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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

HORA DE ABRIR A CAIXA

Ela chegou perguntando tudo. Quem tinha decorado o apartamento, quem tinha preparado a mesa,
quem tinha acendido as velas. Reparou as gravuras de Gerchman, os livros mal arrumados na prateleira,
a altura do rodapé.  Varreu com os olhos o quarto, sorriu com a cama King Size, pendurou a mochilinha
no cabideiro torto e largou as sandálias no tapete. Não bisbilhotou o banheiro, mas voltou direto para a cozinha, onde abriu a geladeira, elogiou o Bordeaux Rose pegou um aipo da salada com os dedos bem cuidados. Eu só observando seu jeito despachado. Passou por mim, ensaiou um beijo na trave da boca, "delicia de lugar", senti, enfim, o contato de sua língua úmida e rija no meu ouvido. Antes que virasse o rosto em sua direção, ela se intrigou com a rede da varanda.
- Criança em casa?
- Não, macacos.
Ela arregalou os olhos.
- Macacos Pregos. Imensos e peludos.
Ela mordeu os lábios, destemida.
-Ui.
Expliquei que, por ser contíguo à mata, meu apartamento de primeiro andar era dado a visitas da fauna brasileira, especialmente de símios esfomeados. Entram sem cerimônia pela varanda. Um dia peguei um em cima da geladeira degustando uma banana. Digo degustando, porque descascou a dita como mandam as boas maneiras e estava de olhos fechados saboreando a iguaria, quando soltei um grito primal e o bicho se escafedeu por onde entrou, por uma fresta da porta que dá para a varanda. Quando percebi, outros três haviam se assustado com a minha reação e fugiram pelo mesmo buraco. Um deles levou meu headphone.
- Os macacos curtem  musica?
Ela me perguntou só porque disse na noite anterior no Baixo Gávea que tinha me formado em biologia.
Ela sorriu curiosa.
- Mexe com bichos?
- Perereca, - dissimulei com semblante sutil. Estudo seus comportamentos noturnos.
Ela me olhou com cara de burra e eu me excitei com sua reação desentendida encarnada no corpinho tudo no lugar, peitinhos supostamente naturais, bunda arrebitada,  lábios carnudos,  pés perfeitos para um fetichista,  e um sorriso dengoso de quem disfarça que sabe  tudo de cama. Gosto assim, fazer o quê? Engrenamos conversa boa entre risadas e caipivodcas. Seus olhos tinham estilingues, miravam minha alma, enquanto eu deitava falação. De burra não tinha nada. Sonegou um beijo, mas insinuou aceitar conhecer meu apartamento noite seguinte, alegou que ficaria mais à vontade, havia uma esquadrilha de ex ficantes revoando no Baixo. Melhor assim. Fui para casa sozinho. Excitação romântica, plantação perfeita para colheita na noite seguinte. Gosto disso. Do risco incalculado.


Entrei no salão de peito estufado. As manicures perceberam meu astral diferente.
- Acho que encontrei, cochichei para depiladora.  Um gato para ser saboreado devagar.
Fiquei orgulhosa de mim.  Resisti a dar-lhe um beijo de esvaziar testosteronas.
- Devagar, menina, devagar. A ultima vez que você apareceu aqui derretida desse jeito,
disse que o cara era seu príncipe, imaginou o buquê e escolheu o nome das crianças.
Depois se desiludiu e deixou o mato crescer entre a pernas.
- Dessa vez é diferente: ele é biólogo, dissecou minha alma fêmea, não avançou o sinal.
Combinamos encontrar no apê dele. Capricha, Moniquete.
- Radical?
- Embaixo e atrás, sim. Mas deixa o triângulo bem contornado na frente.
Um Triângulo das Bermudas. Ele vai perder a bússola.


O  Bordeaux Rose fez um efeito imediato e devastador. Servido gelado na mesma taça, foi a senha para duas línguas se embolarem, como a força de um tesão devido há pelos menos 24 horas. Pouco se falou, pouco se perguntou a partir dali, quando o vestido justo feito para despir cumpriu seu destino: foi para o espaço, descerrando uma geografia de delicias. A recíproca foi verdadeira. Ao som de Miles Davis no chiado da vitrola, minha roupa também sumiu por encanto. Estávamos os dois nus, procurando pouso seguro pela sala, quando esbarramos na beira do sofá, onde desabamos e por ali nos banqueteamos. Acho que fui rápido demais, mas a moça entrou em preocupante delírio. Gemeu alto, elogiou meus dotes e gritou um assustador "homem da minha vida!" repetidamente, a cada estocada viril que recebia.
Senti que queria mais, pela chave de pélvis que levei, pela respiração incessante e pelas unhas cravadas nas minhas costas. Aos poucos, foi desfalecendo sob meu corpo, afrouxando as coxas que me enclausuravam e desacelerando os suspiros, sem deixar de repetir baixinho "homem da minha vida! homem da minha vida!".
Quando percebi  o prenúncio do desvencilhar do golpe, dei um pulo do sofá.
- A salada! Hora da salada!


