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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

PELA ESTRADA AFORA


 
 

Era uma vez uma menina que possuía um casaquinho vermelho. Era sempre vista com ele, não propriamente por uma questão de preferência, mas por ser o único no velho armário do miserável cômodo onde vivia com os pais. A vida não era de todo ruim, e ela, nascida ali, conhecia os mecanismos e sobrevivia, com dignidade e alegria. Havia dias em que as coisas ficavam mais difíceis, como hoje, quando o frio do inverno que se aproximava entrava pela janela da pequena casa, desencorajando-a de sair. Mas não podia fraquejar, pois o momento era realmente crítico, e ela tinha de tomar uma atitude. Desprezando a chuva fina, vestiu o surrado agasalho e ajeitou o capuz, preparando-se para ir ao encontro da avó.
            Teria de ser breve, pois tinha de estar de volta antes que os pais chegassem, já que eles ignoravam que a moça tivesse contato com a avó, de relações cortadas com ambos antes mesmo de ela nascer. Tudo porque a filha lhe dera o desgosto de se apaixonar por um rapaz do morro, um favelado, nas palavras da sogra. Filha que um dia atravessou as pistas que separavam o luxuoso condomínio da enorme favela que se agigantava a cada dia para viver o seu amor proibido. Nenhum conto de fadas daria a dimensão exata da anti-Cinderela em que ela se tinha transformado. Dos sapatinhos de cristal de sua adolescência, hoje calçava sandálias incômodas e rasteiras, mais adequadas à longa subida diária. Jamais olhara para trás ou se arrependera do que fizera, e hoje, ao mirar as imensas quadras de lazer do antigo prédio, tinha a impressão de que pertenciam a outro mundo, a outra vida, aos quais ela renunciara voluntariamente havia quase quinze anos.
            Dois anos depois, nasceu Clara, embelezando os dias naquele morro. Menina suave e de personalidade forte, rapidamente se transformou numa moça adorável. O desemprego do pai, um pedreiro que vivia de biscates desde a falência da construtora, bem como as encomendas cada vez mais escassas aos quitutes da mãe, fizeram-na começar a vender balas nos sinais. Os pais, que haviam tentado de tudo para demovê-la da ideia, renderam-se à teimosia da moça, inegavelmente herdada da mãe.
            Havia três dias que não vendia um doce sequer. A única coisa que obtinha dos carros que passavam era a água, atirada de forma proposital e impiedosa por alguns motoristas. Nessas horas, lembrava-se com tristeza da tia Macabéa, irmã do pai, que viera do Nordeste tentar a sorte, e acabara atropelada e sem auxílio. Uma moça tímida e simples, que jamais tivera realmente chances na cidade. Lembrava-se também do tio Fabiano, que fugira da seca com a família, tornando-se um indivíduo cada vez mais embrutecido e taciturno diante das agruras da vida. Talvez por isso o pai fosse tão orgulhoso.
            A água que respingou da poça em seu rosto foi humilhante e decisiva. Andando até o orelhão mais próximo, discou um número que os pais prefeririam esquecer.
Oi, vó. Sou eu... Você disse que eu poderia ligar, quando precisasse.ela falava rapidamente, olhando para os lados.
  Meu Deus! Clara, é você? – a avó não acreditava no que ouvia.
  Sou eu, sim. Eu preciso falar com a senhora.
– Claro, claro... – a voz da avó estava trêmula. Vira a neta três vezes, furtivamente, na creche comunitária, e se rendera completamente àqueles olhinhos idênticos aos da filha. A briga não impediu a aproximação entre avó e neta, ainda que os pais da menina nem sonhassem com isso. Onde você está, meu anjo?
– Aqui, na subida do morro. Não consegui vender nada, mas preciso levar alguma coisa pra casa. – a menina recusava-se a admitir que aquela atividade era inútil, e aceitar a proibição dos pais.
– Venha aqui, meu amor. Eu tenho algum dinheiro em casa. Não é muito, mas...
– Não posso aparecer com muito dinheiro, vó. queria algumas frutas, ou legumes...
– Claro, claro... Eu espero você aqui, então.
– Vó, eu não vou subir . – a voz da moça tornou-se fria. –Não com essa roupa. Eu prefiro que a senhora me encontre na portaria, tá?
– Mas, Clara...
– Vó, meus pais nem sabem disso. Eu não posso arriscar...
– Então eu desço, querida. Dê-me cinco minutos e venha - disse a avó, ansiosa.
