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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

(Des)receita de crônica


“Conto é tudo aquilo que o autor chama de conto” – disse Mário de Andrade. O cronista, fiel à despretensão que comanda seus vôos, poderia dizer: “Não é crônica aquilo que o autor se esquece de chamar de crônica”.

Mas o quê, pra valer, a crônica não é?

A crônica não é uma bula de remédio, mas o cronista pode, sob a forma de uma bula de remédio, contra-indicar-se para almas não-líricas.

A crônica não é um roteiro de cinema, mas o cronista pode roteirizar a rota dos seus descaminhos.

A crônica não é uma lei, mas pode assumir a forma de uma lei. Basta lembrar que Thiago de Mello deu ao lindíssimo poema “Os estatutos do homem” a forma de uma lei.

A crônica não é uma lista de compras, mas o cronista pode compor uma lista dos seus muitos quereres – quereres para si e para todos.

A crônica não é um relatório técnico, mas o cronista pode disparar seus disparates em forma de relatório.

A crônica não é um guia de viagem, mas o cronista pode guiar para o reino do ordinário muitos viajantes desorientados.

A crônica não é uma folha em branco, mas a falta de assunto já foi assunto de várias crônicas de variados cronistas.

A crônica não é uma declaração de bens, mas pode virar, graças à habilidade de um Paulo Mendes Campos, uma inusitada “Declaração de males” dirigida ao “Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda”.

A crônica não é uma receita, mas pode render, pelas mãos do já citado Paulo Mendes Campos, uma deliciosa “Receita de domingo”.

A crônica não é uma propaganda, mas o cronista pode ali gorjear seus encantos, sobretudo se ele for um sabiá da crônica.

A crônica não é muita coisa, mas pode vir a ser – isso é próprio de quem traz o tempo em seu DNA. Do mesmo modo que não se consegue imaginar o não-tempo, é quase impossível conceber a não-crônica. A mesma impossibilidade de algo ser uma crônica já anuncia a possibilidade de vir a ser. É só espargir sobre aquela impossibilidade o sopro criador do cronista – e tudo vira crônica.

A cara da crônica é cheia de máscaras. E sempre que alguns tentam colar as máscaras à cara, a crônica aparece de (más)cara nova. Desmascará-la, quem há de?


Vinícius de Morais dizia que a crônica pode ser tudo, menos chata. Mas, cá entre nós, e sem discordar do poeta, tudo o que a crônica não pode ser é anacrônica.

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