Moniquete, querida, você é ótima depiladora e péssima pitonisa. O gato é um assombro. Que homem é esse, meu deus, que me invadiu gostoso com sabor de Bordeaux Rosé,  me deixou troncha e fraca sobre um sofá e ainda me oferece um bowl de salada de aipo, alface, cenoura ralada, shitake, amêndoas picadas e molho de mostarda com mel? Bem dotado até nas culinária, Moniquete, me belisca, que rara delicadeza é essa que a vida me oferece? Ele me corteja, me fala coisas inteligentes, tem bom humor, me acolhe no colo nu e me embala com LPs formidáveis na vitrola. Trata-se de um cavalheiro especial:  dá alfaces amendoadas na minha boquinha, divide mais uma taça afrodisíaca e agora resolve com a língua passear pelos meus relevos. Nunca na história desse território  me mordiscaram mamilos com tanta vontade de dizer alguma coisa. Entendi, gato, foi amor à primeira vista, eu sinto o amor correspondido pela sua língua muda, que busca refugio nos meus recôncavos, até encontrar o triangulo da perdição, onde, ái, ái, ái,  perdemos os rumos, o astrolábios, o caminho das estrelas, e nos metemos num  buraco negro de esplendores e êxtase, sim eu te amo, você me ama, e por isso eu me entrego toda nua toda sua para os infinitos de nossas existências.


Diz um ditado siciliano que quando il vigore míngua, avanti com la língua. Obedeço  os caprichos de meu cérebro da cabeça inferior, mas não menos cioso, inteligente e perspicaz. A moça bonitinha não é lá essas coisas. Tem um perfume enjoativo, que, miscigenado aos odores naturais e uma ansiedade exacerbada, produz o que se chamaria de asco súbito,  expressão rude para um cavalheiro de bons modos, mas sincera diante da armadilha de barra forçada que essas excitações pseudo românticas nos impõem. Só me resta, como gentil amante, encerrar a lenga lenga passeando a língua sobre sua geografia de atlas bem impresso e retribuir-lhe com gozo o gozo que apressadamente me foi acometido. Que seja rápida, menina, já sugo seus âmagos, com a infantaria de dedos cercando os arredores de seus lábios, invadindo a fenda encharcada, ousando enveredar pela brecha pregueada, com um olho contemplando o triangulo bem esculpido - palmas para a depiladora! - e o outro no relógio na ultima prateleira da estante da sala.


Falta pouco para meia noite. Em menos de duas horas, encontrei o que me custou séculos de procura: um homem cordial, capaz de respeitar o timing de uma mulher desejosa. Estamos abraçados  num eloquente silêncio. Amanhã amanheço mais plena. Meu homem ressona sobre meus seios de bicos ainda rijos, com a coxa direita encaixada no meu sexo melado. Passo a mão pela sua cabeça, tenho vontade de dizer "meu anjo, vamos para a nossa cama". Como se entendesse meus pensamentos - até nisso o destino nos presenteou - levanta-se, perambula entorpecido e nu pela sala, entra e sai dos cômodos, fora do alcance da minha vigília e tranca-se no banheiro. A eternidade é o tempo em que sai de lá, faceiro, e parte para nossos aposentos. Vou atrás do meu príncipe. Abro a mochilinha, retiro a camisola, um par de havaianas e uma nécessaire. Não acredito que estou vivendo. Onde está você, Moniquete? Me apareça com uma câmera celular para aplacar suas desconfianças. Meu homem chegou. Está jogado na cama de braços e pernas abertos, receptivo à presença, enfim, de uma mulher complementar. Vestida de seda, nada por baixo, e escova de dentes na mão, me enrosco no corpo que já é meu e nos embrulhamos nos lençóis, até que me deixo acolher em conchinha. Adormeço sob seu abrigo carnal, sinto seu volume saciado se encaixar entre minha nádegas. E sonho sem escovar os dentes.


Odeio dividir cama. Conchinha, nem pensar. Essa doida ronca, sofre de adenoide, fala dormindo.
Volta e meia me aperta e me chama de meu amor. Seus lábios desenham um sorriso, sonha em círculos a infeliz, repetindo em gemidos o mantra da transa: "homem da minha vida, homem da minha vida!"
O tempo não passa, essa mulher nem tem vontade de fazer xixi. Que diabo! Quem é vencido pelo sono sou eu.

AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!
Sou acordado por um discurso histérico onde apenas uma letra do alfabeto diz tudo.
AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!
Ela em chilique veste o vestido fácil de despir pelo avesso.
AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!
Seu olhar de estilingue me acerta. Entendo suas palavras de uma letra só.
AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!
Segue surtada e esbaforida porta afora, deixando pra trás a calcinha, mochila, a escova de dentes, as havaianas.
AAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAAAA! AAAAAAAAAAAAA!AAAaaaaaaaaaa... aaaaa..aa...a... a.... a... a... a...
Ouço o grito sumir pela escada, ganhar a rua de paralelepípedos  e desaparecer entre grilos da mata.
Levanto vitorioso e vou até o banheiro.
- Vem, Phidias, vem com o papai.
E retiro minha de Boa Constrictor, vulgo jiboia, enroscada no sopé do vaso sanitário entre o bidê e o suporte do papel higiênico.
Cúmplice, ela envolve meus braços e a devolvo para caixa onde habita na área de serviço.
- Obrigado por mais essa, filhota. Mais tarde trago camundongos e pererecas pro seu jantar.




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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


1 comentários:

Você é uma figura, Zé Guilherme! Rachei de rir aqui! Imaginei tudo: que era um romance com final dramático; que era uma relação sendo descrita com começo, meio e fim (tão normal), mas nunca, nunca ia imaginar uma jiboia disponível no banheiro! Hahahaha! Eu correria também, léguas! Mas tenho uma amiga em Uberlândia que tem uma dessas em casa. Se fosse ela, seu personagem estaria frita, porque ela ia gritar: "HOMEM DA MINHA VIDA!!!". Amei!

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