Joaquim Bispo
Quando Iago chegou a
casa, a mulher, Emília, apressou-se a dar-lhe as novidades:
– Já se começa a
perceber muito bem qual vai ser o aspeto final do retrato da minha senhora. Ela
está deitada num leito, toda nua, e do alto tomba uma chuva de ouro. Ao lado da
cama, há uma velha que tenta apanhar algum desse ouro. Mestre Ticiano diz que o
conjunto representa a figura mitológica de Dánae, engravidada por Júpiter sob a
forma de chuva dourada.
– Excelente! –
rejubilou Iago. – Quando volta Desdémona a posar?
– De hoje a uma
semana. A minha senhora não quer dar azo a que o marido desconfie de nada.
«Ah! Mal posso esperar
para insinuar indignidades aos ouvidos de Otelo», congeminava Iago. «Se eu for
bastante persuasivo, Desdémona será repudiada e não ficará em posição de ser
insensível aos avanços de Rodrigo.»
Uma semana depois, em
casa de Otelo, este desvenda a Iago alguns dos aspetos militares que o
preocupam:
– O Turco está cada
vez mais atrevido. Veneza está a pontos de perder Chipre e até de deixar de ser
senhora do Adriático. O Conselho está a ultimar uma aliança com o Papa e com Filipe
II de Espanha. Se esta aliança conseguir reunir uma grande armada, partiremos,
a confrontar os asquerosos otomanos, nem que tenhamos de lhes dar batalha nas
costas da Grécia. – Pensativo, continuou: – Não temo a batalha, mas
constrange-me ficar tanto tempo longe da minha adorada.
– Podeis ir descansado
que ela não se sentirá infeliz, isto é – gaguejava Iago –, terá o coração
choroso, mas tudo faremos para que não pense muito em vós, isto é, que se
distraia e só pense em coisas agradáveis, isto é, outras que não vós.
– Meu bom Iago –
esclarecia Otelo –, ela ficará bem com certeza, mas vós ireis comigo. Não vos
esqueçais que sois o meu alferes.
– Sim, ficará bem.
Disso não duvido. Ficará até muito bem. Não que eu tenha alguma notícia que vós
não saibais…
– Que quereis
insinuar? – espevitava-se o general. – Que sabeis, que eu não saiba?
– Eu? Nada. Falei por
falar. E mesmo que soubesse – espicaçava Iago –, jamais a minha boca se abriria
para denunciar a senhora da minha esposa.
– A maneira como
falais parece indicar que algo menos honroso se passa. Pela obediência que me
deveis, dizei: o que sabeis? – impacientava-se Otelo. – E não temais pela vossa
esposa, que sempre terá fidalgas a quem assistir.
– Se assim me intimais
– condescendia Iago – só vos posso confidenciar que Desdémona se tem encontrado
com um velho, a quem se expõe como Deus a deitou ao mundo. Não sei por que o faz,
se por lascívia, se por comércio.
– Quê? – esbracejou
Otelo, sentindo-se atraiçoado. – Pois ela entrega-se a outrem? Provai o que
dizeis ou despedi-vos da vida.
– Não mateis o
mensageiro, senhor! Perguntai antes à vossa amada onde vai todas as semanas,
neste dia.
– Sim, sim, chamai-a
já, que quero esclarecer este caso!
– É inútil chamá-la – devolvia
Iago – porque neste momento está ela a ser acariciada pelo olhar de Mestre
Ticiano na Scuola Grande de S. Rocco. Parece que o Mestre tem predileção por
corpos jovens e manifesta mesmo algum entusiasmo quando os seus pincéis
acariciam a superfície da pintura, talvez fantasiando que acaricia a própria
pele branca e sedosa de vossa esposa.
– Pintura? Ticiano?
Mas, pelas bombardas de popa, o que é que o velho quer de minha mulher? –
surpreendia-se o general.
– Os velhos, às vezes,
são os piores – aproveitava Iago. – Ele está a retratar vossa esposa como Dánae,
engravidada pela chuva dourada de Júpiter. Isto não parece muito decoroso.
– Oh, com mil raios da
procela, que indignidade! Vou expor esse quadro na praça de S. Marcos, para que
Veneza abomine essa devassa.
De regresso a casa,
Desdémona vê-se confrontada com a ira do marido:
– Muito folgo de vos
ver vestida – ironizou Otelo. – Tanto quanto sei, ainda há pouco oferecíeis o
vosso corpo à lascívia dos olhares de quem o deve conhecer melhor do que eu.
Desdémona quedou-se
muda e de olhar perplexo. Olhou em volta à procura da criada que lhe recusou o
olhar.
– Contai-me vós –
continuou Otelo – por que vos expondes nua ao olhar de Ticiano!
– Nua? – contrapôs
Desdémona. – Nunca Mestre Ticiano viu o meu corpo. O meu rosto aparece num
corpo nu, mas esse corpo foi o que preferi, num conjunto de desenhos e gravuras
que Mestre Ticiano me deu a escolher, quando contratei a feitura do meu
retrato. Só vou a S. Rocco para que ele retrate o meu rosto aplicado ao corpo
escolhido.
Agora, era a vez de
Otelo ficar sem palavras. Mas, logo quis saber:
– Afinal, por que
bizarria andais nessas andanças? Por quê, esse retrato?
– Era para ser um
segredo – explicou Desdémona, voltando a passar o olhar por Emília. – Vai fazer
um ano que eu e vós nos unimos pela carne. Essa união do viço duma jovem como
eu, com a força de um deus como vós, frutificou. Estou grávida. Sim, grávida –
confirmou sorridente, perante o olhar assombrado do marido. – Quis fazer-vos
uma surpresa e oferecer-vos uma imagem alegórica que evoque, todos os dias, esse
primeiro encontro dos nossos corpos, e o que dele resultou. O tema de Dánae foi
ideia de Ticiano.
Otelo ficou um bocado em
estupor. Depois, berrou:
– Iago! Estareis
sempre na proa do barco dianteiro. Quero que os otomanos fiquem a conhecer as vossas
feições. Podeis precisar dessas amizades no Inferno!
Caprichosamente, quem
não voltou da batalha foi Otelo, trespassado por uma bombarda turca. Desdémona,
desgostosa, não resistiu à perda do seu amado. O seu corpo foi encontrado a
boiar no Canal Grande. O quadro, no qual ela punha tanto empenho, acabou por ir
parar a Madrid, oferecido por Ticiano a Filipe II, em agradecimento pelo apoio
militar a Veneza.
Imagem: Ticiano, Dánae recebendo a chuva de ouro, Museu do Prado, c. 1553.
(Este conto foi publicado anteriormente no nº 31 da revista Samizdat)
Inspirações: Otelo, de Shakespeare; Dánae, de Ticiano.
Apreciei muito essa releitura de Otelo, Joaquim. Criativa e, apesar do desfecho trágico, com uma boa dose de ironia. Parabéns.
ResponderExcluirObrigado, Adriane! Fico contente que tenha detetado a ironia.
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