Eu gostaria de ser daqueles que amam o natal, que se empolgam com as festividades. Mas antes de andar como os outros nessa invisível fila indiana; antes de acompanhar tudo como a boiada que é guiada pelo peão, lembro contraditoriamente que também sou humano. E apego-me nesse último suspiro de subjetividade, nessa autenticidade que tanto me orgulho e que faz me infeliz. Quisera eu fechar os olhos e como tantos outros acreditar que o natal é um feriado genuinamente cristão e não um dos muitos ritos que foram roubados. Uma estória pagã roubada e apropriada, assim como tantos outros tesouros que foram roubados e apropriados pela Igreja. Gostaria de olhar para o Papai Noel e ver nele um bom velhinho, que com a ajuda de duendes e fadas alegram o natal de tantas crianças pelo mundo a fora, mas ao invés disso eu vejo o garoto propaganda de uma empresa de refrigerantes. É triste pensar que até o bom velhinho se vendeu. E, se vendeu por tão pouco. Acho que hoje ele vive uma mentira e ainda pensa que é um bom velhinho.
Talvez eu olhasse para o natal de maneira diferente, se não tivesse lido tantos livros sobre as origens dos natal, descoberto tanto mitos que o cercam; talvez se eu não quisesse ter um olhar autêntico, diferenciado dos outros. Talvez eu olhasse para o natal de uma maneira completamente diferente se eu tivesse alguém para me preocupar, alguém para passar os feriados familiares, alguém para passar o natal.
Eu juro que fiz, ou tentei fazer, a minha parte. Eu me casei com uma bela moça. Na verdade, ela não era tão bonita assim, mas para mim era a mulher mais linda do mundo. Sempre foi. Fui homem de uma mulher só. Eu casei por amor, ela por que precisava. Estava grávida e o pai do bebê não queria assumir. Os tempos eram outros. Ela não tinha muita escolha. Eu não ligava. Eu a amava tanto, sempre a amei. E sei que com o tempo ela também me amou. Amei o filho que não era meu da mesma maneira como amei meus dois outros filhos, talvez mais porque sei que foi esse menino, o primeiro que ela teve, que a trouxe até mim.
Tive anos felizes ao lado da minha família. E eu nem me importava com o natal, era apenas uma data para que pudéssemos ficar todos juntos. O tempo foi passando, as crianças tornaram-se adultas, saíram de casa, se casaram. Eu e a minha amada ficamos velhos, vieram as doenças. Cerca de 10 anos ela faleceu. Então tudo mudou.
Os meus filhos me abandonaram. Eles simplesmente me largaram aqui. Os dois mais novos nunca mais os vi. Eles já tinham filhos e não tinham tempo para mim. Foi na época em que me enterraram aqui. Diziam que eu precisava de cuidados e eles não poderiam cuidar de mim. Então era isso, eu estava com 79 anos e acharam que eu já estava muito velho para cuidar de mim.
Parecia uma vingança. E eu juro, não fui um mal pai. Fiz o que eu podia fazer: paguei os estudos de todos, dei-lhes comida, viajei com eles. Brincávamos. E hoje eles me dizem que não há tempo nem para uma conversa com o velho aqui. Por isso que digo enterraram-me para que eu apodrecesse nesse asilo. Não, não se diz mais asilo. Agora os tempos são outros. Agora eles chamam isso de casa de repouso. Um novo nome para prisão. Sim, porque isso é uma prisão. Se você é colado em um lugar sem o seu consentimento, onde lhe tiram a dignidade eu chamo de prisão. Há muitos do meu tempo que chamavam de campo de concentração ou campo de extermínios. A diferença entres esses asilos e as prisões ou os campos de extermínios é a esperança. Nas prisões, campos de concentração e nos de extermínio há esperança. Um pouco de esperança que um dia se possa sair vivo de lá e voltar a ter uma vida. Nos asilos não há esperança de ter uma vida novamente. Você só sai morto.
Ironicamente é com meu dinheiro que eles pagam esse meu corredor da morte. Tiram-me o meu dinheiro, a minha dignidade, os meus sonhos e me jogaram aqui para morrer. Venderam a casa, na qual eu morava e dividiram o dinheiro entre eles.
