(carta
endereçada a Riobaldo encontrada em meio aos pertences de Reinaldo, jagunço do
bando, e entregue ao chefe, lacrada)
Tatarana, meu líder e amigo,
Riobaldo, meu amor,
Estamos perto do momento de encontrar a corja do
Hermógenes, e não sei como isso tudo vai acabar. Como vosmecê, não sei nada,
mas também desconfio de muita coisa. E tenho algo pra lhe revelar, mode vosmecê
compreender meu comportamento estranho.
Riobaldo, desde que o encontrei às margens do rio,
naquele barco, quando nós éramos dois moleques, eu soube que vosmecê fazia
parte do meu destino. Mesmo quando segurei sua mão gelada de medo, sabia que
seu sangue era quente, e que vosmecê só não conseguia ainda trazer o calor da
coragem pra ponta de seus dedos. Ainda não era a hora de vosmecê descobrir
tanta coisa, não de uma vez, mas sei que não terei muito tempo e que nossa
tropa vai se desfazer logo.
Não concordei com a sua decisão de trazer esse
menino e esse cego pra andar com o nosso bando. Criança e inválido não
guerreiam, só servem pra atrasar o grupo. Mas quando vi os dois andando
emparelhados com vosmecê, um de cada lado, eu entendi. Eles são seus guias,
Riobaldo, e estarão ao seu lado mesmo quando eu não estiver mais por aqui.
Eu guardo um segredo, Tatarana. Um segredo que
poderia mudar a nossa vida, mas que eu não podia revelar. Até hoje.
Sei que vosmecê pensa que sou filho de Joca Ramiro,
o maior chefe que o sertão já conheceu. E lhe afirmo, Riobaldo, que Joca Ramiro
nunca foi pai de filho homem. Ele é meu pai, sim, antes que vosmecê me tome por
impostor. Mas a menina que Joca Ramiro pegou nos braços no primeiro choro
deixou de existir, Riobaldo. Maria Deodorina, ou Diadorim, como vosmecê
conhece, calou seu choro e secou nas pedras das veredas. Sou como o cacto do
deserto, Riobaldo. A umidade de meu choro está escondida, e só poderia mostrar
a vosmecê. Jagunços só podem ver meus espinhos, que escondem e protegem meu
segredo mais precioso.
Cego Borromeu descobriu tudo, e tenta lhe contar o
tempo todo. Mas vosmecê é homem prático, acostumado à secura do sertão, e não
entende a música que ele canta. Ainda bem. É mais seguro assim. Ele fica triste
por vosmecê, mas sabe que caminho é que nem cruz, é coisa pra ser trilhada pelo
próprio, e que não dá pra fazer pelo outro.
Moleque Guirigó acho que também desconfia. Faz
muitas perguntas, sem parar. Às vezes, anda atrás de mim até que Borromeu o
chama. Prometa que sempre os trará ao seu lado, Riobaldo. Cegos veem o
invisível, e vosmecê precisa treinar os olhos da alma. Leve Guirigó também.
Vosmecê vai casar com a senhorinha – ai, como dói dizer isso –, e lá na fazenda
sempre terá lugar para o menino. Cultive a sabedoria e o silêncio do velho e a
curiosidade espontânea da criança. Caminhe no vão entre a escuridão da
cegueira, mas que vê a alma, e os olhos abertos, que denunciam. Com a
serenidade do velho e a leveza do menino, não haverá trilha ou vereda que
vosmecê não consiga transpor.
Sei que a senhorinha o fará feliz. Depois que eu
não estiver mais aqui, sua jornada será ao lado dela. Eu não sou nem a
mulher-dama nem a donzela, Riobaldo. Eu sou o Tudo e o Nada, mas não há lugar
pra mim na sua vida. Mire e veja. Não carece explicar mais.
Aquele pacto que vosmecê pensa que fez com o
tinhoso está só na sua cabeça. Que o demo, quando surge, não marca hora nem
lugar. Ele vige o tempo todo, no meio do redemoinho que arranca as coisas de
nós. Ele está nos crespos do homem. Não o alimente, que ele deixa de existir.
Um senhor chegará, e pedirá a sua história. Conte a
ele. Não deixe que outras pessoas tenham que viver escondidas dentro de si como
tivemos que fazer. E aí vosmecê ouvirá minha voz e saberá que estou bem.
Quando o vento soprar na curva do rio e vosmecê se
lembrar de mim, será com o alívio das frutas cheias de sumo, não com secura e
aridez. Quando o vento soprar na curva do rio, imagine meus cabelos longos, que
tive que sacrificar, e mire a liberdade que terei então. Deixe-os balançar ao
sabor do vento e, como eles, permita-se ser feliz.
Da sua (embora sem vosmecê saber)
Diadorim
6 comentários:
Isso é lindo!
Tatiana, Rosa deve estar sorrindo de orelha a orelha. Se não estiver, eu estou. Extasiada. Parabéns. Mesmo.
Belíssimo. Uma carta que deveria fazer parte de Grande Sertão Veredas. Parabéns.
Nossa! Extasiada fiquei eu, com os comentários de vocês. Muito obrigada pela leitura e pelas palavras.
Tocante a ponto de marejar as vistas e apertar o cordisburgo que habita a caixa do peito! já virei fã!
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