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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Ensaio sobre a infidelidade

A palavra “adulterar” tem sido usada a torto e a direito. Já viu como os apresentadores de telejornais enchem a boca para dar manchetes tais como “Posto X adulterava gasolina”, “Farmacêuticos adulteravam medicamentos”, ou “Hackers invadiram computador do romancista Z e adulteraram o último capítulo”? Quando se fala em falsificar, corromper ou agir como mau-caráter, lá está o verbo promovido a genérico cumprindo seu papel. Mas esta crônica quer tratar do referido verbo em seu significado primeiro: cometer adultério, praticar infidelidade conjugal, ou – como preferem os falantes brasileiros – trair, manter um caso, ter um amante, pular a cerca, cornear, meter chifres, botar galhos, entre outras expressões menos polidas.

Assunto doloroso, que traz à tona sentimentos como decepção, angústia, amor-próprio ferido, perda da confiança no companheiro, pessimismo, mágoa, culpa, desejo de vingança. Tema compreendido – no papel e na pele, na teoria e na prática, na tela e no quintal de casa – por PhDs, universitários, analfabetos, misses, galãs, sedentários, esportistas, eleitores, governantes, big brothers e até por cronistas. Todo mundo parece saber opinar sobre chifres. Impressionante! Quando não falam dos próprios cornos – daqueles que com algum prazer colocaram, ou daqueles que com algum sofrimento receberam –, opinam sobre as relações ilícitas dos outros.

Outro dia, vi a deputada Manuela D´ávila confessando, no programa CQC, da Band, que seu ex-namorado, o atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, não foi fiel a ela durante o relacionamento. Se o maior gestor da Justiça do nosso país é afeito a relações ilegais com suas parceiras, o que sobra para os cidadãos comuns?

Em 2008, a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da USP, fez uma pesquisa sobre a infidelidade dos brasileiros. De acordo com o estudo, 68% dos homens e 42% das mulheres confessaram já ter traído o parceiro no namoro ou no casamento. E a percentagem parece estar só aumentando, hein? Em 2003, os que se confessavam infiéis eram 51% dos homens e 26% das mulheres. E, pelo que andei lendo aqui e acolá, só tende a crescer o índice de puladas de cerca elétrica – em grande parte por culpa da internet, que ajuda as pessoas a perderem a timidez e saciarem seus desejos mais libidinosos tanto no mundo virtual quanto no real.

Concordo com você. Não é apenas no Brasil que esse pecadinho é assim tão frequente. Parodiando Chico Buarque na música Façamos, lepidamente interpretada por Elza Soares: “Os espanhóis, os lapões fazem / Lituanos e letões fazem / Façamos, vamos chifrar / Nisseis, nikeis e sanseis fazem / Lá em São Francisco muitos gays fazem / Façamos, vamos cornear”...

Severamente punido em algumas partes do mundo – com penas de apedrejamento e até de morte –, o adultério foi considerado crime até 2005 aqui no Brasil. Mas apenas pela letra fria da lei, é claro. A regra, que previa pena de detenção de 15 dias a 6 meses para os criminosos, virou piada há décadas. Melhor assim. Já pensou se todo traidor fosse para a cadeia? Haveria muito pai de família trabalhador e dona de casa prendada atrás das grades. Quiçá a sua mãe e o meu tio. De repente até o ex-presidente e a presidenta, sei lá. Provavelmente você e o(a) vizinho(a) da direita, sei lá. Ou até mesmo o seu cônjuge e o(a) vizinho(a) da esquerda. Eu, não. Não levante falso contra minha pessoa. Sou esposa casta e direita.

Na verdade, quem me inspirou mesmo a escrever este texto foi um dos maiores adúlteros da História: o rei Davi, que se perdeu de amores por Betsabá, tendo desrespeitado a lei dos homens e a lei de Deus para se deitar com a bela senhora. Poderoso, o grande comandante do exército de Israel não conseguiu manter-se fiel a seu amigo e nobre guerreiro Urias nem a seu povo. Ao adultério, Davi acrescentou mentiras, acreditando que conseguiria encobrir seu erro. Por causa da tentação, Davi só conseguiu multiplicar seus pecados e a maldição sobre pessoas queridas. Aquele que tinha o coração voltado a Deus maculou Betsabá, causou a ruína de Urias, desvirtuou a si próprio, foi castigado por Deus, viveu muitas tragédias familiares. Sua escorregadela moral se tornou um exemplo histórico para a humanidade de que o adultério não é um mero pecadinho, não, e que deve ser evitado.

É, caro leitor. Assim como no passado distante, nos dias de hoje ainda parece não valer muito a pena meter galhos, não. O adultério tem causado guerra, morte, perda da guarda dos filhos, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, gastos com testes de DNA e com pensões alimentícias, entre outros probleminhas emocionais, jurídicos, financeiros. Será que também políticos e até sociais? Não sei. O cargo do ministro da Justiça parece não ter sofrido abalo, depois da declaração da bela deputada. Mas talvez haja vários casos de incesto por aí – consequência de vizinhos desleais que não confessaram seu pecadinho aos filhos. Por via das dúvidas, aconselho você a não adulterar a torto e a direito. Em nenhuma acepção da palavra. Contenha-se. Mantenha a postura. Seja fiel. Esta cronista conservadora suplica: “Façamos, vamos amar. Façamos, mas sem chifrar”.



Maria Amélia Elói, 40 anos, é brasiliense. Jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília, ela foi premiada em 2009 no III Concurso Literatura para Todos, do Ministério da Educação, com a obra Poesia Torta, no prelo. Em 2001, ganhou o Prêmio Nestlé/MEC pelo ensaio Idéias a Mais!: a crítica literária no JB e na Folha de S.Paulo no ano 2000. Há nove anos, é servidora da Câmara dos Deputados.

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