            A menina sentou-se no meio-fio, contando os minutos para encontrá-la. Não passaria da portaria. Fora tão humilhada na primeira vez em que foi à casa da avó – desde o porteiro, que a obrigou a subir pelo elevador de serviço aos rapazes que jogavam bola na quadra, por causa da simplicidade de suas roupas –, que jurara jamais voltar . Desde então, encontrava-se com a avó no calçadão da praia, espaço neutro, e então caminhavam juntas e lamentavam que o rompimento entre a avó e a mãe tivesse criado uma situação daquele tipo. A avó jamais subiria o morro e, mesmo que o fizesse, o horror diante das condições precárias em que a filha vivia – ela nunca entenderia o quanto a filha poderia ser feliz ali, sem o conforto a que estava habituada – acabaria por acirrar ainda mais os ânimos. a filha, ao cruzar as pistas que dividiam os dois mundos, renunciara por completo ao lado de , e tentar trazê-la de volta seria fazê-la admitir que fracassara, o que ela, a despeito das dificuldades financeiras e da violência que começava a imperar ali, não sentia. Na verdade, era como se sempre tivesse vivido ali, e no íntimo gostava da casa em que morava, cuja vista, em sua opinião, era superior à dos melhores prédios do outro lado da pista. O rapaz nem era mau, mas o orgulho o impedia de aceitar qualquer ajuda da família da mulher. Apenas os olhos cor de mel de Clara eram capazes de adocicar a ambos os lados.
A avó viu de longe a menina, e seus olhos se enterneceram ao ver aquele bibelô vestindo roupas que, para o seu padrão, eram quase andrajos. Aquele casaco, então, desbotado de tanto uso, parecia acentuar a precariedade em que a menina vivia. Com o tempo, pretendia dar um jeito nisso. Planejava trazer a neta para viver com ela, ou, pelo menos, proporcionar-lhe uma educação decente. Pensando nisso, apressou o passo em direção ao portão do condomínio. Tinha início naquele momento uma intensa troca de tiros entre a polícia, cujo camburão acabava de estacionar na subida do morro, e alguns bandidos, que se acastelavam num edifício abandonado, bem na entrada. A menina, acostumada a operações desse tipo, abaixou-se instintivamente, mas se levantou ao ver a avó cruzar o portão rumo à rua.
– Vó, não sai daí, não! – gritou, desesperada.
– Dona Ana, volta, que é tudo bandido! – bradou o porteiro, tentando trazê-la de volta ao prédio.
– A minha neta está ! A minha neta... – a frase foi abafada pela queda da avó, na calçada. Um policial, cujo nome o porteiro apenas vislumbrou de relance: Lopo? Lobo? saiu em disparada, e arrancou com mais dois na viatura, apelidada de caveirão pelos moradores. Clara aproximou-se e pousou os olhos de mel na avó.
– Meu doce, tudo poderia ter sido tão diferente...
– Não fala assim, vó. A senhora vai ficar boa... e vai ficar tudo bema menina mal conseguia falar, enquanto se ajoelhava e punha a cabeça da avó no seu peito.
– Você devia ter subido... Seus pais podiam ter me deixado ajudar... Isso não é vida...
À medida que a voz da avó se enfraquecia, seu sangue ia encharcando o casaco da menina, cuja cor subitamente se avivara. Uma imensa mancha se alastrava, como o mar invadindo a areia em dias de ressaca. Um mar vermelho-sangue. Casaco encarnado.
Quando a ambulância chegou, era tarde. Os olhos de mel de Clara estavam baços, eternizando, num grotesco vitral, a cena que se desenrolava diante dela. O casaco vermelho, marca registrada da menina, estava agora empapado de sangue. Jamais seria usado novamente. Os doces que não vendera tampouco chegaram às mãos da vovozinha. O sargento Lopes também não foi encontrado. Ao contrário dos depoimentos dos moradores do local, seus superiores dizem que ele não estava de serviço naquele dia.
Muita coisa mudou desde então. Clara e os pais nunca mais foram vistos ali. Há pouco tempo, ela teria sido avistada na madrugada, em um bairro turístico, em trajes sumários. Hoje é ela quem sai para caçar e, se for preciso, sabe usar a navalha...
 

 

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

todo dia 02


6 comentários:

Uau! Que subversão linda e dolorosamente humanizada da Chapeuzinho! Tão nossa, tão brasileira, tão de verdade! Adorei!

Obrigada, Cinthia. É um conto antiguinho, mas é um dos meus favoritos. ;-)

Também adorei. O que, inicialmente, parecia ser um conto de fadas acaba por ser o retrato da realidade brasileira. Muito bom. Excelente, Parabéns, Tatiana!

Obrigada pela leitura e pelas palavras, Cecilia!

De um realismo cortante como a navalha da protagonista. Mto interessante a referência a personagens literários, dialogando com Clarice e Graciliano com mta propriedade. O final, embora imprevisível, não poderia ser outro.

Obrigada, Edelson! É uma Chapeuzinho que traz nas veias as agruras de seu povo.

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