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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Dez perguntas para Fernanda Pacheco

1 – Para começar, quem é Fernanda Pacheco?

Eu refletia muito sobre esse tipo de pergunta até o dia em que um pombo cagou nas minhas costas. De verdade. Parei de filosofar muito sobre esse tipo de coisa. Hoje eu sou uma poeta-mirim, de vinte anos, formada em história e que sobrevive de aula. Tive uma infância simples e fantástica que serviu de base pra tudo que sou hoje. Tive um grande amigo que incentivava minhas viagens, mesmo sem querer: meu avô Geraldo. Ele foi um cearense carinhoso que me levava pra andar pelo bairro, que me ensinou que comer arroz, feijão e banana é bom pra cacete, que sentava na calçada comigo pra ouvir Tião Carreiro e Pardinho enquanto tomava a cachacinha dele [peguei esse gosto], que falava de coisas simples e que me chamava de narizinho. Até os oito anos de idade acreditei cegamente que eu era a personagem do Monteiro Lobato, que a minha boneca falava e ele entrava nessa comigo numa boa. Eu me enfiava em tudo quanto era jardim pra caçar caracol, levava pra escola, pegava filhote de gato na rua e levava escondido pra casa. Ia pra chácara de uns tios e ficava atiçando a fúria dos marrecos, aí quando eles partiam pra cima de mim eu saia correndo pro colo do meu avô. Minha mãe é pedagoga, então livro infantil nunca faltou em casa e nisso eu tive sorte porque cresci longe de televisão e de computador. Isso tudo me ensinou a ter gosto pelas coisas mais simples, mas de um jeito muito inocente. Com oito anos perdi meu avô dentro de um contexto muito desagradável e a morte dele me fez ver as coisas de outro jeito, com o pé mais no concreto, de um jeito mais aborrecido, mas ainda com o filtro poético da coisa. Costumo dizer que ele foi o meu abrir de cortinas pro mundo. Nunca fui muito de sair de casa e por isso os livros sempre serviram como refúgio. Com 14 anos eu trabalhava na padaria do meu pai (português e padeiro, vê se pode) e curtia ver os bêbados pedindo maria-mole – coisa simples pra mim virou isso. Lia Aldous Huxley, George Orwell, Henry Miller, Hemingway, pirava no “Feliz ano velho” do Marcelo Rubens Paiva, não lia poesia, etc., e óbvio que tive que retomar todos eles anos depois (e vou ter que retomar daqui uns anos com certeza) porque com essa idade eu não compreendia o que eles diziam por completo. Só passei a entender um escritor pra valer com quinze anos quando conheci os escritos do Bukowski. Eu escapava das aulas pra ir até a biblioteca da escola e ficava por lá um tempo, aí acabei ganhando a confiança da bibliotecária. Ela tinha um armário onde guardava os livros “especiais” que não podiam ficar nas prateleiras e durante uma conversa e outra, abri o tal armário e comecei a fuçar no que tinha lá até que achei o livro “A mulher mais linda da cidade” do velho. Li em minutos e depois comecei a caçar outros livros dele nos sebos porque tudo que ele escrevia tinha essa tal simplicidade e ele dava voz às pessoas mais comuns que sempre são esquecidas, àquelas situações que eu via frequentemente quando era mais nova. Me identifiquei na hora e continuo me identificando com ele. Nessa mesma época um amigo me deu o clássico On the Road do Kerouac e aí a coisa desandou de vez.

2 – Por onde sua poesia anda?
Ela é andarilha. Anda por tudo quanto é canto faminta. Existem dois sujeitos que eu leio muito mais que os outros: Walt Whitman e claro, o Bukowski. Além dos dois eu tô sempre agarrada no Borges, Pessoa, Mário Faustino, Piva, Claudio Willer, Glauco Mattoso, Torquato, Chacal, Ginsberg, Ferlinghetti, na Pita Amor, Wislawa Szymborska, Diane di Prima, Hilda Hilst, Ana Camelo, etc. Recentemente conheci os poemas da Carolina Maria de Jesus que me tiraram o fôlego. Dos mais “novos” eu acompanho o Lucas Reis Gonçalves, o Marcelo Pierotti, o Junior Bellé e a Vanessa Carvalho. Fora da poesia, Gabriel García Marquez e Samuel Beckett talvez sejam os maiores companheiros. Mas eu procuro não ficar só na literatura. O cinema e a pintura também me influenciam bastante. E às vezes acho que a música me influencia muito mais que tudo, sabe? Uma vez o Hélio Flanders, vocalista da banda Vanguart, me disse o contrário: falou que se pega mais com a literatura do que com a música. Deve ser por isso que ele é meu compositor brasileiro favorito desses últimos anos. E é aquela coisa: tropeço com mais frequência no Tom Waits, no Dylan, no Sérgio Sampaio, no Itamar Assumpção, na Patti Smith, no John Cage, na Cida Moreira, no Chet Baker, nos Racionais, no Cartola. Aliás, assisti um documentário sobre o Sixto Rodriguez dias atrás que me impactou demais também. Coisas que não tem nome próprio também me alimentam.
Poesia é uma miscelânea.

3 – Quais as dificuldades de escrever poesia, literatura, hoje?
Esse “hoje” cai pesado! As dificuldades são aquelas entre o escritor e as palavras, dentro da relação dos dois, e não acho que sejam problemas só de hoje. Aliás, difícil mesmo é justamente sair do hoje. Eu não posso falar muito porque tenho muito chão pela frente ainda, mas a agonia, ansiedade, medo, aqueles momentos que a cabeça quase explode e você não consegue pôr em letras o que sente e não consegue formar nada com as palavras. Essas coisas acontecem com bastante frequência e dificultam ali na hora, mas isso é normal. Poeta vive com crise. A síndrome do eu-sozinho também complica: essa coisa de se isolar e de não querer conversar sobre o que se escreve com outras pessoas, de se fechar, de não querer ouvir, de não querer ler o outro, de não querer falar. Mas de tudo isso nada se compara com o depois da escrita. A leitura da poesia [da literatura de modo geral] deveria coexistir com ela, mas não é o que a gente vê por aí.