Mas ainda tive momentos de alegrias. O mais velho, o bastardo. Não bastardo não. Bastardo é uma palavra tão feia, tão ofensiva ele não precisa nunca saber disso, ouvir isso. O mais velho, aquele que não levava o meu sangue. Assim esta melhor. O meu filho mais velho vinha todos os domingos, no início com a esposa e com o meu neto, depois vinha apenas com o meu neto e por último aparecia só. A esposa, eu sabia, não gostava de mim e deu um jeito de voltar o meu netinho contra mim. Mas meu filho continuou vindo. Ele aparecia, quase todos os domingos durante cinco anos, mas um dia também desapareceu.
Consegui com que um funcionário, o qual conversava muito comigo e às vezes com o meu filho, ligasse para a casa do meu menino. Eu queria saber se estava tudo bem com ele. Podia doer saber que ele também havia se cansado de mim, mas eu preferia a verdade. Uma mentira que falamos para nós mesmos. No fundo, a gente nunca quer saber de fato a verdade, a gente quer é que continuem mentindo para a gente e que nos iludam que tudo vai dar certo. A verdade dói. A verdade é que o meu menino havia morrido. Se ele tivesse bem e apenas não quisesse mais me ver teria doído mais. Quando ele morreu, senti que não tinha mais família. Não sei se os outros estão vivos ou mortos. Para mim era como se outros dois também tivessem morrido.
No fundo, eu não quero culpar meus filhos, mas cresce em mim uma raiva pela vida que não consigo controlar. Eu não consigo falar direito, não caminho direito e acho que isso fez com que eu não pudesse mais continuar com a minha vida, mas eu queria poder decidir. Por que não podemos decidir pelo futuro da nossa vida? Sempre tem alguém que sabe mais da nossa vida do que nós mesmos. É mais fácil cuidar da vida dos outros do que na nossa. Mas queria ver se era mais fácil mesmo, se as decisões tomadas pelos outros tivessem que vir também com a responsabilidade e que as consequências recaísse sobre quem decidiu. Queria que meus filhos sentissem um pouco da solidão que eu sinto aqui dentro e não por que eu decidi vir, mas por que trancafiaram-me nesse ASILO.
Então não me condenem, se pareço um velho rabugento e que não gosta de natais. Não me culpem, se o melhor que posso esperar é morrer. Entendam que ficar feliz nessa época do ano, me custa muito. Hoje eu sei que sorrir enquanto esconde sua própria tristeza não é fácil. E percebi que não preciso mais esconder nada.
Eu tenho tempo. E penso muitas coisas. Por exemplo? E se a morte viesse ao meu encontro na data em que comemora-se o nascimento do menino jesus? Isso mesmo no dia do natal? Não teria pensado em melhor presente para acalmar essa alma que grita das dores, das cicatrizes do passado do peso que se tornou viver. Não há desejo de morte. Quando se fica velho a morte não é desejada, é certa, mas a cada dia se negocia um dia a mais, mas ei que vejo me cansado da luta e da batalha. Não desejo a morte, mas viver tem-se tornado um peso do qual eu não posso suportar mais. Talvez seja a sensação de que revele que sua hora chegou e sabe-se que então a que resta é enfrentar o juízo final. Não temo o deus que me julgará, seja ele quem for. Sei que fiz mina parte, fui ã missa rezei meus pecados, pedi perdão pelas falhas, mas quando se chega a certa idade, nada disso faz tanta diferença. Vou a missa mais para fugir dessa solidão do que para rezar ou redimir dos meus pecados. Afinal que coisa de tão grave um homem comum pode fazer para ser impedido a entrar no portões do céu e encontrar-se com os seus. Não temo deus. Espero pelo menos uma casa com lençóis limpos uma cadeira para conversar com os amigos no fina do dia. Será que há dia e cadeiras no céu? Será quem meus amigos estarão por lá? Será que meu filho e minha amada me aguardam para que juntos possamos comemorar o natal, como uma família feliz novamente?
1 comentários:
Um texto sensível e profundo, que propõe uma reflexão necessária. Mto apropriada para esta data. Parabéns!
Postar um comentário