Dezoito anos sem um teto. Dezoito. Ela gosta dos números pares. Duas meias de lã, duas luvas de lã, dois sapatos, dois brincos de argola vagabundos. Escondidos no carrinho de supermercado parado ao lado da barraca improvisada com panos velhos. Na rua, nada está a salvo. Tem roubo. Tem porrada. Tem sangue pingando na calçada. Por causa de um barbante, de um jornal velho, de meia garrafa de pinga, de um papelão rasgado. Na rua, morre-se por um par. De luvas, de meias, de sapatos. Com a garganta cortada. Durante o sono pesado do porre de cada noite; de todas as noites. Na rua, dormir é luxo. Coisa de bêbado burro.
Ela se levanta às seis da manhã. Todo dia. Abre o saco de aniagem que ganhou na padaria. Confere cada item. Calça, uma a uma, um a um, luvas, meias e sapatos, e enrola no pescoço o cachecol comprido que encontrou no lixo faz alguns anos. Ela tem sorte. Sempre encontra o melhor descarte. E ainda ganha coisas boas das pessoas. Ela tem jeito de gente honesta. Não incomoda. Não toca no braço. Não cerca. Não insiste. Não grita. Não rouba. Já roubou. Muito. Mas não rouba mais. Pede. Troca latinhas e garrafas. Recebe pão, esmola, roupa velha, cobertor, sorriso. Trocas. Já roubou, sim. E já fez outras coisas. Não interessa. Agora, ela só faz o que quer.
Dezoito anos que fugiu das porradas da mãe drogada. Surra após surra. Porque não vendia todas as balas. Porque o dinheiro não dava para comprar outra pedra de crack. Porque se recusava a ser estuprada pelos homens para quem a mãe a oferecia. Não adiantou de nada. Destino é foda. Carma. Palavra forte. Ouviu de uma mulher que pastoreava carros no estacionamento do teatro. Carma. Carma. Carma. Carma. O dela era bem ruim.
Quando fugiu de casa, carregou três coisas. O retrato de um artista americano recortado de uma revista antiga (dizia para si mesma que era o pai que não tinha conhecido); uma fé tão ingênua que era quase esperança; e a virgindade, intacta graças ao facão que encostava no meio das pernas dos homens que tentavam trepar com ela.
Perdeu as três coisas no primeiro mês. O retrato, encharcado durante uma tempestade. A virgindade, na curra de quatro bêbados que ainda por cima bateram muito nela. A fé, destruída por cada caralho imundo que se enfiou dentro dela. Naquela noite e em muitas outras. Chorou no dia da curra. E sangrou. Depois que o choro e o sangue secaram, sentiu alívio. Perder tudo assim, de uma vez. Restar mais nada. Apenas realidade, essa ferida que só dói no primeiro corte. Sorte dela aprender assim tão rápido, tão de uma vez.
Fez a vida nas ruas. Trepou, fodeu. Abriu as pernas para qualquer um que pagasse ou lhe desse alguma coisa. Dinheiro, droga, boneca, casaco, comida, batom. Trepou em beco, em mato, em ferrovia, embaixo de ponte. Entrou em carro para fazer boquete. Em carro. Um deslumbre. Aquele cheiro bom que vinha dos bancos. Os vidros parecendo uma vitrine; separando dois mundos. Queria ter um carro. Ia morar dentro dele, pensou, enquanto chupava o pau nojento do homem que gemia e puxava os cabelos dela como se fossem rédeas.
Pegou barriga três vezes. Tirou dois. Um vingou. Descuido. Só percebeu quando não tinha mais o que fazer. Ninguém quis fazer. Ela tentou sozinha. Não deu certo. Sangrou tanto que foi levada para o hospital pelas mulheres da caridade que passavam uma vez por semana. Ninguém desconfiou dela. Ou sei lá. Desconfiou. Médico sabe. Mas achou melhor fingir que o sangramento era natural. A enfermeira lhe deu um remédio e a pôs numa maca suja e estreita no corredor. Dormiu feliz. Pensando em como era bom dormir numa cama. Esquecida de que a criança ainda estava dentro dela, viva.
Acordou mãe. Convicta. Ia ter a cria, ia lutar por ela. Um pedaço de carne que tinha forças para sobreviver a tanto pau espetado no útero merecia viver. Nem faltava muito. Três meses. E ela começando a imaginar coisas demais. Pensando na cara do menino. Na cor do menino. Eram tantas as cores dos homens com quem trepava. Pensando no nome do menino.
Nasceu menina. Magra, calada, parecida com ela. Não, menina não! Que pesadelo da porra! Ela não ia criar carne para nenhum fodido estuprar. Preferiu não dar nome para a criança calada. Fez bem. Não ia viver mesmo a infeliz. Ela sem leite, a caridade deixando alguma coisa uma vez por semana. Ela sem poder fazer a vida.
Tem tempo. Mas ela ainda se lembra. Da menina arroxeando numa madrugada gelada. Do cobertor fino, cinza, enrolado no corpinho pequeno. Da morte feito passarinho, sem soltar um som. Teve inveja de uma passagem tão bonita. Queria morrer igual. Sem piar. E ficou lá muito tempo, olhando aquele rosto sem nome. Depois, aconchegou a menina nos braços, como gente viva. Caminhou muito tempo. Com pressa. Precisava chegar a um lugar antes que fosse de manhã.
Quando deitou o corpo miúdo da criança na escadaria da igreja, faltava pouco para a primeira missa começar. Às sete horas, algumas pessoas chegariam. Algumas delas veriam o cobertor e se aproximariam. Um susto, um grito, um choro. Olhos procurando ao redor, tentando achar a filha da puta que tinha deixado a menina morrer. Ela já estaria longe. De volta para o seu canto sem igreja, sem hospital, sem cobertor. A pequenina ia ganhar solo sagrado no dia seguinte. Em cova rasa, como qualquer pobre fodido. Mas ia. Que esse povo de igreja não deixa ninguém sem enterro, sem reza.
Porra! Não é para ficar lembrando a cria morta. As coisas que o tempo leva pertencem ao tempo. Carma. Carma. Carma.
Duas meias de lã, duas luvas de lã. Guardadas porque o dia esquentou. Dois sapatos de homem de tamanho grande. Calçados para proteger os pés do asfalto quente e das calçadas imundas. Sapatos de pedir esmola. Encontrados no lixo. Tão novos que deveriam ser de gente que morreu. Falta pendurar nas orelhas pretas de sujeira os dois brincos de argola vagabundos. Ela gosta de números pares. E de pensar na morte dos passarinhos.
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