Teria de ser
breve , pois tinha de estar de volta antes que os pais
chegassem, já que eles ignoravam que a moça tivesse contato
com a avó, de relações
cortadas com
ambos antes
mesmo de ela
nascer . Tudo porque a filha lhe dera o desgosto de se apaixonar por um rapaz do morro ,
um favelado ,
nas palavras da sogra .
Filha que um dia
atravessou as pistas que separavam o luxuoso condomínio da enorme
favela que se
agigantava a cada dia
para viver o seu amor proibido . Nenhum
conto de fadas
daria a dimensão exata
da anti-Cinderela em que ela se tinha transformado. Dos sapatinhos de cristal de sua adolescência , hoje
calçava sandálias incômodas e rasteiras , mais
adequadas à longa subida
diária . Jamais
olhara para trás
ou se arrependera do que fizera, e hoje ,
ao mirar as imensas quadras
de lazer do antigo
prédio , tinha
a impressão de que
pertenciam a outro mundo ,
a outra vida ,
aos quais ela
renunciara voluntariamente havia quase
quinze anos .
Havia três
dias que
não vendia um
doce sequer .
A única coisa
que obtinha dos carros
que passavam era
a água , atirada
de forma proposital
e impiedosa por
alguns motoristas .
Nessas horas , lembrava-se com tristeza da tia Macabéa, irmã do pai ,
que viera do Nordeste
tentar a sorte ,
e acabara atropelada e sem auxílio . Uma moça
tímida e simples ,
que jamais
tivera realmente chances
na cidade . Lembrava-se também do tio
Fabiano, que fugira da seca com a família , tornando-se um
indivíduo cada
vez mais
embrutecido e taciturno diante das agruras
da vida . Talvez
por isso
o pai fosse tão
orgulhoso .
A água
que respingou da poça
em seu
rosto foi humilhante e decisiva . Andando até
o orelhão mais
próximo , discou um
número que
os pais prefeririam esquecer .
– Oi , vó. Sou eu ...
Você disse que
eu poderia
ligar , quando
precisasse. – ela
falava rapidamente, olhando para os lados .
– Meu Deus !
Clara , é você ? – a avó não
acreditava no que ouvia.
– Sou eu ,
sim . Eu
preciso falar
com a senhora .
– Claro, claro ... –
a voz da avó estava trêmula .
Vira a neta
três vezes ,
furtivamente , na creche
comunitária , e se rendera completamente àqueles
olhinhos idênticos aos da filha . A briga não impediu a aproximação entre avó e neta ,
ainda que
os pais da menina
nem sonhassem com
isso . – Onde você
está, meu anjo ?
– Aqui,
na subida do morro .
Não consegui vender
nada , mas
preciso levar
alguma coisa pra casa . – a menina
recusava-se a admitir que
aquela atividade era
inútil , e aceitar
a proibição dos pais .
– Venha aqui , meu amor . Eu tenho algum dinheiro em casa . Não é muito , mas ...
– Não
posso aparecer com
muito dinheiro ,
vó. Só queria algumas frutas , ou legumes ...
– Claro, claro ... Eu
espero você aqui ,
então.
– Vó, eu não vou subir aí . – a voz da moça tornou-se fria .
–Não com
essa roupa . Eu
prefiro que a senhora
me encontre aí
na portaria , tá?
– Mas, Clara ...
– Vó, meus pais nem sabem disso. Eu
não posso arriscar ...
– Então eu desço, querida .
Dê-me cinco minutos
e venha - disse a avó, ansiosa .
A menina
sentou-se no meio-fio , contando os minutos para encontrá-la. Não passaria da portaria .
