A decisão estava tomada. Ele se mataria naquela
noite. Estava orgulhoso de si mesmo. Afinal, ia se matar pelo motivo certo.
Pensou nos homens que conhecera e que haviam decidido tirar a própria vida.
Motivo: falência, chifre, doença terminal. Não, ele não era um desses que se
matam por dinheiro. Ou porque são cornos. Ou ainda porque não aguentam sentir
dor. Ele era, por assim dizer, completamente normal.
Não deixaria um bilhete. Homens que deixam bilhetes
são todos uns dramáticos. Morrem querendo deixar para trás uma dezena de
culpados. A mãe que devia ter entendido os sinais; a esposa que não devia ter
gastado tanto; a amante que não devia tê-lo trocado pelo garotão mais novo; os
amigos que deviam ter oferecido um ombro em vez de deboche. Não, homens que
escrevem palavras de adeus são vingativos. Sempre querendo semear o remorso,
infernizar os vivos.
Ele morreria de forma muito digna. Morte com
planejamento. Já tinha pagado até pelo caixão e pela cremação. E por uma corbeille grande,
com faixa escrita e tudo. Uma corbeille... Mas afinal o que era a
porra de uma corbeille? Não sabia. Alguma coisa que se usa em
enterros, com certeza. E que é chique. Senão a mocinha da funerária não teria
lhe vendido com tanto orgulho o pacote 3C Primeira Classe, ou 3C-PC,
como era carinhosamente chamado. Bem, isso ele sabia explicar o que era. Um
pacote 3C-PC significava caixão-corbeille-cremação.
Aliás, essa tinha sido uma das razões que o haviam levado a escolher entre ser
enterrado ou virar cinzas. Explica-se. É que havia dois pacotes 3C disponíveis.
O de Primeira Classe, composto por caixão-corbeille-cremação,
como já se disse. E o Executivo, ou 3C-E, oferecido com
caixão-corbeille-cova. A propaganda impactante feita pela Boutique
do Último Leito (sim, mortais, funerária é coisa do passado)
contribuiu decididamente para a escolha. Do pó vieste, ao pó
retornarás. Mas tu decides como, dizia o folheto com letra em
negrito. Embaixo dos dizeres, duas fotos: em uma delas, um caixão sendo baixado
à terra por homens circunspectos; na outra, uma urna de porcelana magnífica,
nas mãos de uma pessoa sorridente. Na verdade, ele havia achado o sorriso um
tanto excessivo. Mas a mocinha das vendas logo o fizera mudar de ideia.
"Veja bem que é o sorriso de alguém feliz por poder levar consigo as
cinzas da pessoa amada." Como é que ele não tinha pensado nisso? De um
lado o chão frio e úmido dos vermes, de outro o frescor da porcelana acolhendo
as suas cinzas. Tudo bem que essa frase também era da mocinha, mas serviu bem naquele
momento de decisão.
Fez tudo sozinho. Não podia envolver no processo as
secretárias, nem a família, nem os amigos. Não se imaginava dizendo "Eu
gostaria da sua ajuda para organizar a minha morte". Não, eles não
entenderiam. Como explicar que se mataria porque era feliz? Que não havia nada
que já não tivesse feito na vida? Que tinha alcançado o que todos os homens
desejam: a plena realização — e que, exatamente por isso, estava na hora de
morrer?
Tudo em sua vida era perfeito. Tinha sido uma
criança feliz, sem traumas. Um adolescente bem sucedido, bom aluno, cheio de
amigos e namoradas. Adulto, tinha ficado rico. Muito rico. De um tipo de
rico que não se vê, só se ouve falar. Antes dos 40 anos, já conhecia 24 países.
Em 10 deles comprou propriedades luxuosas e estabeleceu-se em negócios
diversificados. Casou-se com uma mulher linda e gostosa. Deus, como era
gostosa! Mas não o bastante para impedi-lo de ter todas as amantes que quis,
loiras, morenas, roliças, magras, negras, asiáticas. Mulheres discretas que sabiam
como chegar e quando ir embora. Teve dois filhos. Lindos como a mãe.
Inteligentes como ele. E até mesmo o divórcio foi feito sem mágoas. Separou-se
da esposa enquanto ainda a achava bonita e excitante. Porque não queria
permitir a si mesmo vê-la definhar com a idade. Porque não deixaria que ela se
fosse quando já não a desejasse, ou quando não houvesse mais homens para
cortejá-la. Ele a amava demais para esperar ao seu lado o desgaste da relação.
