Olhou-a pelo canto do olho. Timidamente. Nada. Nenhum gesto, nenhum sinal de que ela o percebia ali tão próximo. Tossiu, esperando que o barulho a fizesse virar-se. Ao contrário. Ela abaixou ainda mais a cabeça na direção da revista que a entretinha. Podia jurar que a tinha irritado. Será?
Era assim já havia um tempo. Ele se consumindo de
paixão e de tesão a cada vez que entrava naquela sala apertada. Se esta sala
fosse maior... Se pelo menos as nossas mesas fossem mais
afastadas... Tolice. Consumia-se dia após dia entre os batimentos
acelerados e a vontade que crescia dentro das calças. E agradecia a Deus e ao
diabo pela mesa de trabalho que encobria os seus desejos. Talvez se eu
tivesse coragem de conversar com ela, se eu pudesse mostrar que sou um
cara legal... Ilusão. Só os dois naquela sala apertada; e ele travado.
Rotina. Ele, com seus documentos e processos. Ela, sempre ao telefone, no
computador ou na sala do chefe.
No fim do ano, na festa da empresa, esbarrara nela
uma ou duas vezes. De propósito. Só para pedir desculpas e obrigá-la a dar-se
conta de que ele existia. Mas nem um muxoxo. Enquanto ainda dizia “desculpe”, ela
já tinha sumido. Um inseto. Uma mosca. Era o que ele era. Não. Uma mosca
chamaria a atenção pelo barulho irritante, mas chamaria a atenção. Ele, não. Não era mosca. Nem isso.
Naquela manhã, entrou na sala com ares de
“hoje vai”. Perfume francês que só colocava para ir a festas ou a motéis
baratos, das raras vezes em que aparecia uma mulher para transar. Roupa de
missa; sapatos de Ano Novo; cabelos de boate — com topetinho feito a gel.
"Topa sair comigo hoje?". Não, não estava bom. “E aí,
gata, que tal um barzinho hoje?”. Que droga! Nem que tivesse 15
anos. “Escuta, tem tempo que ando querendo convidar você pra
sair...”. Assim estava melhor, com reticências. Afinal, o máximo que
podia acontecer era levar um fora. Um fora, esse era o problema. Não pela
rejeição, à qual estava acostumado, mas por antever como seria a sua
vida naquela sala apertada depois do fora. Convivência impossível, vergonha,
frustração.
Desistiu, mais uma vez. Até a hora do almoço. Certo
de que precisava dar um jeito no que sentia no coração e dentro das calças,
tomou duas cervejas e um copinho de pinga durante a refeição. De comida mesmo, só
umas três garfadas para forrar o estômago. Almoço de boteco: comida ruim, pinga
barata. Que pena que não tenho grana pra mais um copinho,
pensou, recontando o dinheiro. Conferiu o relógio de pulso e viu que ainda
tinha uns trinta minutos, mas preferiu voltar para o escritório assim mesmo.
Queria treinar o convite que faria a ela, antes de colocar na boca as balas de
menta que comprara com o troco do almoço. Ah, hoje vai!,
pensou, animado pelo álcool.
Assim que chegou, viu que o escritório ainda estava
todo apagado. Dirigiu-se, então, à sala do chefe para fazer o que era de
costume: quem chegasse primeiro, pela manhã ou depois do almoço, tinha a
tarefa de ligar seu ar condicionado, arrumar sua mesa e recolher o
lixo do cesto.
Entreabriu a porta. Silencioso e lento como sempre.
E aí ouviu os gemidos. Parado na soleira, acostumou a vista à penumbra até conseguir
enxergar os dois corpos contorcendo-se em sexo sobre a mesa de reuniões que
ficava mais à direita, ao fundo. Macho e fêmea em sexo irrestrito. Sexo de
braços, pernas, bocas e suor. Sexo com sons que ele nunca ouvira.
Pensou em sair bem devagar, pé ante pé. Depois, em
sair e voltar para bater à porta. Por último, em sair e esquecer o que
vira. No entanto, continuou ali, na porta, no escuro, consumindo a
beleza daquelas nádegas que cavalgavam um corpo que bem podia ser o seu. Mas
não era.
Ele e um medo súbito de ser visto.
Ele e um medo covarde de que sua respiração
entrecortada pudesse ser ouvida. Ele e um medo horrível de
ser despedido e de ter que passar a viver sem ela, sem a sala
apertada, sem o tesão embaixo da mesa. Foi quando lembrou que não era inseto.
Não era mosca. Não fazia barulho. Nem isso. E seus olhos mergulharam
novamente naquelas nádegas galopantes.
10 comentários:
Quase um Gregor Samsa em versão erótica. Pior: a angústia de se saber invisível. Gostei muito!
Muito bom, Cinthia, torci por ele até o fim...
E quanta gente assim há no mundo. Vagando como sombra, invisível, sem sequer comparar-se com mosca. Nem irritar consegue.
Também gostei muito, Cinthia, E, como sempre, fico impressionada com a empatia que você demonstra com os tristes da vida, com a bagagem humana de seus personagens. Parabéns!
Tatiana, que delícia essa citação kafkaniana! Obrigada! Cecilia, é isso mesmo, os invisíveis me impressionam muito. Quantas vidas sufocadas por aí! Bjs às duas.
Regina, a gente sofre com os que sofrem, né?
Muito bom, querida! Como sempre!
ambiente muito realista, muito negro, muito mofo, muito esperma, muito suor no rosto e no sovaco e perfume de segunda a passear-se...deprimente tudo, ainda a acrescer a mejera e o patrãozinho a fodê-la...Você hoje superou-se, minha amiga nessa de comisseraçãozinha pelo mundo :)
Ótimo! Que bom estar ao seu lado!
Zé Guilherme, quanta honra! Sou sua fã! Obrigada. Bjks
Os Invisíveis também vivem, mesmo que à sua maneira. Mais uma vez muito bom pela envolvência e por envolver quem lê. Os meus parabéns... Réjo Marpa
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