manel, vou levar o Sr. Doutor.
– Ó pá… O burro, sabes… O burro teve um acidente.
– Um acidente?!? Mas que acidente?
– Começou a coxear, sabe-se lá porquê. Ainda o
levei umas poucas de vezes ao veterinário mas no fim não havia nada a fazer,
tinha de ser abatido. Comemos o bicho na semana passada.
– Comeram o Sr. Doutor?!?
– Sim, o veterinário garantiu que não havia
problema nenhum com a carne, podia-se comer. Tu sabes a como está o preço da
carne, não sabes? Ainda há alguma ali na
arca, guardámos para ti.
– Comeram o Sr. Doutor?!?
– Sim mas olha que não fomos só nós, demos aqui uma
festa e vieram todos. Estás a ver, um burro tem mais carne que um porco.
– Uma festa? Para comer o Sr. Doutor?!?
– Porque é que estás sempre a repetir a mesma
coisa? Sim, que é que querias que a gente fizesse ao animal?
– O Sr. Doutor?!? Mas vocês comeram o Sr. Doutor??
– Ó pá, outra vez?!?
No caminho para casa, continuava a
sentir-se irritado. Passou a mão pelo lombo do animal:
– Burros, burros são os homens, podia ter-me dado
uma coisa má. A ver se riam daquela maneira, grandes animais, se eu lhes morresse na sala de estar! Ó Sr. Doutor, já viste o que era, eu morrer lá na sala quando eles me dizem que tu estavas morto e comido?!?
Riu-se. Tirou o chapéu e limpou com a mão o suor que
escorria da testa.
1 comentários:
Muito bom. Uma ternura.
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