Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O tempo da gente (crônica do colunista Lohan Lage Pignone)

(*postando a pedido do autor, que está com problemas no computador)
Eu quero ter muitos anos sem tê-los.
A gente costuma desejar tanta coisa, e, geralmente, nossos atos diários denunciam o nosso esquecimento, ou mero descaso, no que tange a almejar uma vida mais longeva. Queremos tudo right now como se fôssemos empacotar a algumas horas. Aprendi com o meu avô o que é empacotar, ele sempre dizia isso quando ventava muito. Era dia de “alguém empacotar”. Até que no dia dele, a natureza pareceu ter tirado folga lá na minha cidade (exceto a dos homens, que bateu ponto com ele). Empacotar é simples, eu descobri. Basta vestir com traje decente, ignorar a frieza do mármore, a geleira do corpo (e aqueles algodões, provocadores de espirros que não mais); o agente funerário de olhar mórbido depositando o corpo no pacote de madeira com o cuidado que deveras ele não teria pelo homem em vida. Enfim.
            Quero a idade tal como uma carta sem remetente.
Envolta de mistério, desprendida de velhos calendários rabiscados. Que os traços físicos e os comentários que remetam a saberes antepassados não entreguem de bandeja os anos que sou. Também não suportaria viver com canos nas narinas, tampouco agulhadas nas veias vulneráveis. Remediar a pressa das horas para que anos mais tarde eu possa me dar ao luxo de esquecer a hora dos remédios.
            Quero ser como o casal que observei em um hotel fazenda. Os senhores, vivazes e elegantes; o homem, com aspecto de quem fora atleta, talvez jogador de basquete, pela altura, quem sabe. Ela sabe. Uma senhora de trejeitos comedidos, daquelas que exalam cultura. Será uma escritora? Uma colunista conservadora do jornal “O Globo”? Quem sabe. Ele sabe. Um brinde à vida, e goles de um bom vinho tinto. Uma, duas xícaras de café após o jantar. Meditação a dois. Quebrando os protocolos, eis que apresentam vossos smartphones. Agora, cada um na sua, relaxados em seus assentos, mergulhados nos e-mails por responder, ou mesmo nas ideias alojadas numa pasta de rascunho; parecem ativos, imagino. Aposentadoria que nada. Talvez nem tenham idade pra tanto. Eu quero este talvez. Almejo o indecifrável acúmulo dos anos. E por que diabos eu disse quebrar protocolo?
            Eu quero ter muita idade e parecer que não tenho.
Sem aderir a plásticas, isso não. Quero ter um perfil na rede social que já vai ter desbancado o Facebook e manter a imaginação fértil num mundo que já terá dito (ou ditado) tudo. Viver na cidade grande e ter a vista boa pra poder dirigir até o campo nos finais de semana. Pegando a estrada, desejo ter ao meu lado uma parceira de vida toda, com a qual compartilharei uma canção também de vida toda, um Chico Buarque, quem sabe. Nós saberemos.
Que os caminhos das nossas mãos, escavados pelo tempo, se entrecruzem pelo atalho singelo de um aperto, de um tocar, de um conduzir. E que somente nós saibamos o tempo um do outro.
Eu quero ter idade pra burro.
E poder acalentar na memória os causos de tempos imemoriais. Entretanto, não largarei mão das buscas pelo Google. A internet será minha memória acessada pela ponta dos dedos. Quero a veia matuta do meu avô e as antenas ligadas às invencionices do porvir.
Quero ser estrela. Incontável.
A vida marca nossas horas. A hora de desembrulhar, a hora de acasalar, a de empacotar. É como consulta ao médico em postinho de saúde. A bunda dói de esperar sentado. Sempre tem gente na frente. Mas tem que respeitar a vez.
Na minha vez, a tal inexorável, quero uma lápide sem inscrições. Que meu tempo não seja restringido a duas datas e, minha vida, limitada por um dizer clichê. Que me tornem indigente, um senhor desconhecido, quem sabe. Eu saberei. Quem me amou saberá.
Quero ser o nada que me compete, posto que, um dia, já terei sido tudo.
In memoriam
Manel Rodrigues Lage (meu avô)

Share


Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


3 comentários:

Vejo você cada dia mais maturando a sua escrita, burilando o emocional, deixando de ser jovem para ser mais velho (aqui, como mais maduro ). Eu me emocionei com essa crônica. Tem um jeito de dizer que toma conta da gente. Belíssima.

Amei essa crônica, Lohan, amei. Vontade de pinçar cada frase, mas encheria o espaço do comentário. Uma mais bela e verdadeira que outra. Pinço uma: "Quero ser estrela. Incontável." Parabéns, amigo.

Meu caro Lohan, eu, aos 80 anos, senti ainda mais profundamente tudo o que vc escreveu.Não sei se quero ser -depois - tudo o que vc diz. Acho que para mim será já de bom tamanho se alguém guardará, por algum tempo, tudo que eu penso ter sido....

Postar um comentário