Fora tão
humilhada na primeira vez em que foi à casa
da avó – desde o porteiro ,
que a obrigou a subir
pelo elevador
de serviço aos rapazes
que jogavam bola
na quadra , por
causa da simplicidade
de suas roupas
–, que jurara jamais
voltar lá . Desde então ,
encontrava-se com a avó no calçadão da praia ,
espaço neutro ,
e então caminhavam juntas
e lamentavam que o rompimento
entre a avó e a mãe
tivesse criado uma situação
daquele tipo . A avó jamais
subiria o morro e, mesmo
que o fizesse, o horror
diante das condições
precárias em que
a filha vivia – ela
nunca entenderia o quanto
a filha poderia
ser feliz ali , sem o conforto a que estava
habituada – acabaria por acirrar
ainda mais
os ânimos . Já
a filha , ao cruzar
as pistas que
dividiam os dois mundos ,
renunciara por completo
ao lado de cá ,
e tentar trazê-la de volta
seria fazê-la admitir que
fracassara, o que ela ,
a despeito das dificuldades
financeiras e da violência
que começava a imperar
ali , não
sentia. Na verdade , era
como se sempre
tivesse vivido ali ,
e no íntimo gostava da casa em que morava, cuja
vista , em
sua opinião ,
era superior
à dos melhores prédios
do outro lado
da pista . O rapaz
nem era
mau , mas
o orgulho o impedia de aceitar
qualquer ajuda
da família da mulher .
Apenas os olhos
cor de mel
de Clara eram capazes
de adocicar a ambos
os lados .
A avó viu de longe
a menina , e seus
olhos se enterneceram ao ver
aquele bibelô
vestindo roupas que ,
para o seu padrão , eram quase
andrajos. Aquele casaco ,
então , desbotado de tanto
uso , parecia acentuar
a precariedade em
que a menina
vivia. Com o tempo ,
pretendia dar um
jeito nisso. Planejava trazer
a neta para viver com ela , ou , pelo menos , proporcionar-lhe
uma educação decente. Pensando nisso,
apressou o passo em
direção ao portão
do condomínio . Tinha
início naquele momento
uma intensa troca
de tiros entre
a polícia , cujo
camburão acabava de estacionar
na subida do morro ,
e alguns bandidos ,
que se acastelavam num edifício abandonado, bem na
entrada . A menina ,
acostumada a operações desse tipo , abaixou-se instintivamente ,
mas se levantou ao ver
a avó cruzar o portão
rumo à rua .
– Vó, não sai daí, não ! – gritou, desesperada.
– Dona Ana , volta , que é tudo bandido ! – bradou
o porteiro , tentando trazê-la de volta ao prédio .
– A minha neta está
lá ! A minha
neta ...
– a frase foi abafada
pela queda da
avó, na calçada . Um
policial , cujo
nome o porteiro
apenas vislumbrou de relance : Lopo?
Lobo? saiu em disparada ,
e arrancou com mais
dois na viatura ,
apelidada de caveirão pelos moradores. Clara
aproximou-se e pousou os olhos de mel na avó.
– Meu doce , tudo poderia ter sido tão diferente ...
– Não fala assim , vó.
A senhora vai ficar
boa... e vai ficar tudo
bem – a menina mal
conseguia falar , enquanto
se ajoelhava e punha a cabeça da avó no seu
peito .
– Você
devia ter subido... Seus
pais podiam ter
me deixado ajudar ...
Isso não
é vida ...
À medida que a voz da
avó se enfraquecia, seu sangue ia encharcando o casaco
da menina , cuja
cor subitamente se avivara. Uma imensa mancha se alastrava,
como o mar
invadindo a areia em
dias de ressaca .
Um mar
vermelho-sangue. Casaco encarnado .
6 comentários:
Uau! Que subversão linda e dolorosamente humanizada da Chapeuzinho! Tão nossa, tão brasileira, tão de verdade! Adorei!
Obrigada, Cinthia. É um conto antiguinho, mas é um dos meus favoritos. ;-)
Também adorei. O que, inicialmente, parecia ser um conto de fadas acaba por ser o retrato da realidade brasileira. Muito bom. Excelente, Parabéns, Tatiana!
Obrigada pela leitura e pelas palavras, Cecilia!
De um realismo cortante como a navalha da protagonista. Mto interessante a referência a personagens literários, dialogando com Clarice e Graciliano com mta propriedade. O final, embora imprevisível, não poderia ser outro.
Obrigada, Edelson! É uma Chapeuzinho que traz nas veias as agruras de seu povo.
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