“Conto é tudo aquilo que o autor chama de conto” – disse
Mário de Andrade. O cronista, fiel à despretensão que comanda seus
vôos, poderia dizer: “Não é crônica aquilo que o autor se
esquece de chamar de crônica”.
Mas o quê, pra valer, a crônica não é?
A crônica não é uma bula de remédio, mas o cronista pode, sob a
forma de uma bula de remédio, contra-indicar-se para almas
não-líricas.
A crônica não é um roteiro de cinema, mas o cronista pode
roteirizar a rota dos seus descaminhos.
A crônica não é uma lei, mas pode assumir a forma de uma lei.
Basta lembrar que Thiago de Mello deu ao lindíssimo poema “Os
estatutos do homem” a forma de uma lei.
A crônica não é uma lista de compras, mas o cronista pode compor
uma lista dos seus muitos quereres – quereres para si e para todos.
A crônica não é um relatório técnico, mas o cronista pode
disparar seus disparates em forma de relatório.
A crônica não é um guia de viagem, mas o cronista pode guiar
para o reino do ordinário muitos viajantes desorientados.
A crônica não é uma folha em branco, mas a falta de assunto já
foi assunto de várias crônicas de variados cronistas.
A crônica não é uma declaração de bens, mas pode virar, graças
à habilidade de um Paulo Mendes Campos, uma inusitada “Declaração
de males” dirigida ao “Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda”.
A crônica não é uma receita, mas pode render, pelas mãos do já
citado Paulo Mendes Campos, uma deliciosa “Receita de domingo”.
A crônica não é uma propaganda, mas o cronista pode ali gorjear
seus encantos, sobretudo se ele for um sabiá da crônica.
A crônica não é muita coisa, mas pode vir a ser – isso é
próprio de quem traz o tempo em seu DNA. Do mesmo modo que não se
consegue imaginar o não-tempo, é quase impossível conceber a
não-crônica. A mesma impossibilidade de algo ser uma crônica já
anuncia a possibilidade de vir a ser. É só espargir sobre aquela
impossibilidade o sopro criador do cronista – e tudo vira crônica.
A cara da crônica é cheia de máscaras. E sempre que alguns
tentam colar as máscaras à cara, a crônica aparece de (más)cara
nova. Desmascará-la, quem há de?
Vinícius de Morais dizia que a crônica pode ser tudo, menos
chata. Mas, cá entre nós, e sem discordar do poeta, tudo o que a
crônica não pode ser é anacrônica.
0 comentários:
Postar um comentário