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sábado, 25 de janeiro de 2014

Sempre Assim Será


Joaquim Bispo




O meu nome é Lobulfo, chefe do clã dos Mamutin. Falo-vos do fundo dos tempos, na vossa linguagem artificiosa, para que me entendais. Sou filho de Ursácuo e de Bagulfa. Dela, mal me lembro, porque morreu com um filho preso no ventre, ainda eu era criança. Sei que fiquei muito triste. Construímos-lhe o útero de regresso com grandes pedras, numa pequena elevação junto à aldeia de então e completámos o ventre com muita terra a fazer um monte redondo. Fui criado pelas Grandes Mães. Vivo com o meu povo no centro do mundo. Seguimos as manadas de bisontes, auroques e cavalos e instalamos a nossa aldeia de cabanas redondas junto aos vales onde pastam. Fazemos um círculo largo com as cabanas dos caçadores. Dentro, erguemos as das mulheres e crianças. Ao centro, perto do totem, a minha, que era do meu pai antes de ele partir.
Lembro-me dele muitas vezes. Ensinou-me tudo o que eu sei. Ou quase. Uma das primeiras coisas de que me lembro foi de endurecer a ponta de uma lança ou de uma azagaia, nas brasas de uma fogueira. Isto foi depois de eu deixar de andar com as mulheres a apanhar bagas e raízes. Passei a aprender a ser caçador. Ensinou-me como se prendem as pequenas lascas de sílex às azagaias e como estas se preparam para ficarem equilibradas. Nessa altura já caçava pássaros. Quando eu já vivera tantas primaveras quantos os dedos de ambas as mãos, ensinou-me a preparar uma lançadeira, escavando a ponta de modo a que a cauda da azagaia lá fique bem apoiada e possa ser arremessada com força, quando o braço descreve um arco veloz na manobra da lançadeira. Depois, veio a parte delicada de separar finas lâminas de um bloco de sílex, com pancadas precisas, para usar como cortadores vários e pontas de lança. Finalmente, as artes da caça grossa e os seus perigos. É um trabalho conjunto que o meu pai liderava e que implica manobras de separação de dois ou três animais da manada e uma perfeita coordenação, para que eles, assustados pela algazarra dos caçadores, corram espavoridos e se precipitem num barranco ou num fosso preparado com antecedência. É um momento de grande alegria, em que agradecemos aos animais, com danças, por nos darem a sua carne. Depois, desmanchamo-los, trazemos os bocados para a aldeia, comemos o que queremos e pomos o resto sobre o fumo.
Quando me sento sobre uma rocha a observar uma manada a pastar no vale, com a montanha branca em fundo, sinto uma enorme gratidão ao Grande Pai Sol, à Grande Mãe Terra, e aos seus filhos animais que nos dão a força da vida. A cada primavera, chegam os cavalos e os auroques, vindos do lado do sol. Quando as folhas começam a cair, vão-se embora, e regressam as renas e os bisontes das terras geladas. Sempre assim foi e sempre assim será.
Quando eu era novo, certa vez, já os ventos, havia muito, sopravam glaciais no vale vazio, o meu pai temeu que não houvesse mais bisontes. Consultou o xamã e decidiram fecundar a Terra para que nascessem novos bisontes.
O xamã tem muita magia. Se uma mulher não emprenha, ele esculpe uma pequena estatueta feminina de ventre pejado e seios repletos, em madeira ou em pedra, e coloca-a na cabana dela, enquanto executa danças e cantos propiciatórios. Quase sempre o ventre da mulher acaba por crescer, como o da estatueta.
O meu pai levou-me com eles. Na primeira noite, como o abrigo na rocha, que o xamã tinha previsto, estava ocupado por um grande urso, tivemos de dormir em cima de uma árvore. Foi a noite mais difícil da minha vida. O frio era intenso e eu temia que, adormecido, tombasse da árvore. Demorámos três sóis a chegar à grande vulva da Terra, na base do ventre de uma montanha. Dela, saía um riacho de águas frias. Penetrámos junto à margem e fomos avançando para o interior, com a ajuda de um archote. Andámos por largo tempo, tentando chegar ao mais fundo da montanha, receosos do que nos pudesse acontecer. Finalmente, chegámos a um grande espaço, como se fosse uma enorme cabana de pedra, de teto baixo e quase plano, e que não tinha mais nenhuma ramificação. O xamã concluiu que tínhamos chegado ao útero da Terra. Então, abriu os surrões, onde