4 – Pergunta indigesta: como é seu processo criativo?
Não tenho processo pra escrever. E nem é papo blasé, não. É que eu não tenho mesmo. Muitas vezes opto por ficar sozinha, em silêncio, ouvindo algum som como o do John Cage e outras vezes, quando posso, vou ao MASP pra inventar história pra algum quadro. Tenho uns momentos de introspecção que me ajudam muito a criar. Às vezes fico obcecada por algo e começo a escrever tentando me basear na sensação que aquilo que me causa, como o mar por exemplo. Mas por outro lado, tem dias que gosto de andar por aí pra observar as pessoas (o jeito que elas andam, falam, choram, riem, jogam lixo no chão, pedem ajuda, rezam, etc.). Sem querer elas se tornam personagens dos meus poemas (putas, carteiros, viciados). Sou do tipo que vai à casa da avó a ouvir contar coisa do passado, reclamar do café frio, fofocar sobre a vizinha. Uma coisa em comum entre esses hábitos é que eu raramente falo, só ouço e observo. Não à toa, na faculdade, eu passei três anos estudando um cronista, o flâneur João do Rio. Com essas impressões e sensações os versos vão saindo, sem o compromisso de falar sobre as coisas óbvias do que eu vi e ouvi. O que conforta, acomoda e traz sossego não faz parte da minha escrita. Não é algo que eu busque pra escrever até porque não me instiga nem um pouco. E o mais importante de tudo: não forço verso. Posso enlouquecer com a cabeça a mil por hora, mas se a caneta não consegue rabiscar uma palavra, então eu largo e sei lá, tomo uma cerveja, assisto desenho animado russo, tiro a cutícula. Volto ao poema só quando tiver que ser.

5 – O nome de seu livro (A Culpa é do Chet Baker) refere-se à um cantor americano. A música tem um papel em seu processo poético?
Tem um papel enorme! Como eu disse, às vezes acho que a música me pega mais que a literatura. Cresci ouvindo música! E era doido porque durante um tempo fui vizinha dos meus avós, aí era Tião Carreiro, Teodoro e Sampaio, Tonico e Tinoco o tempo todo junto com os vinis do Queen da minha mãe. O Chet é um caso especial porque ele personifica o que eu tento escrever... Ele era uma melancolia convulsionada sem fim. Era o diabo cantando e tocando como um anjo! Não sei se isso soa contraditório, mas um dos raros momentos que não ouço música é quando escrevo. Música cozinha.

6 – Rilke fez a seguinte pergunta no seu livro Cartas a um jovem poeta: morreria, se lhe fosse vedada escrever?
Não. Você vem com o Rilke e eu vou com o Hampate Bá, um escritor africano importantíssimo pra mim. Ele diz (dentro de certo contexto, claro) que onde não há escrita, mas sim tradição oral, a relação do homem com a palavra é mais forte. Eu mais escrevo do que falo e devaneio mais do que escrevo. Se eu parasse de escrever, talvez criasse até mais.

7 – Existe diferença entre a poesia escrita por um homem e por uma mulher?
Pensei nisso dias atrás numa ida ao banheiro e digo isso sem querer banalizar sua pergunta. Fiquei pensando no que me impedia de escrever um poema sobre um diálogo mudo entre mim e as baratas paulistinhas que frequentam a pia de madrugada, por exemplo. Um diálogo desses durante uma necessidade humana tão imbecil como a de cagar. Digo isso porque se eu fosse um homem, certamente não teria problema. E não há problema mesmo, mas no mínimo uma estranheza. Mas falando mais sério agora, acho que tem diferença, sim, no âmbito da liberdade, se é que eu posso usar essa palavra. Há também uma expectativa romântica em relação ao que uma mulher escreve e quando a gente quebra isso, vem a frase besta “essa mulher escreve como um homem!” – um amigo meu lembrou desse dito absurdo durante uma conversa e cabe muito aqui. E porra, não tenho a intenção de escrever como um homem e nem como uma mulher. Só um imbecil pensaria “ah, hoje eu quero escrever poema como uma mulher/homem”. Na real, a questão não é sobre o que mulher e homem escrevem, mas sim a reação de quem os lê.

8 – O amor ajuda ou atrapalha na hora de escrever?
Ajuda. É um mal necessário. Amor é doido e doído.

9 – Você está sempre escrevendo ou tem mais o que fazer?
Eu vivo escrevendo por causa da minha formação que é em história e agora entrei naquela neura de começar o mestrado. Além das aulas que eu preciso montar. Escrever é o que eu mais tenho pra fazer, sem dúvida. Agora, sobre escrever poesia, eu não vivo porque senão eu iria perder tempo demais, mas tô aproveitando pra estudar a bendita (“O ser e o tempo da poesia” do Alfredo Bosi anda me ensinando muito) e pra ler/conhecer outros autores. Enfim, sabe aquela frase do Buk ,“dedicação sem talento é inútil”? E como eu já disse: não forço. Passo meses sem escrever poemas.

10 – Para terminar, gostaria de dizer algo?
Vamos tomar uma cerveja? 

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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


todo dia 17


1 comentários:

Coincidiu de ser o primeiro post. A democrática ordem da ilusão. Maravilhoso é ser o primeiro a enflorar-se de dez pequenas tertúlias.

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