Tinha saúde. E como tinha. Os médicos repetiam a
todo instante que ele era um exemplo de homem no cuidado consigo mesmo. Um dos
filhos já estava ao seu lado nos negócios e o outro fizera sua própria fortuna.
Eles o amavam e respeitavam. E haviam lhe dados netos. Crianças educadas,
rosadas e bonitas.
Sem pendências, portanto. Vida perfeita. Podia
morrer pelo motivo certo: plenitude. E na noite certa. Estrelada, silenciosa,
cheia de uma brisa fresca com cheiro de bos... Bosta?! De onde vinha aquele
cheiro de merda insuportável? Aquele fedor de embrulhar o estômago? Alarmado,
pensou que nada, nada podia quebrar o clima perfeito da noite da sua
morte.
Descendo as escadas com rapidez, saiu correndo,
transtornado, pelo jardim meio escuro, buscando a fonte do cheiro fétido. Na
pressa, tropeçou nos instrumentos deixados na grama pelos homens que haviam
trabalhado à tarde na abertura do buraco da nova piscina. Uma piscina olímpica
longa e funda. A topada o jogou para a frente com força e ele se sentiu voando
até que estatelou-se em alguma coisa malcheirosa e gosmenta. E nada teria
acontecido não fosse o azar de ter batido a cabeça em outro objeto qualquer
deixado ali por descuido. Maldito objeto.
Enquanto morria, sentindo o cheiro de merda que,
agora percebia, vinha da lama úmida que servia de chão ao buraco, e sem conseguir
mover nem um único membro do corpo grande, lembrou-se de que não tivera tempo
de escrever as instruções sobre o pacote 3C-PC para deixar
sobre a cômoda. Lembrou-se também de que não havia escrito cartas
ou bilhetes se despedindo, porque isso era coisa de homens dramáticos. Por fim,
lembrou-se de que dissera à mocinha da Boutique do Último Leito para
esperar até ser procurada por alguém com instruções. Não seria. E ele não seria
cremado. E os vermes lhe fariam companhia. E ele ficaria na terra fria, ossos
amontoados, distante de tudo o que amava, sem o frescor da urna de porcelana
envolvendo suas cinzas.
Enquanto o sereno descia sobre o seu
corpo imóvel, pensou em como gostaria de processar aquela empresa maldita,
aqueles operários relapsos. Se ele não morresse, talvez ficasse paralítico. E
teria que depender das pessoas e contratar enfermeiras e reformar a casa. Todas
as casas. Em 10 países. Se ele não morresse, e ficasse paralítico, se tornaria
incapaz para o trabalho, para o sexo. Se ele não morresse, veria, em poucas
horas, aquele jardim repleto de policiais colhendo evidências,
confiscando os objetos malditos. Se ele não morresse...
Ainda pensava nas possibilidades quando policiais e
paramédicos chegaram para salvá-lo, na manhã seguinte. Agora sim. Infeliz,
miserável, incompleto, não tinha mais nenhum motivo para querer morrer. Era,
finalmente, dono de uma vida imperfeita.
Imagem: O Homem Vitruviano, de Leonardo Da Vinci
9 comentários:
Maravilhoso e ironico: tal qual a vida. Parabens, Cinthia.
Sensacional! Você se supera a cada texto. Este é de um humor ácido tão perfeito que dói!
Sensacional e intenso! É o que se pode dizer ironia do destino! Sou sua fã!
Beijos, Beatriz Helena
a vida é realmente surpreendente: nada está tão bom que não possa melhorar; nada está tão ruim que não possa piorar; nada está tão perfeito que não possa desmoronar...
a vida pregando peças, a vida sempre na direção, no volante, comandando o nosso caminho... (ou descaminho) Parabéns pelo texto perfeito... e tão dolorido, como a Nena bem disse!
Muito bom
Perfeito. Fantástico! Apesar do tema, super divertido. Adorei, Cinthia!
Obrigada a todos pelos comentários. Abraços.
A forma como Cinthia narra a história as vezes dura, e tão real, que chego a visualizar o personagem. Neste conto * O Homem Perfeito * É sem dúvida nenhuma tragicômico, fiquei até imaginando como seriam as mulheres disputando a herança ! BRAVO !!!
olha...surpreendente e instigante! =)
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