trazia terra vermelha, terra amarela, cinza de osso, e cornos cheios de gordura de bisonte, e começou a misturar as terras e a cinza com a gordura, fazendo mistelas coloridas. Depois, queimou ervas especiais que trazia e começou a dançar, enquanto inalava o fumo inspirador, até que se quedou, de costas no chão, mirando alucinado o teto da grande cabana de rocha. Algum tempo depois, começou a pintar dois bisontes, aproveitando as saliências da rocha para fazer sobressair os bojos dos ventres e as massas musculares. Usava a mistura negra para fazer os contornos dos animais. Fazia-o com toda a atenção, avaliando se cada traço correspondia ao desenho geral que o espírito da Grande Mãe lhe sugeria. Pintava sem pressa, porque o tempo tinha parado. De quando em quando, comíamos carne seca. Eu entretinha-me a admirar a magia do xamã, que fazia nascer e crescer os bisontes, e a imitá-lo. Lembro-me de espalhar um resto de vermelho em volta da minha mão, que ficou marcada contra a parede de rocha. Por fim, os bisontes pintados estavam vivos e moviam-se de acordo com a luz oscilante do archote. A Terra estava fecundada.
Voltámos, seguindo as nossas anteriores pegadas. Quando saímos da grande vulva da montanha, o Sol ia alto, e parecia sorrir para nós. Olhámos o vale e ficámos extasiados: uma enorme manada de bisontes pastava calmamente, iluminada pelos raios vibrantes de luz. Nunca um vale me pareceu tão bonito. Erguemos os braços, gritando o nosso louvor ao Grande Pai Sol e à Grande Mãe Terra. Nesse momento, confirmei a eficácia da magia do xamã e o poder das forças que nos protegem.
Isso foi há muito tempo. Nessa altura considerava o meu pai o chefe mais forte e sábio. Depois, houve períodos de pouca caça que, além disso, era disputada por outras aldeias que iam proliferando. As caçadas eram fracas. Passámos a viver quase só de frutos, raízes, ovos, bivalves e algum peixe. O meu pai parecia resignado e enredava-se na tristeza. As mais velhas das minhas irmãs foram-se mudando quase todas para outras aldeias. Até os meus irmãos, que se juntavam com raparigas na grande festa das tribos da primavera, partiam com elas, em vez de as trazerem para a nossa aldeia, que estava a ficar perigosamente pequena. Eu fui dos poucos que decidiram voltar, quando escolhi Mejila, uma filha do chefe do clã dos Garranin, para minha companheira.
Nessa altura, como mais velho, interpelei o meu pai e comuniquei-lhe a minha preocupação, que era também a dos outros, e a minha intenção de assumir a chefia da aldeia. Usei palavras, talvez, demasiado duras, fazendo-o ver que ele estava velho e que a aldeia precisava de uma liderança forte, como outrora fora a sua. Ouviu-me com atenção e um pouco de tristeza no olhar. Falou-me com muita serenidade, medindo bem as palavras. Disse que não era fácil assistir às dificuldades dos que dele dependiam e que, na verdade, há muito ansiava que eu revelasse maturidade e manifestasse a decisão de guiar a aldeia, pois só deve liderar o povo quem sente esse imperativo.
Reuniu-nos todos em frente à sua cabana, olhou-nos longamente, com grande bondade no olhar, e disse que era o momento de dar lugar a outro chefe. Afirmou a certeza de que eu seria o condutor que a aldeia precisava e entregou-me a Grande Lança dos Mamutin. Nenhum apelo conseguiu demovê-lo da decisão que tomara: partir. A perspetiva parecia animar-lhe tanto o espírito, como as caçadas de outrora. Embrulhou-se na sua pele de bisonte, recomendou que respeitássemos sempre o bisonte e o cavalo, e partiu com os olhos cheios de infinito. Todo o povo ficou em silêncio a vê-lo afastar-se. Nesse momento, vivi a minha segunda orfandade.


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3 comentários:

Bishop,

Bonito este pequeno conto dos Mamutin!!!

Abordagem imagética simples mas com muita elegância, descritiva sempre proporcionando a cor e detalhes formais à progressão da narrativa supostamente do modo de vida nativo de uma tribo em uma sociedade primitiva, ainda salutarmente em íntima comunhão e respeito pela Natureza e com recurso de certa profunda simbologia de cariz Ontológico Universal.
Um bonito Conto.

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